Perspectivas no campo contratual para os próximos anos

Nas primeiras semanas de cada ano que se inicia, costumamos avaliar projetos em andamento, fazer novos planos, decidir quais rumos seguir. Listas, metas, desafios e novas expectativas. O que esperar para o campo dos contratos nos próximos anos? Essa foi a primeira pergunta que surgiu assim que recebi o convite do IBDCONT para colaborar com esta coluna.

O desafio da complexidade e o impacto da tecnologia

Tanto no campo acadêmico quanto no campo profissional, preocupa-me a crescente dificuldade dos operadores jurídicos (magistrados, advogados, membros do Ministério Público…) de lidarem com situações cada vez mais complexas. O modelo contratual clássico, com suporte em papel e vocação puramente patrimonial, não é mais suficiente para uma realidade negocial plural, transnacional e em constante mutação, provocada por avanços tecnológicos que mudaram não apenas o nosso modo de comunicação e interação com o próximo, mas também a forma como registramos os atos que praticamos e até mesmo os bens objeto dos negócios jurídicos que celebramos.

Enquanto nosso Código Civil remete à contratação entre ausentes por correspondência epistolar e detalha formas de contratação envolvendo bens imóveis com observância de requisitos formais específicos, registrados em um suporte físico (papel), a maioria dos alunos que iniciam seus passos no mundo do direito vivem num período em que nunca experimentaram enviar uma carta para um amigo pelo correio, não atribuindo importância à conservação de documentos físicos, quando guardam “na nuvem” informações e dados que consideram importantes.

A interação social ocorre em redes sociais, normalmente de forma escrita em mensagens de poucos caracteres, arquivos de áudio de poucos minutos, sendo cada vez mais raro encontrar, entre as novas gerações, quem utilize primordialmente o telefone para a função de ligar e conversar em tempo real com outra pessoa. Recentemente, ao ligar para um amigo a fim de cumprimentá-lo por seu aniversário, ouvi do outro lado da linha a pergunta: “está tudo bem?”, pois “se você ligou em vez de enviar mensagem, deve estar ocorrendo algo bastante sério”. Vivemos num período em que as noções de tempo e espaço são redefinidas pela forma de interação tecnológica que adotamos. A tecnologia mudou antigos hábitos, e com ela surgiu a necessidade de desenvolvermos novas habilidades.

Mas nem todos abraçam a tecnologia e suas funcionalidades com a mesma rapidez e/ou têm acesso aos mesmos recursos. Se antes havia uma clara distinção entre os que eram alfabetizados e aqueles que não conseguiam ler, o avanço tecnológico criou barreiras, que podem ser ainda mais difíceis de transpor do que a alfabetização de um indivíduo. Em tempos de obsolescência programada e de uma incessante busca por novas funcionalidades e interação, não é nada fácil manter-se atualizado, conseguindo dominar o último modelo de computador, smartwatch ou smartphone, nova versão do sistema operacional, definições de segurança da informação e acesso remoto a dados. Se você consegue garantir atualização nisso, é preciso perguntar ainda se tem o mesmo nível de informação e desenvoltura quando o tema da conversa passa por IOT (internet das coisas), aplicações com uso de inteligência artificial ou registros blockchain. Isso sem falar em registros biométricos para criptografia e nos demais aspectos relativos à infraestrutura relacionada aos avanços tecnológicos.

Aqueles que receberam formação jurídica nos últimos 30 anos acostumaram-se a buscar a solução de todos os problemas exclusivamente no campo jurídico e raramente realizavam incursões noutros campos do saber. Mas o monopólio das soluções a partir das normas jurídicas não é possível no cenário atual, considerando os avanços científicos. Difícil propor soluções para o que não conhecemos em profundidade ou de que não vivenciamos a utilização. Como entender um match numa rede social, as consequências de um bloqueio de seguidor ou o compartilhamento em serviços de streaming sem a experiência de ser usuário de uma aplicação de semelhante natureza?

Em que ponto da aplicação de tecnologias você, caro leitor, se encontra? Considerando a lista a seguir, o que faz parte do seu cotidiano: rádio, jornal, televisão aberta, TV por assinatura, streamingpodcast, notificações em tempo real por aplicativos, realidade ampliada com uso de inteligência artificial e uso de assistentes pessoais (= e.g.: Siri)? Eu poderia perguntar de outra forma: você paga suas contas no banco? Em lotérica? Em aplicativo para telefone celular? Com dinheiro tradicional ou com moedas eletrônicas? Será que todos ao seu redor utilizam a tecnologia da mesma forma?

