Texto de autoria de Ronnie Preuss Duarte
A Covid-19 e as modificações das obrigações: rebus sic stantibus x pacta sunt servanda
Sabe-se que há muitos séculos o direito civil lida com a permanente tensão entre a autonomia privada (e a força vinculativa do contrato) e o imperativo de justiça, a recomendar a revisão de ajustes que se tornem marcadamente iníquos1.
Historicamente, desde o século XII, o direito testemunha um movimento pendular que ora prestigia estritamente o que foi contratado (pacta sunt servanda), ora admite a consideração das alterações supervenientes ao status quo contemporâneo à contratação (rebus sic stantibus)2.
Nos últimos tempos, por influxo do liberalismo no Brasil, havia franca opção por enfatizar a força vinculativa dos contratos, o que se extrai, inclusive, de vários dispositivos da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Contudo, em razão dos acontecimentos recentes e consoante já se percebe, haverá uma tendencial mitigação, por parte dos tribunais, da afirmada vinculatividade.
Reforça-se a responsabilidade dos juízes na criação de padrões decisórios claros para a construção de uma jurisprudência que atenda aos reclamos do momento com o necessário equilíbrio e sem incorrer em qualquer dos pecados capitais: a omissão conveniente ou o intervencionismo exagerado.
Nesse contexto singular, aos juízes é confiada a excelsa responsabilidade de, dentro do sistema de precedentes que o CPC/2015 pretendeu inaugurar, clarear os caminhos e dar densidade a preceitos normativos resultantes da aplicação do direito a casos concretos, construindo um indicativo estável para todos aqueles envolvidos no tráfego jurídico.
Aqui, o esforço é pela delimitação de um novo âmbito de legitimidade interventiva (ou seja: quando a intervenção do Judiciário será legítima), afastada, de logo, a abertura de uma via irrestrita para juízos de equidade, hipótese expressamente interdita em expressa previsão legal (parágrafo único do art. 140 do CPC).
Neste ensaio, pretende-se a enunciação de critérios gerais para a atividade decisória no contexto presente, como forma de trazer alguma previsibilidade diante de um ambiente novidadeiro e, com isso, fomentar a segurança jurídica essencial à estabilidade das relações econômicas3.
Revisão dos contratos: alteração das circunstâncias e a (re)distribuição dos riscos
São várias as teorias doutrinárias voltadas à enunciação dos pressupostos e limites à revisão dos contratos, com particular destaque para a alteração da base do negócio (Geshäftsgrundlage), adotada explicitamente pelo Código Civil Alemão e pelo legislador português4.
A regra em qualquer país situado em patamares avançados de desenvolvimento civilizatório é o estrito cumprimento ao quanto pactuado. Cuida-se, para além de imperativo da segurança jurídica, de requisito essencial à sanidade econômica de qualquer nação. As exceções dependem do atendimento aos pressupostos indicados no respectivo ordenamento jurídico. Assim é aqui no Brasil5.
Na verdade, subjacente ao regime jurídico das relações obrigacionais está posta uma matriz de distribuição de risco. Aos sujeitos no tráfego jurídico são imputados riscos pelas superveniências, sendo certo que “as normas de risco não são meros postulados técnicos: elas correspondem a imperativos de justiça”6.
Os prejuízos eventualmente sofridos recaem nas esferas jurídicas nas quais se verifiquem, daí a origem de expressões cujas origens remontam ao período justinianeu: res perit domino, casum sentit dominus, casum sentit creditor, the loss lies where it falls. Nos contratos sinalagmáticos, a regra da distribuição de riscos sugere que, tornando-se inviável a entrega da prestação por um dos contratantes, sem culpa deste, extingue-se a obrigação da contraparte (casum sentit creditor)7.
A assunção de riscos é uma expressão da autonomia privada. É da essência da economia contratual que uns ganhem e outros percam no âmbito das relações negociais. Ao contrário do que pretendem alguns, não há norma geral que assegure, mediante um juízo de equidade, a redistribuição de prejuízos resultantes do malogro de qualquer dos contratantes por fatos supervenientes, ainda que decorra de circunstância injusta e inesperada.
