O direito dos vulneráveis na transformação das relações jurídicas privadas, especialmente do contrato contemporâneo

Este ano o Código de Defesa do Consumidor completa trinta anos. O momento é propício para profundas reflexões acerca da retomada de seu protagonismo, especialmente, no que respeita ao contrato, instituto jurídico mensalmente tratado nesta coluna. Se a realidade atual é totalmente diversa daquela experimentada nas três décadas anteriores, isso não retira a imprescindibilidade do CDC enquanto legislação disciplinadora de temas essenciais ao quotidiano dos reconhecidos vulneráveis.

A intensa qualificação jurídica da lei consumerista nacional é fortemente correspectiva à base protetiva constitucional. Isso equivale dizer que o CDC, nas relações jurídicas entre consumidores e fornecedores, teve (e tem) o mérito em conferir concretude e efetividade ao fundamento da dignidade da pessoa humana, retirando-o da ‘eloquência abstrata’ para estabelecer justiça ao caso concreto, quer na esfera individual quer na coletiva, já que intensamente vocacionado à sociedade de massas.

Para isso é de boa medida recordar que tanto na parte principiológica quanto nos fragmentos dispositivos, o CDC enumera e positiva diversos interesses jurídicos contributivos aos valores constitucionais fundamentais, proporcionando ao consumidor, entre outros, direitos de elevada magnitude: vida, saúde e segurança; incolumidade econômica; informação clara, correta e precisa; equilíbrio contratual; prevenção e reparação de danos; proteção de dados pessoais e privacidade. Sem prejuízo de demais tópicos normativos com extremadas correlações jusfundamentais, ainda se sagra como área de informação, enformação e transformação dos rumos macroeconômicos brasileiros, compondo estratégia diretiva conjuntamente a outros princípios da ‘Constituição Econômica’ (CF, art. 170).

Não fossem as observações acima, a legislação consumerista é igualmente cativa à intensa coordenação sistêmica existente entre a Constituição Federal e os tratados internacionais de direitos humanos, justamente porquanto preserva e reconhece, enquanto princípio e na técnica legislativa de presunção absoluta, a vulnerabilidade dos consumidores destinatários finais de produtos e serviços, sempre expostos às falhas de mercado. É esta proclamada vulnerabilidade, oriunda de cartas internacionais e internalizada no direito brasileiro, que vincula o Estado aos deveres de proteção dos direitos fundamentais dos consumidores, fixando diálogo com semelhantes fontes promocionais à pessoa.

Sob esta perspectiva, o conjunto disciplinar vocacionado ao consumidor resta caracterizado como ‘norma-garantia’ à efetiva tutela da grande coletividade de excluídos, mediante estratégia de acessos: ao mínimo existencial via bens fundamentais; à justiça distributiva; e, ao mercado de consumo. Em correntio, a despeito de dogmática própria e independente, a ‘jovem trintenária’ codificação merece respeito e seguidas atualizações adequadas (desde que compatíveis), mesmo porque, ao lado de outros microssistemas conflui na realizabilidade diária do ‘direito constitucional protetivo1. Nítido trajeto bumerangue dado que buscando fundamentação na Lei Maior, à mesma devolve efeito útil e justo.

Epistemologicamente, o direito do consumidor aos poucos firmou-se na ciência jurídica. A doutrina propiciou salto qualitativo e especializado analiticamente quanto aos conhecidos institutos jurídicos de direito privado (contrato, responsabilidade civil, oferta, direitos da personalidade etc.), que foram readequados conforme as diretrizes fundantes do microssistema, dentre tantas a ordem pública contratual.

Se para parte de respeitável doutrina, o contrato, além de programa de regulação jurídica de vontades, é instituto de natureza objetiva e funcional na operação de mercados2 e, por isso, instrumento paritário celebrado em ambiente ‘isento’ de falhas para alcance de finalidades econômicas, para a dogmática consumerista o contrato relaciona-se a pontos científicos extremamente diversos.

Resumidamente, as proposições desencadeadas ao contrato pelo chamado ‘direito dos vulneráveis‘ convergem para: i) consolidação da máxima de que o poder deve ser controlado pela razão; ii) insuficiência de agendas baseadas exclusivamente em eficiência e maximização de riquezas como tábuas de soluções jurídicas e justas; iii) reconhecimento do consumidor no mercado como agente desigual e, portanto, claramente em posição jurídica de desvantagem e desprovido de poder negocial; iv) necessidade de submissão das escolhas econômicas respeitantes à massa de utentes a critérios jurídicos e axiológicos, partindo-se de valores fundamentais (humanidade e dignidade) para atender preceitos de justiça, equidade, segurança3v) compreensão do contrato como instituto jurídico de atendimento às necessidades básicas da pessoa consumidora, mediante razoável equilíbrio.