Como navegar num oceano de desafios. Hora de inflar as velas da colaboração e da informação

Num momento de transição entre o universo de usuários e não usuários, dos iniciados em tecnologia e daqueles que não se importam em entender como ela funciona, é nos contratos que buscamos ferramentas de tradução da realidade e a prevenção dos problemas que essa intensa disparidade de conhecimento provoca, exigindo de quem atua na área a máxima atenção com a boa-fé objetiva e o dever de informação, que não deve se limitar à redação de cláusulas contratuais.

Lidamos com interesses diversos, acesso a informações de modo assimétrico, que se repete no campo financeiro e técnico. Lidar com assimetrias e com questões que transcendem interesses individuais para o campo dos direitos transindividuais e difusos faz-se presente na agenda de qualquer profissional. De um trabalho tradicionalmente individualista, realizado na solidão de nossos escritórios, passamos a experimentar um espaço aberto de colaboração, no qual múltiplos saberes e competências são necessários para lidar com intricadas questões, quer sejam sobre aplicações da engenharia genérica para a saúde, quer seja sobre a utilização de informações pessoais por terceiros para fins econômicos, ou ainda o risco do desenvolvimento de novas tecnologias em substituição por máquinas de atividades exercidas por seres humanos.

Contrato combina com complexidade?

Acredito que a resposta seja afirmativa. O contrato, enquanto expressão do exercício da liberdade negocial, vale dizer, da autonomia privada, é o espaço privilegiado para lidar com o campo da inovação e das incertezas. Não é possível ignorar a realidade e seus avanços. A vida não espera a regulamentação dos novos campos de atuação pelo poder público. É justamente neste espaço de atuação que o trabalho dos profissionais que atuam elaborando contratos se torna decisivo.

Além de definir partes e objeto do contrato, há de se analisar os efeitos da avença para com terceiros, observar sua adequação às normas ambientais e demais marcos regulatórios, o atendimento adequado às diretrizes de compliance do outro contratante e por vezes dos seus parceiros, juntamente com o posicionamento do negócio em relação aos demais stakeholders (funcionários, fornecedores, acionistas e consumidores).

Em breve, entrará em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados2, adicionando novas camadas de requisitos a serem observados em contratações que há muito tempo não se limitam a aspectos materiais do negócio, passando a regular também o procedimento da solução de controvérsias, na busca do mecanismo mais adequado para a resolução de problemas de execução, seja no campo do Judiciário, seja através de um método alternativo escolhido de acordo com as peculiaridades do caso específico.

Mais do que definir as condições de preço, forma de pagamento e obrigações das partes, deve o profissional que elabora contratos agir prospectivamente, analisando futuros cenários do relacionamento negocial, elegendo ferramentas de superação de intercorrências na direção do melhor adimplemento possível para contratantes que precisam enxergar no outro polo da avença um colaborador proativo e não um antagonista.

Se nem sempre é fácil ser bem-sucedido na elaboração e execução de contratos fechados e por tempo determinado, o que dizer dos contratos cativos de longa duração, vale dizer, dos contatos relacionais, cuja duração se confunde com a própria existência dos seus figurantes? Para ilustrar, cabe aqui uma pergunta: desde quando, caro leitor, você tem plano de saúde e até quando pretende mantê-lo?

No modelo dos contratos relacionais, a alocação dos riscos do negócio vai sendo alterada durante a sua própria execução, não sendo possível, no momento de sua celebração, precisar o cenário futuro após décadas de vigência de cláusulas negociais pensadas noutro contexto de regulação e equilíbrio econômico.

Para lidar com situações como a acima descrita, desenvolvem-se teorias acerca de contratos propositalmente incompletos, nos quais a mencionada alocação de riscos não é estabelecida no momento de sua celebração, estabelecendo-se, ao contrário, mecanismos para a solução das contingências ao tempo que forem surgindo.

Em tempos de economia do compartilhamento, em que ter propriedade plena, para muitos, deixa de ser algo essencial, para ser substituído pelo direito de uso de certos bens por determinados períodos, considerando-se ainda que a velocidade da disrrupção dos avanços tecnológicos pode tornar obsoleto determinado serviço em poucos anos, fazer uso de formas deliberadamente incompletas de contratos, permitindo avenças sucessivas entre as partes ou a deliberação dos problemas por terceiros previamente estabelecidos para a resolução de questões pontuais, passará a ser uma estratégia negocial cada vez mais frequente a fim de enfrentar as mudanças de circunstâncias que interferem no equilíbrio do acordo entre as partes.

