Michel Foucault numa série de palestras proferidas na PUC-RJ na década de 70 do século passado colocou em xeque a teoria do conhecimento, revelando através das formas o vínculo entre a verdade e as práticas sociais e políticas.1 Se é possível também aqui desnovelar a trama, compreendemos que lei do superendividamento muito contém sobre a forma.
Assim ela: enforma (positiva novos princípios como a prevenção, precaução e evitabilidade da exclusão social); informa (insere dispositivos sobre conteúdos de contratos, ofertas e publicidades); conforma (apresenta vedações a comportamentos lesivos e abusivos); transforma (reinserindo o consumidor no mercado pela repactuação); disforma (repaginando o conceito vetusto de crédito, para lhe atribuir uma responsabilidade social).
Neste primeiro ano de vigência da lei 14.181/21, instrumento legislativo de atualização do Código de Defesa do Consumidor, muitas reflexões estão sendo desencadeadas (diga-se, corretamente) e direcionadas às hipóteses de conciliação e mediação para repactuação das dívidas que atentam contra o mínimo existencial do consumidor em ‘situação jurídica de superendividamento’. Trata-se da aplicação do art. 104-A do CDC que dispõe sobre a realização de audiência global com todos os credores e presidida pelo juiz, a pedido (e interesse) da pessoa natural, com vistas à aprovação de plano de pagamento com as garantias daí decorrentes.
Não há dúvidas quanto aos benefícios da conciliação e mediação, já que a pacificação dos conflitos nestas circunstâncias tem como características o compartilhamento de decisões e a rapidez dos efeitos buscados, muito embora os institutos tenham nítidas diferenças do ponto de vista da autocomposição assistida.2 A lei do superendividamento, em atendimento à dicção processual, conferiu primazia às técnicas consensuais referidas e foi além empoderando o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, vide art. 104-C do CDC, a fim de possibilitar outro acesso à ‘ordem jurídica justa’.3
Neste sentido, tanto o Conselho Nacional de Justiça como a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, cada qual no âmbito e espaço de atuações conforme competência constitucional, já criaram grupos de pesquisadores e representantes de setores interessados no intuito de conferir a necessária funcionalidade institucional aos CEJUSCs e NAS, respectivamente.
Aqui recai um ‘hiato de emergência’: entendemos que os Núcleos de Apoio aos Superendividados (NAS) representam nova ‘categoria institucional’ no Brasil, com assento formal no art. 5º inc. VII4 e art. 104-C do CDC. Enquanto o primeiro dispositivo concede o caráter institucional, o segundo circunscreve as funções a serem desenvolvidas. Podem ser localizados dentro da função procedimental dos direitos fundamentais5, materializando deveres fundamentais do Estado para a promoção do consumidor superendividado. Enfim, não se trata de funcionalidade qualquer, senão dirigida a atendimento de pessoa em situação de exclusão social.
Contudo, apesar de toda estratégia pela consensualidade, a novel legislação, que como a lei atualizada (CDC) também é de ordem pública e interesse social, guarda diversas disposições ou ‘normas injuntivas’, assim compreendidas aquelas que reclamam, expressa ou implicitamente, ‘a atribuição de efeitos mesmo em situações ainda não definidas’.6 No âmbito do superendividamento seriam normas que estão a defender interesses coletivos (por exemplo, o núcleo familiar); interesse de terceiros (reflexamente o próprio mercado com o retorno do acesso ao crédito); interesse dos próprios intervenientes (para proteção dos economicamente fracos ou vulneráveis).
Tais normas injuntivas estão bem distribuídas tanto na parte geral (principiológica), como nos capítulos (dispositivos) da prevenção e tratamento ao superendividamento. Com grande destaque, na introdução da lei atualizadora, são desde já verificados os princípios da prevenção, do tratamento e da ‘evitabilidade da exclusão social’ do consumidor superendividado (CDC, art. 4º, X).
Cumpre anotar que enquanto os princípios da prevenção e tratamento são de estratégia motriz (meio), o princípio da não exclusão social é de caráter finalístico (telos) e tem grande contribuição na afirmação e efetividade do direito básico ao mínimo existencial, também introduzido pela lei atualizadora. Neste ponto, há algo a esclarecer: a jusfundamentabilidade da Lei 14.181/21 é impactante e compromissária às mazelas sociais brasileiras, já que positivou temas dogmáticos relativos aos direitos fundamentais (mínimo existencial e não exclusão social) que não estavam diretamente transcritos no Texto Constitucional. Daí a feliz designação da novel lei na qualidade de direito privado solidário.7
Na parte dispositiva da mesma lei, no que tange à prevenção (arts. 54-A a 54-D) as prescrições injuntivas são verificáveis na fixação de deveres (sistema de limites) aos fornecedores de crédito que se altercam em: i – deveres de informação (custo efetivo do crédito, taxa mensal de juros, montante das prestações etc.); ii – deveres de abstenção (assédio, pressão, oferta enganosa etc.); iii – deveres de conduta (esclarecimento sobre a modalidade do crédito, avaliação das condições de crédito, entrega de cópia dos instrumentos contratuais etc.).
