O contrato de underwriting de valores mobiliários

O mercado de valores mobiliários e o princípio do full and fair disclosure

Na atual conjuntura econômica, em razão da redução expressiva observada na taxa básica de juros, os brasileiros têm voltado os seus investimentos para valores mobiliários, como ações, debêntures e cotas de fundos de investimento imobiliários, em busca de melhores perspectivas de rentabilidade. Tais modalidades de investimento apresentam, em contrapartida, riscos maiores do que os produtos financeiros conservadores, como títulos públicos e depósitos bancários, podendo conduzir à perda de todo o capital investido ou até mesmo, em certos casos, à contração de dívida.

Nesse particular, em linha como o modelo regulatório consagrado nos Estados Unidos por meio da Securities Act of 1933 e hoje encontrado na maioria dos países, o direito brasileiro adota o princípio do full and fair disclosure, segundo o qual não cabe ao Poder Público imiscuir-se no exame de mérito das oportunidades de investimento oferecidas ao público, mediante a seleção prévia, por um quadro de técnicos especializados, daquelas julgadas mais promissoras e seguras. Compete-lhe, em vez disso, assegurar o acesso dos investidores a informações corretas, claras e completas para que possam, por conta própria, tomar a sua decisão de investimento de forma informada, assumindo conscientemente os riscos daí decorrentes. Nas palavras sugestivas do jurista norte-americano Louis Loss, um dos fundadores da moderna teoria dos valores mobiliários, “a regulação não foi concebida para privar o cidadão do direito de ser tolo, mas procurou prevenir que outros o façam de tolo”1.

Seguindo tal orientação, a legislação brasileira e, mais especificamente, a regulamentação editada pela Comissão de Valores Mobiliários (autarquia federal vinculada ao Ministério da Economia), promovem a transparência dos emissores e de seus valores mobiliários, com vistas a proporcionar os elementos informacionais necessários à tomada de decisão do investidor.

O investidor se depara com duas formas de adquirir valores mobiliários. De um lado, pode obtê-los de outro investidor, valendo-se das informações disponíveis publicamente para avaliar o preço. De outro, pode comprar ou subscrever os títulos em oferta pública, no mais das vezes realizada pelo próprio emissor, que busca, desse modo, recursos novos para desenvolver as suas atividades produtivas. As ofertas públicas, usualmente, movimentam grandes cifras e exigem do ofertante esforços extraordinários de distribuição, de maneira a alcançar pessoas interessadas em adquirir os títulos por um preço proveitoso. Justamente em razão de sua relevância para a economia, as ofertas se submetem a regramento específico da CVM, que, entre outras medidas destinadas a preservar o bom funcionamento do mercado, requer a prestação de informações minuciosas sobre o ofertante e os valores ofertados.

O contrato de underwriting

Nos termos da regulamentação vigente, o ofertante é, via de regra, obrigado a contratar instituição intermediária (normalmente instituição financeira) para se encarregar da distribuição pública dos valores mobiliários ofertados (Instrução CVM nº 400/2003, art. 3º, § 2º). A função primária desse contrato de distribuição, comumente denominado underwriting, consiste na aproximação entre o ofertante e os investidores com o fim de alcançar o resultado útil da oferta, consistente na subscrição ou aquisição dos valores mobiliários ofertados. O contrato deve conter obrigatoriamente as cláusulas indicadas no Anexo VI da Instrução CVM 400, de 2003, que tratam, entre outros aspectos, do escopo da distribuição, do procedimento a ser observado e da remuneração a ser percebida pelas instituições intermediárias.

Cuidando-se de ofertas vultosas, que exigem maiores esforços de venda e apresentam maiores riscos, faculta-se a formação de consórcio entre diferentes instituições, que passam, assim, a atuar de forma conjunta, em conformidade com as obrigações contratuais assumidas por cada uma. Nesse caso, como previsto no § 1º do art. 34 da aludida Instrução, o contrato deve indicar qual delas assume a condição de instituição líder do consórcio, a quem incumbe desempenhar obrigações específicas previstas na regulamentação da CVM, bem como agir como representante comum das instituições perante o ofertante, os investidores e o órgão regulador.

Na doutrina, apontam-se usualmente duas razões para a contratação de intermediário2. Em primeiro lugar, sublinha-se a falta de expertise profissional do ofertante para conduzir, diretamente, a oferta pública, haja vista os conhecimentos especializados e a experiência que se fazem necessários para levar a bom termo a operação. O ofertante pode enfrentar dificuldades para conseguir, por conta própria, encontrar investidores interessados na oferta e, ainda, definir o preço dos valores mobiliários em valor próximo ao ótimo, que, ao mesmo tempo, maximize a obtenção de recursos e se mostre atraente para os adquirentes. Nesse particular, em razão da sua elevada especialização profissional, a presença da instituição intermediária tende a tornar mais provável o êxito da oferta.