Enfim as perspectivas…

Estamos acostumados a visualizar os contratos como um texto cheio de itens registrados em papel e temos dificuldade em reconhecer, com o mesmo grau de importância e necessidade de atenção, formas de contratação verbais e, especialmente, aquelas realizadas por interação eletrônica. Ainda existem os que pensam que “se não está registrado em papel no cartório, não é tão importante”. Aqui não me refiro apenas à contratação em sites de comércio eletrônico, mas a negócios celebrados em redes sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram) e dentro de aplicativos de jogos e utilitários. Juntem-se a isso as plataformas on line de resolução de conflitos e as transações negociais sobre direitos patrimoniais disponíveis.

Contratamos quando realizamos o download de um joguinho, por mais inofensivo que ele pareça, pois concordamos em dar acesso a dados pessoais que vão remunerar a utilização do aplicativo, em conjunto com a publicidade que deve ser assistida como um requisito para mudar de fase ou conseguir alguma vantagem no jogo. Desenvolvedor, provedores de acesso e aplicação, agentes de marketing, empresas interessadas em divulgar produtos e serviços, são figurantes de uma cadeia complexa de fornecedores que apresenta diversas coligações contratuais, sendo difícil enxergar todo o quadro negocial envolvido.

Um dos maiores desafios que os próximos anos nos reservam é a forma como colocaremos em prática a necessária tradução de uma teoria contratual analógica para um mundo digital. De nada adianta discutir com um profissional o que seria um contrato “5.0” quando não se compreendem adequadamente as categorias fundamentais de um contrato “1.0”. Cite-se, por exemplo, a cada vez mais frequente referência a smart contracts. Mesmo quando celebrados de modo automatizado, por vezes com utilização de recursos de inteligência artificial, os requisitos de existência, validade e eficácia estão presentes na programação que possibilita sua concretização no mundo jurídico.

Via de regra, experimentamos um período de lacuna legislativa sobre parte considerável dos avanços tecnológicos citados acima. Enquanto operadores do direito, não podemos aguardar a elaboração de novas leis para tratar das situações que já estão a ocorrer. Há se se funcionalizar e ressignificar institutos clássicos da teoria contratual e fazer uso de uma hermenêutica contratual que garanta efetividade aos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição.

É preciso discutir o futuro (= novas formas de contratação e a necessidade de sua regulação), sem esquecer o presente (= tradução e ressignificação dos institutos). Neste aspecto, o advento de novas iniciativas legislativas não pode comprometer uma base teórica sólida que vem sendo lapidada no último século.

Desse modo, causa preocupação o projeto de um novo Código Comercial3 que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma4, ao tempo que, infelizmente, não aprofunda em seu texto o debate sobre as inovações tecnológicas aqui debatidas. As referências ao comércio eletrônico, utilização de documentos eletrônicos e, principalmente, responsabilidade dos empresários no meio digital carecem de maior discussão e diálogo com outros microssistemas, o que em muito poderia contribuir, especialmente no que se refere às relações empresariais assimétricas, num país no qual parcela considerável dos empresários pode ser enquadrada como pequenos e microempreendedores.

Após todo o esforço de unificação da teoria das obrigações negociais efetuado com a criação do Código Civil em 2002, a simples leitura de alguns dispositivos do referido projeto permite detectar diversos pontos em que não se observa a melhor técnica5, desconsiderando-se o entendimento doutrinário e jurisprudencial já sedimentado em nosso país. A aprovação do texto do projeto, na sua versão atual, repristinaria vários debates no Judiciário sobre a natureza jurídica da relação (v.g., se civil ou comercial), criando um ambiente que parece ser o oposto de quem sustenta serem necessárias a segurança e a previsibilidade na alocação de riscos para o desenvolvimento econômico.