Essas proposições espargem em conteúdos específicos de enorme repercussão na investigação científica dos contratos, concluindo em ‘nova teoria contratual’. No plano das normas, há imersão respeitável aos princípios da autonomia privada4, boa-fé objetiva5, confiança6, justiça contratual (equilíbrio contratual). Muito embora a doutrina civilista já se debruçasse quanto aos recentes rumos principiológicos dos contratos, o advento do CDC configurou claro estímulo para utilização justificada e motivada das modalidades normativas, otimizando as funções interpretativas e argumentativas, conferindo maior nível de densidade às decisões jurídicas e exigindo maior preparado do operador.

Ressalte-se que a proteção contratual disposta no CDC ressignificou a posição jurídica dos vulneráveis. Havendo nítido liame lógico entre a positivação de limites éticos ao mercado e a exigência de solidariedade, enquanto fundamento constitucional7. Nesta esteira, as fases de formação do contrato (oferta, publicidade8 e força vinculante), execução do contrato (vedação de práticas abusivas, bancos de dados9, cobrança de dívidas, rol de cláusulas abusivas e interpretatio favor consumidor), extinção do contrato (direito de arrependimento, cumprimento imperfeito do contrato, direito de resolução e restituição, direito de revisão) e eficácia pós-contratual (deveres de informação, lealdade e proteção, entre eles a assistência) estão compostas de disposições jurídicas consentâneas à condição humana da pessoa exposta às atividades de mercado.

Não fossem os relevantes pontos aqui distinguidos, ainda é possível descortinar subsídios dogmáticos propiciados pelo direito do consumidor peculiares à ‘taxonomia’ contratual. A edição do CDC e o necessário cotejo com outras legislações (especialmente a civil) à luz das tendências do mercado e das transformações da sociedade civil acabaram por permitir as mais variadas distinções de modelos contratuais. Analisados do ponto de vista do ‘observador externo’, os contratos tornam-se objetos de categorização mais intensificada, abstraindo da então dicotomia paritários – adesão para, sem perder o núcleo central, serem especificados em modelos conforme à funcionalidade e à finalidade operada.

Foi perceptível, portanto, à comunidade acadêmica designações relevantes de modelos contratuais, com destaque: contratos relacionais10 e contratos cativos e de longa duração; contratos existenciais e contratos de lucro; contratos de consumo e contratos interempresariais11; contratos eletrônicos e contratos digitais12.

Classificações apenas se fazem apropriadas quando resultam em serventia e aproveitamento no campo científico e pragmático. E esse foi exatamente o desfecho do rol de categorias propostas pela destacada doutrina, posto que os modelos declinados auxiliam não apenas na hermenêutica contratual, senão na análise da correção do processo obrigacional, no escrutínio das expectativas legítimas que se esperam, e, notadamente, no exame do maior ou menor grau de intervenção dos aparelhos estatais diante da entabulação celebrada.

Questões atinentes ao crédito responsável e superendividamento13, atendimento hospitalar e operadoras de saúde14, telefonia e Internet, financiamentos habitacionais e moradia, educação em estabelecimentos de natureza privada, serviços públicos contínuos, operações bancárias são seguramente dilucidadas (em efetivo ad colorandum) pela percepção dos modelos contratuais.

A jurisprudência nacional evoluiu na efetividade dos direitos (não só contratuais) dos vulneráveis. De início, com muita desconfiança e dificuldade, contando com acórdãos em votos iluminados, porém vencidos, para posteriormente ganhar notável espaço de aceitabilidade perante os Tribunais superiores. A construção de julgados favoráveis aos consumidores não foi tarefa fácil, exigiu trabalho diário, reiterado e cuidadoso. Havia necessidade em ultrapassar e vencer os grilhões de um ‘culto judicial’ extremamente favorável e obsequioso ao direito privado liberal e individualista.

Merece menção a contribuição do saudoso Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior que, com apoio na doutrina de Clóvis do Couto e Silva, sustentou heroicamente a aplicação do princípio da boa-fé e desdobramentos, escrevendo capítulo ‘único e irreversível‘ na história jurisprudencial brasileira: verdadeiro marco teórico da integridade do Direito. Consolidada a jurisprudência quanto aos reclamos dos consumidores, logo alavancaram notáveis prumos diferenciados: suporte valoroso e fundamental para aplicação e interpretação do Código Civil de 2002, quando da respectiva entrada em vigor; e, ‘construção’ de novas soluções ante os problemas detectados nos julgamentos diários, subsidiando prudentemente a doutrina (v.g., nas hipóteses de hipervulnerabilidade15 e do finalismo aprofundado)16.