A partir da leitura dos dispositivos legais que admitem a revisão de contratos, infere-se uma limitação à respectiva admissibilidade. Há quase que um consenso no sentido de que só as alterações objetivas, relacionadas à prestação, é que relevam para fins de perquirição da revisibilidade8. Àquele que perde o emprego ou é acometido por moléstia grave não é dado, por exemplo, pretender eximir-se do pagamento das prestações pecuniárias por ele assumidas9. São as alterações na economia interna do contrato que podem atender aos pressupostos à revisão (ou à resolução) dos contratos.
Nem a desgraça pessoal, nem a ventura trazida em superveniência é motivo suficiente para uma alteração nos ajustes contratuais. Os ganhos inesperados e as perdas imprevistas são da fisiologia das relações negociais10.
No que toca ao reforço da excepcionalidade da revisão dos contratos civis em nosso ordenamento, temos de aludir às alterações da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) ao Código Civil, designadamente a previsão contida no respectivo artigo 421 do CCB11. Também digna de nota a previsão do art. 421-A, na qual se estabelece a presunção de paridade e simetria nos contratos civis e empresariais, prevendo expressamente que “a revisão contratual, quando cabível, somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
Cuidam-se de opções políticas legítimas do legislador que, em atenção à previsibilidade que convém à atividade econômica, claramente limita as intervenções judiciais nos contratos, operando-se na hipótese as regras ordinárias de distribuição de riscos. O dispositivo, mesmo em situações emergentes da Covid-19, serve de norte hermenêutico.
A absoluta singularidade das circunstâncias presentes, os padrões decisórios e a jurisprudência de exceção;
Não se pode desconsiderar a magnitude das repercussões sociais da pandemia da Covid-19, as quais se revelam absolutamente imprevisíveis. A analogia com as grandes conflagrações bélicas é mais que adequada.
A doutrina reconhece fenômenos assemelhados como desencadeadores de efeitos jurídicos singulares, notadamente no campo das relações obrigacionais. Juristas portugueses e alemães inserem-nos na categoria conceitual das “grandes alterações das circunstâncias” ou “grande base do negócio”12.
A história dá conta de grandes desenvolvimentos que foram incorporados ao direito na sequência de aplicações vanguardistas de institutos jurídicos realizadas em momentos de crise. Sobre o ponto, há interessante estudo de LOBBAN tratando especificamente dos impactos jurídicos da Primeira Grande Guerra em vários países europeus13.
A tendência é que, pelo menos para a regulação dos efeitos jurídicos da pandemia, construa-se uma jurisprudência de exceção, que deverá atender à finalidade precípua de solucionar os significativos desafios do momento.
É confiada aos juízes a missão de velar pela criação de padrões decisórios claros, evitando casuísmos animados pelo sentimento de comiseração e permitindo que a justiça seja administrada com observância à igualdade reclamada para todos os cidadãos em situação idêntica.
A responsabilidade é enorme, já que, por razões óbvias, magistrados não possuem o conjunto de informações necessário à aferição dos efeitos macroeconômicos dos padrões decisórios que venham a ser estabelecidos. MENEZES CORDEIRO anota que ao juiz cabe a ponderação dos efeitos da decisão não apenas no caso concreto, mas também na sociedade, considerados os casos análogos que mereçam idêntico tratamento14.
Em situações de perdas generalizadas, a multiplicação de decisões em casos individuais pode trazer reflexos econômicos extremamente perniciosos e imprevistos, levando à paralisia ou à quebra de agentes econômicos ou de segmentos empresariais importantes. Este será um ponto sempre digno de consideração.
Bem por isso há de se ter, como condição à utilização de um importante sistema de precedentes que o CPC/2015 pretendeu criar, uma preocupação singular na densificação de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, trazendo previsibilidade e ensejando uma uniformidade da aplicação do ordenamento jurídico. Assim, reforça-se o dever de observância aos elementos da decisão previstos no art. 489 do CPC.