Em segundo lugar, o contrato de underwriting t serve de instrumento de transferência dos riscos da oferta para a instituição intermediária, que pode assumir a qualidade de agente garantidor do resultado almejado pelo ofertante, mediante o recebimento, em contrapartida, da remuneração ajustada contratualmente. Reconhece-se às partes ampla liberdade para dispor sobre a alocação dos riscos no contrato de distribuição. Na prática, identificam-se três modalidades típicas, consoante a extensão dos riscos assumidos pela instituição.

Na primeira, ela se obriga a adquirir todos os valores mobiliários emitidos para, em seguida, repassá-los ao público (straight underwriting ou garantia firme). Na segunda modalidade, compromete-se a subscrever o restante dos títulos que não tenham sido adquiridos pelo público (stand by underwriting). Na terceira, a intermediária não assume os riscos relacionados ao êxito da oferta, prometendo tão somente envidar os seus melhores esforços para colocar os papéis junto ao público (best effort underwriting)3.

Além da sua finalidade intrapartes, a instituição intermediária assume deveres perante os destinatários da oferta, terceiros não contratantes que recebem especial proteção da ordem jurídica. Tais deveres denotam a notável função social desempenhada por essa espécie de contrato.

Reconhecendo a inclinação natural do ofertante em superestimar as virtudes e subestimar os riscos daquilo que está oferecendo, a regulamentação atribui à instituição intermediária (e, em caso de consórcio de distribuição, à instituição líder) o dever de verificar as informações fornecidas na oferta, com vistas a assegurar a sua veracidade, qualidade e suficiência (Instrução CVM nº 400/2003, art. 56, § 1º; Instrução CVM nº 476/2009, art. 11, I).

Ao ofertante cabe a responsabilidade primária pelas informações providas na oferta, incumbindo ao intermediário a função de revisor da adequação dessas informações. Daí a se dizer que o intermediário desempenha o papel de gatekeeper, agindo, no interesse dos investidores, como “guardião” do cumprimento da obrigação imposta ao ofertante.

Cumpre, todavia, ter em vista os limites da atividade conduzida pelo intermediário. Segundo o disposto no art. 56, § 1º, da Instrução CVM nº 400/2003, a instituição “deverá tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões de diligência, respondendo pela falta de diligência ou omissão, para assegurar que: I – as informações prestadas pelo ofertante são verdadeiras, consistentes, corretas e suficientes, permitindo aos investidores uma tomada de decisão fundamentada a respeito da oferta (.)”.

Cuida-se, inegavelmente, de obrigação de meios, não sendo legítimo exigir do intermediário que afirme a infalibilidade das informações prestadas pelo ofertante. A instituição, cumpre reiterar, não presta um seguro de cobertura do risco de falha informacional; ao reverso, a sua obrigação consiste em agregar segurança à qualidade das informações fornecidas aos investidores, sem tornar-se, contudo, garante do bom cumprimento da obrigação de informação imposta ao ofertante.

Ônus da prova e meios de defesa do intermediário

Sendo a obrigação de meios, o inadimplemento da instituição intermediária só se configura ante a comprovação de que não foram empregados o cuidado e a perícia que dela se exigiam, tendo em vista os padrões usuais de diligência profissional. A esse respeito, já se afirmou que, sendo a obrigação de meios, caberia sempre à vítima comprovar o descumprimento da obrigação imposta ao devedor. No entanto, tal entendimento restou superado em virtude da expansão das hipóteses normativas de inversão do ônus da prova4. Na atual ordem jurídica, prevalece o princípio do ônus dinâmico da prova, de modo a fazê-lo recair sobre quem esteja em melhores condições para produzir as provas necessárias à instrução do processo5.

Há boas razões para entender que, a princípio, compete à instituição intermediária se desincumbir do ônus de demonstrar que desempenhou a contento a sua obrigação. Isto porque, nos termos do art. 56, § 4º, da Instrução CVM nº 400, de 2003, cumpre-lhe guardar, por cinco anos, a documentação comprobatória de sua diligência para o cumprimento da obrigação de revisão das informações fornecidas pelo ofertante. Assim, mostra-se razoável supor que esteja em melhores condições do que o investidor para estabelecer a prova de que tenha observado, no desempenho do seu ofício, os padrões usuais de diligência profissional.

Nesse particular, a instituição intermediária dispõe de dois meios de defesa para eximir-se de responsabilidade nos casos em que reste demonstrada a falha informacional do ofertante. O primeiro recebeu na doutrina norte-americana a denominação due diligence defense e consiste na demonstração de que tenha, por conta própria, investigado a correção e a completude das informações prestadas pelo ofertante.

A jurisprudência norte-americana, em lição plenamente aplicável ao direito brasileiro, ressalta que a investigação deve ser razoável, considerada a diligência profissional usual, e não exaustiva, o que sequer seria compatível com o tempo de que dispõe a instituição para realizar a tarefa dentro do cronograma da oferta. Em seu juízo de razoabilidade, os tribunais destacam a importância de o intermediário conduzir uma investigação independente, consultando fontes externas ao emissor sempre que estiverem disponíveis e guardando, ao longo do seu trabalho, uma postura cética em relação às informações recebidas do ofertante. Caso se depare com sinais de alerta (red flags), que levantem dúvidas sobre as informações examinadas, cumpre ao intermediário aprofundar a sua investigação de modo a obter evidências suficientes para embasar a sua opinião.