Atualmente a tutela do consumidor tem dois desafios extremados: a realidade digital e o claro desconstrutivismo estatal. O acendrado volume de inovações geradas a partir do mundo virtual apenas corrobora a evidente e ampla primordialidade de atualização do CDC para tutela satisfatória do usuário. Nas plataformas eletrônicas, do mesmo modo que ocorre no mundo real, são incontáveis as externalidades negativas relativas a acidentes de consumo (defeito), publicidades ilícitas, incumprimento de contratos, uso indevido de dados pessoais, abusos aos direitos da personalidades, tudo a ensejar juridicamente a identificação de notória ‘vulnerabilidade digital’. Dois projetos de lei (3514/15 – comércio eletrônico; 3515/15 – prevenção e tratamento ao superendividamento) em trâmite na Câmara dos Deputados configuram excelentes escolhas valorativas (decidibilidade parlamentar) para empoderar os consumidores em situações de danosidade ou de ameaça de lesão e prejuízo.

Contudo, sobram motivos para preocupação. O enfretamento atual é daninho e perverso. Cinge mais acentuadamente em face de retrocessos desencadeados pela adoção de políticas que tendem a esvaecer e dissipar o direito do consumidor, tanto no campo estrutural, como no jurídico. Exemplos disso são fartos: a instituição de Colégio de Ouvidores no âmbito da SENACON para eventual punição de agentes públicos que compõem o sistema nacional de defesa do consumidor; a criação de pauta para rediscutir decisões administrativas impositivas de multas sancionatórias a fornecedores por condutas violadoras das regras previstas no decreto 2.181/87; e, o pior: nítida sujeição, dos órgãos do governo federal vinculados à defesa do consumidor, ao mercado e às empresas, em inconfessável desvio da finalidade legal e constitucional de promoção ao vulnerável.

Estorvo, recuo, declínio e atraso: onde a grande tendência é a substituição da ética da convicção (fundamentos) pela ética de resultados (eficiência)17. Argentina e Chile experimentaram essa mesma onda ultraliberal, reduzindo o Estado em razões de mercado e deixando ao pleno sabor das injustiças quase a totalidade da população. Os pouquíssimos milionários aumentaram os ganhos em detrimento da grande massa.

Ao menos os consumidores encontram nos PROCON’s, defensorias públicas e Ministérios Públicos o status constitucional inscrito, exigido e positivado: direito fundamental a ser promovido pelo Estado, que deve ser compromissário dos deveres fundamentais de proteção.

Os exercícios das funções e competências pelas instituições mencionadas, somadas ao reconhecido esforço de entidades da sociedade civil organizada, têm por escopo reinserir nas pautas das políticas públicas, de forma transparente e mais incisiva, a relevância cidadã do consumidor, não só enquanto agente ‘no’ mercado, senão pela qualidade de pessoa, cuja dignidade quando respeitada, concede legitimação ao tráfego jurídico.

Referências

BESSA, Leonardo Roscoe. Responsabilidade civil dos bancos de dados de proteção ao crédito. In: RDC. v. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupçãoTercio Sampaio Ferraz Junior, Calixto Salomão Filho, Fabio Nusdeo. Barueri – SP: Manole, 2009.

GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código comentando e jurisprudência. Salvador: JusPodivm, 2013.

GREGORI, Maria Stella. Planos de saúde: a ótica da proteção do consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 13.

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2007.

MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do consumidor endividado II – Vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 329.

MOSSET ITURRAPSE, Jorge. Interpretación economica de los contratos. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1994, p. 25.

NORONHA, Fernando. Contratos de consumo, padronizados e de adesão. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 137-168.

________________. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994.

PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 505.

PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Tomaz; OLIVEIRA NETO, Antônio Alves. Fundamentos dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

ROPPO, Enzo. Il contratto. Bologna: Il Mulino, 1977.

SCHMITT, Cristiano Heineck. A hipervulnerabilidade do consumidor idoso. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 463-493.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 27.

__________

1 LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 13.

2 ROPPO, Enzo. Il contratto. Bologna: Il Mulino, 1977.

3 MOSSET ITURRAPSE, Jorge. Interpretación economica de los contratos. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1994, p. 25.

4 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994.

5 TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 27.

6 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 329.

7 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 505.

8 PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

9 BESSA, Leonardo Roscoe. Responsabilidade civil dos bancos de dados de proteção ao crédito. In: RDC. v. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

10 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2007.

11 NORONHA, Fernando. Contratos de consumo, padronizados e de adesão. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 137-168.

12 PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Tomaz; OLIVEIRA NETO, Antônio Alves. Fundamentos dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

13 MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do consumidor endividado II – Vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

14 GREGORI, Maria Stella. Planos de saúde: a ótica da proteção do consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

15 SCHMITT, Cristiano Heineck. A hipervulnerabilidade do consumidor idoso. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 463-493.

16 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código comentando e jurisprudência. Salvador: JusPodivm, 2013.

17 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Calixto Salomão Filho, Fabio Nusdeo. Barueri – SP: Manole, 200

Fernando Rodrigues Martins
Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Promotor de Justiça em Minas Gerais. Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Uberlândia. Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo