A contratação de advogados e a jurisprudência
A jurisprudência, nas demandas que envolvem contratos de prestação de serviços advocatícios, é rica e plural. Há decisões para todos os gostos, e com as mais variadas soluções. Cite-se dois exemplos interessantes, ambos do TJPR, bem dissonantes. Num determinado caso, o Tribunal entendeu não ser ilegal nem abusiva a fixação de honorários de êxito no importe de 50% do benefício econômico obtido pelo cliente1; assim não interferiu nem revisou o contrato, privilegiando a autonomia das partes. Noutro caso2, o TJPR entendeu, num primeiro momento, que não se podem cumular honorários pro labore e honorários de êxito3; depois, em Embargos de Declaração, decidiu que pode haver cumulação, mas reduziu o valor da honorária de êxito (de 10% para 5% sobre o proveito econômico). Justificou essa intervenção dizendo que a fixação dos honorários deve levar em conta os “desdobramentos fáticos e jurídicos desse tipo de contratação de honorários advocatícios na realidade da advocacia brasileira”4.
Agora, novo julgado que reflete essas inconsistências (erros ou acertos?) do tratamento judicial dado à contratação de advogado veio à luz. O STJ, no REsp nº 1.882.117/MS, decidiu que o contrato de prestação de serviços advocatícios não pode estipular multa para a hipótese de revogação unilateral do mandato. No que interesse, diz a ementa:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO. AUSENTE. DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. PREVISÃO DE PENALIDADE CONSUBSTANCIADA NO PAGAMENTO INTEGRAL DOS VALORES PACTUADOS ANTE A REVOGAÇÃO UNILATERAL DO MANDATO. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO POTESTATIVO DO CLIENTE DE REVOGAR O MANDANTO, ASSIM COMO É DO ADVOGADO DE RENUNCIAR.
(…)
- Em razão da relação de fidúcia entre advogado e cliente (considerando se tratar de contrato personalíssimo), o Código de Ética e Disciplina da OAB (CED-OAB) prevê no art. 16 – em relação ao advogado – a possibilidade de renúncia a patrocínio sem a necessidade de se fazer alusão ao motivo determinante, sendo o mesmo raciocínio a ser utilizado na hipótese de revogação unilateral do mandato por parte do cliente (art. 17 do CED-OAB).
- Considerando que a advocacia não é atividade mercantil e não vislumbra exclusivamente o lucro, bem como que a relação entre advogado e cliente é pautada na confiança de cunho recíproco, não é razoável – caso ocorra a ruptura do negócio jurídico por meio renúncia ou revogação unilateral mandato – que as partes fiquem vinculadas ao que fora pactuado sob a ameaça de cominação de penalidade.
- Não é possível a estipulação de multa no contrato de honorários para as hipóteses de renúncia ou revogação unilateral do mandato do advogado, independentemente de motivação, respeitado o direito de recebimento dos honorários proporcionais ao serviço prestado.
- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido.
(STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.882.117, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 27/10/2020)
A decisão já é objeto de debate pela comunidade jurídica em geral5 e desperta – evidentemente – o interesse dos advogados6.
A contratação de honorários: cada caso é um caso
É preciso atentar para a impertinência da aplicação ampla e irrestrita das conclusões alcançadas pelo STJ no REsp nº 1.882.117/MS. A solução, embora soe adequada para determinados casos e alguns contratos em particular, nem por isso alcança todas as múltiplas possibilidades que a casuística oferece. Cada contratação de serviços jurídicos se reveste de características peculiares, que reclamam soluções igualmente peculiares7.
Basta ver que a remuneração dos serviços advocatícios pode assumir, a princípio, dois formatos: em honorários pro labore e ad exitum. A diferença entre os modelos decorre de suas respectivas causas. No primeiro caso, os honorários correspondem à contraprestação pelos serviços. A causa imediata da remuneração – que é contraprestação, o componente do outro extremo da relação sinalagmática8 – é o serviço considerado em si mesmo, independentemente do resultado proporcionado ao contratante. Inúmeras são as formas de pactuar a remuneração pro labore: com pagamento inicial ou final, parcelado ou não; com pagamentos periódicos, como na advocacia de partido; com pagamentos escalonados conforme o grau de jurisdição em que ocorre a atuação etc.
A segunda espécie de remuneração (cotalícia, quota litis ou ad exitum) tem como causa, no outro polo da relação sinalagmática, a obtenção de alguma vantagem pelo constituinte. Para que seja devida esta honorária, deve-se apresentar um determinado e esperado resultado, fruto da atuação do advogado. Neste caso, a exigibilidade dos honorários está necessariamente condicionada (condição suspensiva) à efetiva concretização do resultado previsto em contrato. Também há diferentes possibilidades: porcentual sobre o benefício econômico obtido pelo cliente; valor nominal em razão do provimento de um recurso; pagamento em razão do sucesso na negociação de uma determinada cláusula específica, etc.
Se o cenário é assim rico; se as particularidades são tantas quantos são os diferentes contratos9, soluções generalistas não dão conta de todos os casos adequadamente. Esse raciocínio se aplica também às sanções contratuais em caso de revogação precoce do mandato. A decisão do STJ referida, embora não seja revestida das qualidades de um precedente (na acepção do art. 927, CPC, pelo menos), fixa uma tese cuja reprodução automática e generalizada deve ser evitada.
Será injusta (e antijurídica) a estipulação que determine, em caso de revogação, o vencimento antecipado da integralidade dos honorários pro labore que seriam pagos ao final do serviço? Se o trabalho não se realizou em todo, há causa para a remuneração integral?
Será também injusto que, em caso de extinção precoce do mandato, os honorários ad exitum se convertam automaticamente em uma determinada quantia a título de pro labore (ou mesmo de multa compensatória)10?
As circunstâncias são distintas, e como tais devem ser apreciadas e julgadas.
A questão da confiança
O Superior adota como razão de decidir o argumento de que a contratação de advogados se funda na confiança. A decisão especa-se, inclusive, em dispositivos do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (Res. 02/2015/CFOAB)11. Embora a afirmação seja verdadeira, é também verdadeiro que todas os contratos se fundam na confiança e devem se desenvolver em torno dela, na direção do adimplemento12.
A relação entre cliente e advogado, ainda que fundada em uma confiança peculiar, de índole subjetiva, atraente de regime próprio, é também e sobretudo uma relação obrigacional. Não é imune, portanto, à observância do modelo da boa-fé objetiva, que impulsiona o laço obrigacional ao adimplemento. A falha na performance integral do contrato, ainda que causada pela possível revogação do mandato (motivada, e.g., pela quebra da confiança em sua faceta subjetiva), frustra o iter do liame contratual.
Imagine-se a hipótese em que o advogado é contratado para atuação em uma complexa ação reparatória de danos, com remuneração em honorários pro labore e ad exitum. Realiza todas as providências preparatórias; pesquisa extensivamente jurisprudência e doutrina; desenvolve uma tese para o caso; protocola a petição inicial (que sintetiza as estratégias processuais e a condução do processo). Ato contínuo, o cliente cassa o mandato e constitui novo causídico. Há uma violação clara da confiança subjetiva e objetiva, dessa vez em prejuízo do advogado. Por qual razão não é possível tutelar, em contrato, por cláusula penal compensatória, essa justa expectativa do advogado de realização da evença? Se justifica, efetivamente, resolver o problema apenas pela estreita via do arbitramento e da reparação de danos?
Considerações finais
Proibições gerais e abstratas às cláusulas penais (notadamente as de índole compensatória), às cláusulas de vencimento antecipado, enfim, às previsões contratuais que desde logo traçam os efeitos e consequências para a extinção precoce do contrato – e.g. pela revogação do mandato -, impedem injustificadamente a regulação privada de fenômenos da vida de relação. Esses fatos jurídicos, mais do que resolvidos pelo direito de danos, podem ser destinatários do exercício da autonomia privada.
É certo que, ao fim e ao cabo, essas estipulações contratuais não podem ter o condão de obstaculizar o exercício, pelo cliente-mandante, da faculdade de revogar o mandato ou de desistir da ação, por exemplo. Da mesma forma, e na mesma medida, devem ser tutelados os interesses do advogado-mandatário, que tem a justa expectativa da realização plena do contrato. A confiança, ao contrário de afastar, parece justificar a possibilidade de gravar contratos de prestação de serviços advocatícios com cláusulas cominatórias de sanção na hipótese de revogação do mandato (em alguns casos e guardadas certas limitações).