O dever de solidariedade contratual como uma manifestação da boa-fé.
O desenvolvimento da doutrina da boa-fé, contudo, deu-se na Alemanha a partir da vigência do BGB em 1900. A partir do § 242 do BGB, consagradora de uma norma “aberta”, construções doutrinárias e jurisprudenciais desenvolveram figuras que se consolidaram, influenciando subsequentemente vários códigos europeus. A resolução por onerosidade excessiva, a revisão contratual, a lesão e o estado de perigo são figuras associadas originalmente à boa-fé.
Diz-se que a referência à boa-fé é “uma das janelas do sistema”, apta à promoção da oxigenação do direito15. E em momentos de aguda crise, como aquele agora vivenciado, o recurso à boa-fé é ferramental de grande utilidade para juristas e aplicadores do direito. É, para usar a metáfora empregada por GALLO ao tratar dos conceitos jurídicos indeterminados, um “cheque em branco” ou uma “delegação” que o legislador concede à jurisprudência e ao intérprete16.
As figuras da onerosidade excessiva e da supressio são dois exemplos de construções que, partindo da cláusula geral da boa-fé, vieram a ser consagradas na doutrina e na jurisprudência no contexto de crise decorrente de conflitos bélicos17. Inclusive, no caso da onerosidade excessiva, com a positivação de disciplina autônoma em vários ordenamentos jurídicos alterados sob inspiração alemã, dispensando-se a partir de então o recurso à cláusula geral18.
Aqui no Brasil, para os fins perseguidos no presente trabalho, é de se referir à doutrina de SCHREIBER que, nestes tempos de pandemia tem angariado muita simpatia, por potencialmente servir de apanágio para a litigância excessiva que se prevê em razão da crise instalada. Em livro lançado em 2018, o jurista carioca defende, a partir da boa-fé objetiva (art. 422 do CPC), a criação de um dever de renegociação dos contratos em desequilíbrio.
Para o autor, verificada uma situação de desequilíbrio contratual e sem a necessidade de previsão normativa específica, impõe a cláusula geral da boa-fé que o atingido , como dever anexo, cuide de “avisar prontamente à contraparte acerca do desequilíbrio contratual identificado”, existindo a partir daí um “dever de ingressar em renegociação com vistas a obter o reequilíbrio do contrato”. O dever de cooperação quedaria violado no caso de inércia diante do convite à renegociação. Não haveria, segundo SCHREIBER, a obrigação de aceitar a propostas, mas tão-somente o de entabular tratativas sérias com vistas ao reequilíbrio contratual, endereçando respostas em tempo razoável: a pronta interação e a comunicação satisfariam o dever lateral. Seria uma “obrigação de meio” e não de resultado19.
O dever de renegociação, de inegável relevo nestes tempos pandêmicos, insere-se, como dito, num dever mais amplo de cooperação. A sua incidência, com a devida documentação, é de suma relevância para os fins de prova da violação do dever de solidariedade, nas condições presentemente defendidas.
Mas o dever de cooperação pode ser visto em maior amplitude em circunstâncias absolutamente extraordinárias. ERHARDT JUNIOR, em escrito publicado em 2007, tratou dos reflexos do princípio constitucional da solidariedade, admitindo a possibilidade de se impor, nas relações contratuais, “atos de auxílio mútuo (colaboração), a partir de uma perspectiva solidarista”. Na altura já advertia para a necessidade de cuidar “para que tal doutrina não se torne justificativa ideológica a um intervencionismo desorientado”20.
A jurisprudência traz exemplos concretizadores do solidarismo contratual, a exemplo dos incontáveis precedentes do Superior Tribunal de Justiça reafirmando, há muito, a teoria do adimplemento substancial. Em acórdão relatado pelo ministro ROSADO DE AGUIAR, à míngua de expressa previsão legal, entendeu-se que “não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerado o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora”21.
Mais recentemente, em acórdão relatado pelo ministro VILLAS BOAS CUÊVA, acolheu-se a exceção de ruína para alterar o regime de um plano de saúde coletivo cujo regime, se mantido, seria ruinoso para a empresa fornecedora, levando-a potencialmente à quebra da sociedade com prejuízo para todos os conveniados. Houve uma oneração coletiva dos consumidores para assegurar a manutenção da atividade econômica em benefício comum. É de se destacar a referência expressa, no acórdão, à “função social do contrato e solidariedade intergeracional, trazendo o dever de todos para a viabilização do próprio contrato de assistência médica”. Registrou-se, ainda, na altura, a existência de “vedação da onerosidade excessiva tanto para o consumidor quanto para o fornecedor (art. 51, § 2º do CDC)”22.
Os princípios constitucionais da solidariedade (art. 3º, I, da CF) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), apesar de banalizados, merecem referência por encontrarem, nos precedentes acima referidos, bem como na proposta agora apresentada, alguma concretização.
Com efeito, é de se reconhecer, em determinadas situações extraordinárias, um dever de solidariedade nas relações contratuais. Não sob uma perspectiva romântica que imponha o dever moral de auxílio e de repartição equânime de perdas em ambiente de interesses legítima e essencialmente antagônicos, como sói ocorrer no âmbito das relações contratuais.
Uma solidariedade que, destaque-se, é recíproca e não se dirige necessariamente ao contratante hipossuficiente. Nas relações de massa, em situações extremas, a imposição de uma conduta solidária e de pequenos sacrifícios em desfavor de uma coletividade de contratantes afigura-se possível. A proteção transitória da contraparte, em teoria economicamente mais forte, pode se fazer necessária para a preservação de organismos econômicos e até de setores da economia, atendendo-se ao bem comum23.
Em tempos de sofrimento extraordinário e com base na boa-fé, o que se afirma é a possibilidade residual, em situações-limite, do juiz, ponderando as circunstâncias presentes no caso concreto, inclusive as condições subjetivas (pessoais) dos litigantes, proceder à mitigação de prejuízos escandalosos a uma das partes, sempre que a medida em causa impuser perdas mínimas à contraparte.
É oportuno frisar que, considerado o contexto da pandemia, mesmo fora do âmbito das relações contratuais, o solidarismo também pode ser imposto por violação à boa fé subjetiva, agora já com base no art. 187 do CCB. Assim, sempre que na situação específica o exercício de direito subjetivo (inclusive direitos potestativos) ou de posição jurídica individual se configurar como extremamente lesiva a outrem, sem benefício correspondente para o respectivo titular, poderá o juiz determinar as medidas adequadas para a asseguração do dever de solidariedade. A figura tem aplicabilidade potencial em relações familiares, condominiais e societárias24.
Delimitando o âmbito extraordinário de incidência do dever de solidariedade;
O grande desafio, no presente ensaio, é delimitar o âmbito de incidência do dever anexo em causa, evitando a generalização de juízos de equidade e a disseminação de insegurança jurídica.
A solidariedade que aqui se defende é limitada. Atende a situações específicas que exsurgem da pandemia. Se faz presente quando estiver, de um lado, parte exposta transitoriamente à iminente percepção de grave prejuízo patrimonial ou pessoal e, do outro, uma contraparte que não experimentará maiores danos com o retardamento do cumprimento ou com a temporária modulação da prestação de acordo com critérios de equidade.
Imaginemos a situação de um microempresário atuante num pequeno comércio ambulante que, em virtude do isolamento, tenha sofrido solução de continuidade operacional transitória, incorrendo em mora e passando severa privação. Imaginemos, ainda, que o veículo utilizado para a atividade comercial tenha sido ofertado em garantia a um grande banco, comprovando-se que, nas tratativas de renegociação, foi solicitada a postergação do vencimento para a oportunidade normalização das atividades comerciais, garantido o pagamento de todos os encargos contratados.
Em situação assemelhadas, visando a preservação do crédito do devedor e os prejuízos decorrentes da excussão da garantia, viável será a concessão de tutela jurisdicional para a suspensão temporária do pagamento, já que o banco credor não quedará exposto ao risco de percepção de prejuízos significativos.