O segundo meio de defesa decorre da natureza heterogênea das informações relacionadas à oferta. Admite-se que o intermediário possa se valer dos serviços prestados por especialistas para investigar a correção de dados que demandem conhecimentos técnicos. Traduz prática usual no mercado brasileiro a solicitação a um auditor independente de carta de conforto acerca das informações financeiras, bem como a contratação de advogado para emitir parecer legal acerca da conformidade jurídica das informações.

Dado o grau de expertise necessário à avaliação das informações financeiras e dos aspectos jurídicos do prospecto, a instituição pode confiar nas declarações recebidas dos especialistas, sem que seja obrigada a conduzir investigação por conta própria. Assim, se for constatada alguma irregularidade nessas informações, o intermediário pode eximir-se de responsabilidade mediante a prova de que se fiou na opinião de profissional especializado. Cuida-se de meio de defesa que, na doutrina norte-americana, foi cunhado de reliance defense, e cuja validade no ordenamento brasileiro já foi confirmada pela Comissão de Valores Mobiliários6.

No entanto, essa linha de defesa não é absoluta, cessando sempre que a instituição se deparar, no curso da sua atividade de revisão, com sinais de alerta (red flags) acerca da existência de informações falsas, imprecisas ou incompletas. Nessa hipótese, ainda que se trate de algum dado coberto pela declaração de um especialista, cumpre à instituição conduzir uma investigação própria para se assegurar da adequação da informação7.

Conclusões

Com a crescente popularização do mercado de valores mobiliários, mostra-se urgente a tarefa de disseminar as regras de seu funcionamento, entre as quais se destaca o princípio de que o investidor é livre para avaliar e assumir os riscos associados aos investimentos que lhe são ofertados, tendo em conta as informações públicas disponíveis.

Nesse contexto, o contrato de underwriting traduz importante mecanismo de promoção da eficiência das captações públicas de recursos. Embora tenha por finalidade primordial atender aos interesses do ofertante, que almeja levar a bom termo a colocação pública de seus valores mobiliários, o contrato cumpre inegável função social ao servir igualmente de instrumento de proteção dos investidores. A instituição intermediária, como visto, atua como gatekeeper do cumprimento, pelo ofertante, da sua obrigação de prestar informações corretas, úteis e completas ao público.

No entanto, a sua obrigação é de meios, cabendo-lhe envidar os seus melhores esforços na verificação das informações, gerando, com isso, maior credibilidade para a oferta, mas sem se comprometer a alcançar esse resultado prático, de modo que o investidor continua a incorrer, ainda que de forma atenuada, no risco de o ofertante não cumprir adequadamente a sua obrigação de informação.

Com o crescente amadurecimento do mercado, surgem novas questões sobre o regime regulatório das ofertas públicas. Discute-se, por exemplo, a extensão das informações que devem ser obrigatoriamente fornecidas aos investidores, haja vista o tamanho, muitas vezes desmesurado, dos documentos elaborados para essa finalidade. Já se observou a esse respeito que o excesso de informações pode se mostrar tão pernicioso quanto a insuficiência, vez que compromete a capacidade do investidor para identificar, dentre aquelas que lhe são franqueadas, as que são realmente úteis para a sua decisão de investimento.

Essa e outras questões vem sendo continuamente debatidas entre os profissionais de mercado, as suas entidades de representação e a CVM, que já anunciou para 2020 uma ampla reforma da regulamentação das ofertas públicas, que vem sendo ansiosamente aguardada.


1 Louis Loss and Joel Seligman, Fundamentals of Securities Regulation, 1998, 3ª edição, p. 177.

2 Cf. nessa direção Nelson Eizirik, Negócio Jurídico de Underwriting – Questões Contemporâneas, in Ecio Perin Junior, Daniel Kalansky e Luis Peyser (coord.), Direito Empresarial – Aspectos atuais de Direito Empresarial brasileiro e comparado, São Paulo: Método, 2005, p. 250 e seguintes.

3 V. Nelson Eizirik, Emissão de debêntures, in Temas de direito societário, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 403.

4 Seja consentido remeter a Pablo Renteria, Obrigações de Meios e de Resultado: Análise Crítica, São Paulo: Método, 2011, p. 101-121.

5 Nessa direção, o art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil estabelece que: “Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo [probatório] nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”

6 V. Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2015/10276, Dir. Rel. Pablo Renteria, j. 11.7.2017.

7 V. novamente Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2015/10276, Dir. Rel. Pablo Renteria, j. 11.7.2017.

Pablo Renteria
Professor de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio. Sócio do escritório Renteria Advogados. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT. Ex-Diretor e ex-Superintendente de Processos Sancionadores da Comissão de Valores Mobiliários.

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