O tema dos deveres, tão essencial para a disciplina do crédito responsável e superendividamento, alhures já foi enfrentado: “deveres são tijolos que constroem um edifício, a obrigação (Schuld) de cumprimento voluntário […] Atente-se que este ‘edifício obrigacional’ projeta sempre uma ‘sombra’ (Haftung), uma consequência: a segunda obrigação, aquela de cumprimento impositivo, coativo, por império do Direito e que pode ser exigida na Justiça […] Realmente responder/responsabilidade é a consequência daquele que viola sua obrigação primeira ou viola quaisquer dos deveres a ele imputado”.8
O incumprimento de tais ‘deveres injuntivos’, que ofendem a ordem pública, autorizam ipso facto o exercício de objeção de pré-executividade, antes mesmo da oposição de embargos do devedor e sem a necessidade de segurança pela penhora9, sem prejuízo da revisão-sanção de que trata o parágrafo único do 54-D.10
Pois bem, já na repactuação, prevista a partir do art. 104-A, as normas injuntivas estão perfilhadas e segmentadas nas seguintes vinculações: a prática da audiência global (com vistas de coleta simultânea e sucessiva das propostas de conciliação na mesma sessão)11; a preservação do mínimo existencial (compreendido como direito-garantia do consumidor superendividado sob a proteção do Estado e não direito prestacional por conta do Estado)12; dever de presença na audiência global dos credores, sob pena de sanções pelo não comparecimento injustificado (extensão do crédito responsável pós-contratual que se perpetua na fase de repactuação)13; dever de renegociação (inerente não só à boa-fé objetiva, como à função social do crédito, próprio do solidarismo contratual)14; conteúdo mínimo do plano de pagamento (escalonamentos, dilações de prazo, diminuição de encargos, bem como deveres de abstenção do consumidor superendividado); vedação da insolvência (entre os ‘telos’ da lei está a promoção do consumidor e seu retorno ao mercado, sendo o instituto da insolvência contrário e incoerente aos propósitos de tratamento).
E em caso de ausência de acordo, como o consumidor poderá se valer dos direitos-garantias lhe tocados? Não há dúvidas que a lei reagiu a essa situação e criou instituto processual capaz de propiciar, nos contornos da judicialização, o tratamento (leia-se remédio) compulsório ao superendividamento enquanto patologia social, econômica e jurídica, nos termos do art. 104-B do Código de Defesa do Consumidor.
Trata-se da ação por superendividamento, verdadeira ação de dignidade constitucional, porquanto tem por escopo o retorno à dignidade e a efetividade de diversos direitos fundamentais, especialmente aqueles de natureza social (CF, art. 6º). Diz-se garantia procedimental na medida em que tem o condão de impedir a exclusão social (como asseverado: novo princípio finalístico e de arrimo ao mínimo existencial). Mesmo não estando alinhada ao rol dos conhecidos ‘remédios heroicos’ próprios da Constituição Federal, destina-se a assegurar condições para o exercício de diversos direitos próprios ao cidadão, enfim “as liberdades valem por si; as garantias têm função instrumental e derivada”.15
Não se afina, diretamente, como pleito perante o Poder Judiciário para cancelar ou negar a existência de dívida ou relação jurídica, mas para ‘garantir’ o respeito ao ‘mínimo existencial’ e dos direitos nucleares que compõem essa superestrutura constitucional. Cumpre função de direito fundamental de ação16 sem se descurar, primordialmente, em revelar-se ‘fundamental ação para efetividade de direitos’.
E essa interpretação não é só factível, como atinente às diretrizes fundantes da processualidade civil, já que no disposto do art. 1º do CPC tem-se com tranquilidade que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil.
Nos parece que o mais assente é o consumidor superendividado buscar a promoção em face do superendividamento de forma consensual perante o órgão administrativo (NAS) ou judicial (CEJUSC), respectivamente, conforme arts. 104-A e 104-C. Contudo, isso não afasta o direito fundamental de ação que pode ser manejado na ausência de conciliação perante os órgãos públicos ou mesmo independentemente dela. Não é demais lembrar que o tempo do processo é bastante diferente que o tempo de dignidade da pessoa.
Estamos diante de recente modelo de actio, que reúne entre as finalidades (i) a repactuação das dívidas, (ii) a revisão e (iii) integração dos contratos, ensejando a atuação dos deveres de proteção para fixação do plano compulsório, confirmando que não só as prestações contratuais e creditícias podem sofrer alterações nas circunstâncias, afetando a sinalagma, senão preponderantemente a pessoa natural pelos acidentes da vida (desemprego, óbito e divórcio) que lhe atuam verticalmente em seu bem-estar psicofísico social.
A polissemia do interesse processual (necessidade+adequação+utilidade+atualidade) se soma à clara noção de que para as ações de superendividamento há plena coordenação com outro interesse: o interesse público, aquele próprio para viabilização de acesso à sociedade, livre justa e solidária, à erradicação da pobreza e de outras formas de exclusão, amparados na interpretação conforme a ‘máxima efetividade dos direitos fundamentais’.17
E nessa ordem de ideias soa absolutamente correto manifestar que a ausência de regulamentação ou insuficiente regulamentação quanto ao mínimo existencial não deve impedir o desenrolar (leia-se repactuação, revisão e integração) dos pleitos aforados pelos consumidores, isto porque, figurando como conceito jurídico indeterminado fundamental, o mínimo existencial deve ser percebido e preservado não apenas na repactuação (art. 104-A e 104-B), mas na configuração do superendividamento (art. 54-A) e, sobretudo, quando da oferta do crédito (art. 6º, XI).18 Destarte, já não faz sentido permitir a oferta de crédito (que deveria preservar o mínimo existencial quando da contratação), sem a possibilitar o tratamento ou repactuação: são as duas faces da mesma moeda (numa só metáfora).
De outro lado, o decreto presidencial que virá poderá regulamentar muito aquém das necessidades (e expectativas) da população, fixando mínimo existencial incompatível com a realidade de quase quarenta milhões de superendividados. Numa circunstância como essa de regulamentação deficitária tem-se o mesmo que ‘decreto não existente’ e, portanto, de atuação insuficiente quanto aos direitos fundamentais sociais.
É como assevera a escorreita doutrina constitucionalista: “vão, pois, aqui incluídos o dever dos juízes e dos demais operadores jurídicos de aplicarem os preceitos constitucionais e a autorização para com esse fim os caracterizem por via interpretativa”.19
REFERÊNCIAS
1 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU, 2002.
2 Ver GABBAY, Daniela Monteiro. Mediação & judiciário no Brasil e nos EUA. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013. p. 47.
3 GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (coords.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 128-129.
4 Art. 5º, inc. VII. VII – instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.
5 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 8.
6 É como ensina ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais, Lisboa: Petrony, 1968.
7 BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia Martini. Comentários à Lei 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.
8 MARTINS, Fernando Rodrigues; MARQUES, Claudia Lima. Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado. In: Responsabilidade civil nas relações de consumo. Carlos Edison do Rego Monteiro Filho, Guilherme Magalhães Martins, Nelson Rosenvald e Roberta Densa (coord.). Indaiatuba-SP, 2022.
9 Neste sentido na III Jornada de Pesquisa CDEA – Superendividamento e proteção ao consumidor foi aprovado o Enunciado 1, assim disposto: “Art. 54-B; art. 54-C e art. 54-D: O processo de execução que contenha crédito ao consumidor com ofensa às diretrizes da Lei 14.181/21 é passível de objeção de pré-executividade”.
10 Rica expressão cunhada por Bruno Miragem, Claudia Lima Marques e Andreia Rangel, na I Jornada de Pesquisa CDEA – Superendividamento e proteção ao consumidor. Enunciado 6. “Os deveres de informação, de esclarecimento, de avaliação da situação financeira do consumidor previstos nos artigos. 52, 54-B, 54-C e 54-D, são a base do crédito responsável, junto com os deveres de entrega da cópia do contrato, de verificação da margem consignada, de pesquisa nos bancos de dados, de prestar uma informação leal e útil à compreensão dos riscos e ônus da contratação, sob a pena de incorrer na revisão-sanção do parágrafo único (art.?54-D, parágrafo único)”.
11 BERTONCELO, Karen Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor – mínimo existencial – casos concretos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 122.
12 MIRAGEM, Bruno; MARTINS, Fernando Rodrigues. Proposta de regulamentação do CDC por decreto presidencial. RDC. v. 139. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 409-414.
13 MARQUES, Claudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação? RDC. v. 43. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 481-528.
14 LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia Martini. In: Comentários à Lei 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. Antônio Herman Benjamin [et al.]. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 325.
15 MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2018, p. 148.
16 REICHELT, Luis Alberto. O direito fundamental à inafastabilidade do controle jurisdicional e sua densificação no novo CPC. Revista de Processo. v. 258. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 41-58.
17 NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 4
18 MIRAGEM, Bruno; MARTINS, Fernando Rodrigues. Proposta de regulamentação do CDC por decreto presidencial. RDC. v. 139. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 409-414.
19 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almeida, 2021. E continua: “Mesmo que esteja em causa, como estará frequentemente, a resolução de conflitos com outros direitos ou valores. É claro que a interpretação feita pelos outros operadores jurídicos (pela Administração, por exemplo) está sujeita a última instância de controlo judicial na sua conformidade com a Constituição”.
Autores: Fernando Rodrigues Martins e Clarissa Costa de Lima
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