Importante frisar que o dever de solidariedade é recíproco. Não se destina à proteção exclusiva de hipossuficientes ou de parte individualmente mais fraca. Grandes grupos empresariais podem ser beneficiários da norma. Em relações jurídicas homogêneas massificadas, por exemplo, a revisão ou a resolução de contratos em escala poderá comprometer a continuidade das atividades empresariais da contraparte, justificando a atuação da norma, desde que preenchidos os pressupostos.
Pela natureza excepcional, é de se recusar a respectiva incidência, por exemplo, de maneira indistinta a relações jurídicas massificadas e sem a consideração às particularidades individuais (de cada caso concreto). É de se evitar a sua aplicação no âmbito das ações coletivas, dada a dificuldade de se considerar a situação singular de cada indivíduo do grupo (substituídos no processo). A concessão linear de descontos ou moratórias é algo que pode impingir inaceitável dano à contraparte credora que também estará, provavelmente, atravessando período de crise.
É de se recusar, ainda, a aplicação do dever de solidariedade quando não houver desproporção entre a gravidade das repercussões nas esferas pessoais de ambos os contratantes. À guisa de exemplo, utilizemo-nos do mesmo exemplo trazido acima, do microempresário ambulante, todavia substituindo o banco credor por uma pessoa física igualmente afetada em seus rendimentos por força da Covid-19 e, portanto, com problemas de iliquidez. Ausente a desproporção, forçoso o afastamento da incidência do dever de solidariedade, cuja aplicação é circunscrita a situações excepcionais.
Dever de solidariedade em sua dimensão processual;
A dimensão processual do dever de solidariedade é admissível por força da previsão contida no art. 8º do CPC, para o qual, “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade e a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.
É na concretização do direito material, tornado efetivo por intermédio do processo sempre com a necessária atenção ao bem comum e à preservação da dignidade da pessoa humana que se abre a possibilidade das repercussões processuais do dever de solidariedade decorrente da boa-fé.
Dá-se como exemplo as situações de violação às obrigações contratuais já judicializadas, quando da execução de decisões definitivas ou provisórias. Estas, no presente momento, podem eventualmente materializar a violação do dever de solidariedade. A superveniência da pandemia é hipótese em que se defere ao réu a dedução de novas alegações nos autos (art. 342, I, do CPC), sendo ela um fato público e notório a dispensar a produção de prova (art. 374, I, do CPC).
O art. 493 do CPC permite, aliás, que, ouvida a adversa parte para evitar a prolação de decisão surpresa (nos termos do respectivo parágrafo único), o fato modificativo seja passível de conhecimento oficioso pelo juiz. Também o art. 933 do CPC permite a respectiva consideração oficiosa, por parte do relator, em grau de recurso.
A noção de “fato modificativo”, para os fins aqui colimados, merece uma interpretação extensiva. Cuida-se de um fato novo ensejador do impedimento temporário para a execução de decisão25.
Se, por ocasião da prolação da decisão e à luz do conjunto probatório existente, o juiz ou o relator constatarem situação em que o dever de solidariedade se apresenta, poderá retardar o cumprimento da decisão judicial, atendidos os pressupostos já indicados, nomeadamente a ausência de prejuízo de maior monta a ser suportado pelo beneficiário da tutela jurisdicional.
Imaginemos, por exemplo, uma relação locatícia envolvendo como locador um abastado industrial e como locatário sem recursos e cujo contrato de trabalho foi rescindido por força das consequências da Covid-19, tornando-se inadimplente em plena situação de “lockdown”. Independentemente de qualquer previsão normativa, com base no dever de solidariedade que resulta da cláusula geral da boa-fé, o juiz poderia retardar extraordinariamente a efetivação do despejo.
No caso de ações em curso, admitida a possibilidade de consideração de superveniências fáticas, poderia o juiz suspender a execução do despejo ou, em grau de recurso, conceder-se efeito suspensivo temporário, até a normalização das atividades sociais.
*Ronnie Preuss Duarte é diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia do Conselho Federal da OAB.