O julgado do REsp nº 1.882.117 resolveu (certo ou errado) um caso. E os demais?
*Eroulths Cortiano Junior é pós-doutor em Direito. Professor da UFPR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.
**Paulo Mayerle Queiroz é mestrando em Direito na UFPR. Advogado em Curitiba/PR.
1 TJPR, 12ª Câmara Cível, AC nº 988.646-0, Rel. Des. Rosana A. G. Fachin, julg. 06/03/2013. No corpo do acórdão constou: “Vigora no Direito Contratual, o Princípio da Autonomia da Vontade, por meio do qual as partes possuem a liberdade de contratar…” e “Dessarte, o fato de terem sido estipulados os honorários em 50% (cinquenta por cento) sobre a quantia a ser recebida pela constituinte, não caracteriza a abusividade da cláusula”.
2 TJPR, 11ª Câmara Cível, AC nº 1.140.680-3, Rel. Juiz 2º Grau Francisco Cardozo Oliveira, julg. 02/04/2014.
3 No acórdão da Apelação constou: “No caso em exame, considerando que o apelante já pagou o valor de R$ 10.000,00 referente à remuneração concomitante à atuação do advogado no processo, bem como que a pactuação da cláusula quota litis constitui exceção, pode-se concluir que a cumulação das duas formas de remuneração fere o regime ético-disciplinar da advocacia”.
4 Nos aclaratórios, o Tribunal levou em conta fatores exógenos ao contrato, como o incentivo a demandas de massa, a entrada de jovens advogados no mercado de trabalho e até as peculiaridades da ação para a qual o advogado foi contratado. Posteriormente, o STJ reformou o acórdão do TJPR e revigorou a sentença de 1º Grau.
5 Por todas as publicações sobre o tema, exemplificativamente: CRUZ E TUCCI, J. R.. Interpretação do STJ de cláusula penal no contrato de honorários. 2021. Revista Consultor Jurídico. Acesso em: 11 mar. 2021; Especialistas opinam sobre rescisão unilateral de contrato advocatício: Recente julgado da 3ª turma do STJ fixou que a rescisão unilateral não enseja multa de pagamento integral de honorário. Acesso em: 11 mar. 2021.
6 O perfil oficial do Superior Tribunal de Justiça no Instagram (@stjnoticias) publicou sobre o resultado do julgamento (vide). No momento em que é elaborado este texto, a publicação conta com mais de 60 comentários (a título de comparação: outras postagens do mesmo perfil contam com uma média aproximada de 10 comentários).
7 Não se ignora o papel de uniformização que assume uma Corte como o STJ. A questão é outra: a casos similares, soluções similares; a casos distintos, soluções distintas.
8 Sinalagma, nos dizeres de Pontes de Miranda, é o “toma-lá-dá-cá” (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 2012. Passim).
9 A complexidade que informa a fixaão da horário aparece no art. 49 do Código de Etíca e Disciona da OB, que orienta a contrata~çao a parir de vários parâmetros: Art. 49. Os honorários profissionais devem ser fixados com moderação, atendidos os elementos seguintes: I – a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; 8 Ver arts. 21 a 26 e 34, III, do Estatuto e arts. 14 e 111 do Regulamento Geral. CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB 13 II – o trabalho e o tempo a ser empregados; III – a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros; IV – o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para este resultante do serviço profissional; V – o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente eventual, frequente ou constante; VI – o lugar da prestação dos serviços, conforme se trate do domicílio do advogado ou de outro; VII – a competência do profissional; VIII – a praxe do foro sobre trabalhos análogos.
10 O que o STJ também rejeita, vide REsp nº 1.346.171/PR, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão. A decisão se sujeita às mesmas críticas aqui expostas.
11 Sobre o assunto específico, o CED/OAB dispõe apenas: “Art. 17. A revogação do mandato judicial por vontade do cliente não o desobriga do pagamento das verbas honorárias contratadas, assim como não retira o direito do advogado de receber o quanto lhe seja devido em eventual verba honorária de sucumbência, calculada proporcionalmente em face do serviço efetivamente prestado.”
12 Essa conclusão é secundada pela seminal obra do Prof. Clovis do Couto e Silva: A obrigação como processo. É também em função da textualidade do art. 421, CC, que se pode afirma-lo.