Nos dias atuais, há de se compreender os vários matizes do contrato contemporâneo. Quando se menciona “contrato”, de qual espécie estamos tratando? Seria um contrato paritário, com partes em condições de igualdade, em posição de discutir de modo equidistante e leal seu conteúdo? Seria um contrato entre particulares, preocupado com o valor de uso do bem e as necessidades pessoais de sua família? Estamos tratando de um contrato massificado, impessoal, com predisposição unilateral de suas condições para o oferecimento de produtos ou serviços em que não há espaço para sua customização de acordo com as necessidades individuais específicas? Por acaso seria um ajuste coletivo, que versa sobre interesses de um grupo, com posição jurídica semelhante? Estamos lidando com um contrato celebrado entre pessoas que gozam de capacidade civil e têm plenas condições de compreender o sentido e alcance técnico, econômico e/ou jurídico das cláusulas estabelecidas, ou estamos diante de relações marcadas por uma vulnerabilidade latente e que necessita de regulação?

Tratando de regulação, estamos elaborando um contrato típico com entendimento jurisprudencial consolidado ou lidando com o desafio da lacuna legislativa, num ambiente de forte interferência dos avanços tecnológicos que exigem novas soluções para a garantia da validade e eficácia dos pactos?

A tecnologia não está apenas no conteúdo das avenças, nas na forma de sua celebração. Já estão entre nós contratos celebrados em vídeo, cláusulas negociais com explicação em áudio, hiperlink para um glossário ou ainda para um questionário específico, a fim de tornar inequívoca a manifestação da vontade, bem como o consentimento negocial utilizando assinatura criptografada e registro do negócio exclusivamente em meio digital. Em vez de ir ao cartório assinar a escritura, utilizamos um token para assinar e obter o código de validação, lançando mão das mais variadas formas de plataforma de mídia. Porém, conforme mencionado acima, os contratos ditos “inteligentes” ainda dependem de pessoas responsáveis por sua programação e aplicação.

A fronteira de até onde avançaremos com a inteligência artificial e a internet das coisas ainda está longe de ser definida. Mas o receio daqueles que imaginam que serão substituídos em breve por uma máquina pode reduzir um pouco se nos prepararmos para um novo período no qual a capacidade de argumentação e a criatividade ganharão cada vez mais espaço em detrimento da cômoda opção de realizar tarefas repetitivas.

O contrato do futuro marcará o início de uma caminhada e não necessariamente traçará todos os capítulos do percurso dos contratantes. Os profissionais que atuarem no setor não se despedirão dos figurantes negociais no dia de sua celebração, mas acompanharão a jornada e as necessárias correções de rumo na busca de benefícios mútuos, incorporando avanços científicos, novas oportunidades e interesses, desde que não percamos de vista que o contrato, como instrumento de integração social, evolui e acompanha nossa sociedade em todos os seus passos.

Tem-se afirmado com frequência que não podemos ignorar os avanços. Mas disrrupção e inovação não significam ignorar de onde viemos. Se pretendemos visualizar para onde estamos seguindo, é preciso compreender como chegamos até aqui e quais foram os agentes da mudança.

Sem entender nossos erros e como eles ocorreram, estamos fadados a repeti-los. Se todos parecem concordar que a perspectiva é de mudança, os caminhos para ela não são unânimes e alguns parecem bem tortuosos. Para lançar um pouco de luz sobre a direção a seguir, devemos reafirmar nosso compromisso com a proteção dos sujeitos. A garantia da dignidade não transige com a necessidade de colocar os contratos a serviço das pessoas, e não o contrário.

Que tenhamos um excelente ano.

_______________

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont. Advogado.

2 O art. 65 da Lei nº 13.709/2018, publicada em 15.8.2018, estabelece um vacatio legis de 24 (vinte e quatro) meses para o início da vigência, com exceção dos artigos indicados no inciso I do referido dispositivo.

3 BRASIL. SENADO. Projeto de lei  487/2013. Acesso em 10.12.2019.

4 Para aprofundar a questão, remete-se o leitor ao recente artigo de José Fernando Simão e Marcello Kairalla, publicado nesta coluna e que pode ser acessado no link clique aqui.

5 Para outras considerações e críticas ao projeto, ver o artigo “A interpretação do negócio jurídico empresarial no projeto de Código Comercial do Senado Federal nº 487/2013”, de autoria de Pablo Malheiros, publicado nesta coluna e que pode ser acessado no link clique aqui.

Marcos Ehrhardt Jr.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas. Professor dos cursos preparatórios para carreiras jurídicas Juspodivm (BA), Diretus (AL), IDAJ (PE) e Praetorium (MG). Professor de Direito Civil nos cursos de pós-graduação da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE), da Escola Superior da Magistratura da Bahia (EMAB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Faculdade Baiana de Direito. Advogado.

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