1 TERRANOVA registra expressamente que parte da doutrina e da jurisprudência encontram o fundamento da cláusula rebus sic stantibus na equidade. Pode-se afirmar, então, ser ela um mecanismo para concretização do sentimento de justiça contratual no caso concreto (TERRANOVA, Carlo G. Il Codice Civile Commentario – L’eccessiva onerosità nei contratti. Milâo: Giuffré, 1995, p. 17)
2 MENEZES CORDEIRO traz o escorço histórico, anotando expressamente quanto à cláusula rebus sic stantibus uma “evolução pendular quanto ao tema: os juristas do século das luzes vieram a apoiar e, depois, a desamparar, de novo, a doutrina da clausula”. (MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, v. II, t. IV. p. 269)
3 OTERO afirma expressamente que uma das emanações da segurança jurídica é a “garantia decorrente da previsibilidade de que tais decisões concretas se traduzirão na aplicação ao caso individual de critérios já fixados em termos gerais por normas jurídicas antecipadamente conhecidas”. (OTERO, Paulo. Lições de introdução ao estudo do direito. Lisboa: Pedro Ferreira, 1998, vol. 1, t. I, p. 204
4 Na sua concepção original, construída por OERTMANN, base do negócio “consiste na representação de uma das partes, reconhecida e não contestada pela outra, ou na representação comum aos vários intervenientes, sobre a existência de certas circunstâncias tidas como fundamentais para a firmação da vontade”. (ALMEIDA COSTA, Mário Julio. Direito das Obrigações. Coimbra: Almedina, 2004, p. 295.))
5 Sobre os pressupostos ver TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. vol. ún. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 438-439)
6 MENEZES CORDEIRO, idem, p. 296
7 “Nos denominados contratos bilaterais, o risco, de algum modo, distribui-se pelas partes: o credor vê desaparecer o seu direito pela impossibilitação da prestação, mas exonera-se da contraprestação, tendo a faculdade, se já a houver realizado, de a reaver nos termos do enriquecimento sem causa”. (MENEZES CORDEIRO, idem, p. 295)
8 “Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença, tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal momento, e geradoras de onerosidade excessiva para um dos contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação. Não o justifica uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das prestações, porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário, que tenha operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos que o cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só o enriquecimento de um e empobrecimento do outro”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva, 1913-2004. Instituições de Direito Civil: volume 3: contratos, rev. e atual. Caitlin Mulholland. – 22. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 180-181)
9 Nesse contexto, entendeu o STJ que, para justificar a revisão contratual, seria necessário fato imprevisível ou extraordinário, que tornasse excessivamente oneroso o contrato, não se configurando como tal eventual desemprego ou redução da renda do contratante. (…). Esta Corte já decidiu que tanto a teoria da base objetiva quanto a teoria da imprevisão “demandam fato novo superveniente que seja extraordinário e afete diretamente a base objetiva do contrato” (AgInt no REsp 1.514.093/CE, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, DJe de 7/11/2016), não sendo este o caso dos autos. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 1.340.589/SE, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 23/04/2019, DJe 27/05/2019)
10 Como bem lembra VARELA, tratando especificamente de uma compreensão bastante restritiva do que se entende impossibilidade de cumprimento, afastando-se o infortúnio pessoal como escusa para o inadimplemento: “A dureza que a solução possa revestir em certos casos, forçando o devedor a sacrifícios aparentemente excessivos para cumprir, não é ao direito civil, através do afrouxamento do vínculo obrigacional, que compete atenuá-la, mas ao direito processual civil, impedindo na acção executiva a penhora e a venda judicial de bens essenciais à vida e ao sustento do executado e de seu agregado familiar” (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1997, v. 2, p. 73)
11 Art. 421, parágrafo único do CCB – “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
12 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, v. II, t. IV, p. 326
13 LOBBAN, Michael. Special issue the Great War and private law: Introduction Lobban. Reino Unido: Hart, 2014, p. 165, consultado em 12.5.2020 no endereço eletrônico. Também VARELA dá conta que, na Alemanha, durante primeira guerra mundial, houve um alargamento do conceito de impossibilidade de cumprimento da prestação para fazer frente ao contexto existente. Na altura, alguns setores da doutrina alemã “consideravam liberatória, em certos termos, a mera impossibilidade relativa ou econômica” (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 1997, v. 2, pp. 68-69)
14 “Perante uma modificação ambiental de vulto, todas as situações singulares são, em princípio, tocadas por igual. Uma decisão isolada que provoque determinada adaptação pode, perante as outras, ter consequências distorcidas: a sua ponderação requer a instrumentalização própria dos departamentos técnicos que é suposto auxiliarem o legislador na sua tarefa. Por outro lado, a solução pontual solicita que todos os problemas análogos, uma vez colocados judicialmente, terão saída similar: a revisão de um contrato deixa esperar revisões de todos os pactos semelhantes, e assim por diante. Entra-se num domínio de grandes proporções, onde a regulação terá de ser genérica: de novo se solicita a intervenção do legislador.” (Idem, p. 329)
15 VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria geral do direito civil: relatório. Lisboa: Editora FDUL, 2000, p. 65
16 Diz o autor, ainda, que seriam “um tipo de anel de conjunção ou de ligação entre aquela que é esfera típica do legislador e aquele que é, por seu turno, o campo de ação do intérprete e do juiz”. (GALLO, Paolo. Buona fede oggetiva e transformazioni del contrato. Rivista di Diritto Civile. Pádua: Editora Cedam, n. 2, mar-abr, 2002, p. 240)
17 NEVES também lembra de decisão do Supremo Tribunal Alemão que, no contexto de crise imediatamente posterior à Primeira Grande Guerra admitiu a “Aufwertung” (reavaliação da moeda). (NEVES, José Roberto de Castro. Direito das obrigações. Rio: Editora GZ, 2018, p. 198)
18 MENEZES CORDEIRO, em afirmativa expressamente refutada por LOBBAN, registrou que “a grave crise econômica registrada na Alemanha, no espaço entre as duas guerras, levou a jurisprudência a reconhecer definitivamente eficácia à alteração das circunstâncias, em nome da boa fé” (idem, p. 274). Em outra obra, sobre a surrectio, ver, do mesmo autor, o Tratado de direito civil português. Coimbra: Almedina, v. 1, 1999, p. 206.
19 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018, kindle, Pos 4864 de 12806 e ss.
20 ERHARDT JUNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque. O princípio constitucional da solidariedade e seus reflexos no campo contratual. publicado em 05/2007 no sítio, em consulta realizada em 13/5/2020
21 REsp 469.577/SC, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, j. 25.3.2003, DJU 05.05.2003, p. 310
22 Resp 1479420/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 01.09.2015, DJe 11.09.2015
23 Anote-se que a medida de normatização de um regime emergencial deve ser adotada preferencialmente pelos poderes Executivo ou Legislativo, como ocorreu com as medidas provisórias 925/2020 e 948/2020, quando um regime especial foi instituído para a proteção dos setores da aviação civil, do turismo e da cultura. Contudo, em situações extremas, consideradas as circunstâncias, também o estado-juiz poderá fazê-lo. Como já indicado, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a exceção de ruína para adequações em relações coletivas.
24 Como bem pontuado por MENEZES CORDEIRO, “as instâncias de decisão – maxime, os tribunais – foram levadas, com ou sem o apoio da doutrina, a encontrar novas soluções, por vezes mesmo contra legem. Instáveis no início, essas soluções vieram a cristalizar-se em institutos que hoje ninguém poria em dúvida’ e conclui dizendo que “apenas a inventividade permitirá encontrar soluções ainda redutíveis ao Direito e não ao mero arbítrio” (Idem, p. 265).
25 Apesar da ausência menção expressa no texto legal no que toca a atendibilidade superveniente dos fatos impeditivos (em particularidade que é comum ao CPC/73), CUNHA observa que “os fatos impeditivos podem, entretanto, ser objeto de conhecimento superveniente, devendo, então, ser considerados inseridos na previsão legal”. (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil: uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 91).