Inconsistências jurídicas da aplicação da teoria do inadimplemento eficiente do contrato no direito brasileiro

A teoria do inadimplemento eficiente justifica o inadimplemento proposital por parte do devedor da prestação se este demonstrar que economicamente é mais eficiente a quebra do vínculo contratual do que o seu adimplemento. 

Importa registrar que somente será considerado eficiente se o descumprimento possibilitar maior lucro para o devedor e se este indenizar cabalmente o credor como se houvesse uma autorização tácita a depender do resultado econômico em jogo para as partes no sentido de que se pode descumprir a obrigação na busca de uma maior eficiência do resultado econômico final. A dizer que qualquer um dos contratantes, vinculados no contrato com a obrigação de adimplir, podem descumprir com maior eficiência no tocante aos lucros, desde que indenize integralmente a outra parte.

A teoria do inadimplemento eficiente do contrato é uma manifestação da chamada análise econômica do direito e tem alguma aplicação em países fidelizados ao sistema do common law, tendo surgido e sido aplicada nos Estados Unidos da América.

Guarda relação, portanto, com a Análise Econômica do Direito (AED) aplicada ao direito contratual e que poderia ser pensada aqui nas perspectivas de busca por maior eficiência das trocas econômicas levadas a efeito na atividade negocial. Sintoniza-se o referido movimento, outrossim, com a análise das consequências econômicas do direito que deveriam caminhar na busca do bem-estar social.

Nesse ângulo de visada, tais objetivos – eficiência e consequencialismo – podem tranquilamente se apresentar quando o resultado econômico de um ato negocial puder se mostrar objetivamente satisfatório na ambiência do próprio programa contratual, ainda que haja o inadimplemento consciente, porque previamente programado, e doloso, na medida em que o devedor da prestação torna-se inadimplente porque quer, na justificativa de que os parceiros contratuais estarão satisfeitos, mesmo diante do inadimplemento.

Malgrado direito e economia envolvam ciências distintas, contando com regras, funções, estruturas e princípios igualmente diferenciados, inegável a existência de conexões e repercussões recíprocas. Não raro os magistrados, assim também os árbitros, são desafiados para solucionar questões tipicamente jurídicas que apresentam reflexos econômicos de grandes proporções, não só para as partes envolvidas no conflito, como também interesses coletivos e até mesmo difusos.

Três singelos exemplos no âmbito legislativo relativos ao direito material e processual se relacionam com a importância que o direito brasileiro tem dado à análise econômica do direito. Evidente que outros poderiam ser referidos, mas fiquemos apenas nos que se seguem para reflexão.

O primeiro é o advento da Lei de Liberdade Econômica (lei 13.784/19), sendo digno de destaque para ficar em apenas uma referência a modificação que tal lei impôs ao Código Civil, cujo artigo 421-A, II, que cuida da função social dos contratos, preconiza que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada.”.

O segundo é trazido da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alterada pela 13.655/18 e tem a ver com o direito público. Os artigos 20 e 21 da novel legislação impõem aos órgãos decisórios, administrativos e judiciais, que considerem expressamente nas respectivas decisões que envolvam o interesse público as consequências práticas para a sociedade, proibindo-se referências e juízos que morem no plano das divagações abstratas. É o valor do consequencialismo sendo trazido para o direito positivo.

O terceiro exemplo externa uma aproximação do nosso civil law com o common law de origem anglo-americana que vem a ser parte da filosofia e estrutura do atual Código de Processo Civil (2015) com o seu sistema de precedentes judiciais e instrumentos como, por exemplo, o Incidente de Assunção de Competência (IAC) e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), na busca de uma maior previsibilidade e segurança jurídica na distribuição de justiça, o que também guarda relação com a análise econômica do direito.

O contrato, por sua vez, talvez seja a maior expressão da correlação entre direito e economia, sendo sempre lembrada a lição de Enzo Roppo1 no sentido de que o contrato “é a veste jurídico-formal de operações econômicas. Donde se concluir que onde não há operação econômica, não pode haver também contrato.”.

É bem verdade que há contratos que produzem relevantes efeitos existenciais, assim como outros que extrapolam os interesses das partes, não estando a sua função social restrita a interesses de ordem econômica como tivemos oportunidade de chamar a atenção em outro trabalho2.

A despeito, entretanto, da sedução que a vantagem econômica da adoção da teoria do inadimplemento eficiente parece proporcionar ao programa contratual, em um ordenamento jurídico que amadureceu para prestigiar o adimplemento, não vemos como justificar sua adoção no direito brasileiro.

Nas as linhas de pensamento de um possível inadimplemento eficiente do contrato, reflitamos sobre uma situação em que um grande artista brasileiro, cuja imagem vincula-se a de um “bom bebedor de cerveja”, seja contratado por uma empresa para enaltecer as qualidades da sua marca e o contrato acabe por ser bem cumprido, satisfazendo o interesse legítimo de ambos os contratantes. Um tempo depois, ou seja, na fase pós-contratual, outra empresa do mesmo segmento de mercado faz outro contrato com o artista e este se obriga a apontar a sua preferência por esta última marca, desdizendo o que afirmara recentemente em outro anúncio televisivo, em que conclamava os consumidores a experimentar a nova cerveja que era, segundo a opinião do músico, muito boa. A canção criada para esse novo anúncio já inicia dizendo a que veio: “quem já não viveu um amor de verão? Até tentou e descobriu que era ilusão/Coisa de momento que balança o coração/mas meu amor não tem comparação”. E depois o refrão arrematava: “fui provar outro sabor, eu sei/mas não largo meu amor, voltei”. Em outras palavras, com a mesma divulgação na mídia e com uma pequena diferença de tempo, o cantor badalou uma marca de cerveja e, em seguida, se arrependeu pelo que dissera e afirmou a sua paixão pela concorrente.

A situação referida é conhecida como o Caso Zeca Pagodinho. Imaginemos que, esse imbróglio publicitário entre as cervejarias tenha sido eficiente, sob o ponto de vista econômico, haveria inadimplemento pós-contratual do artista? Haveria comportamento antissocial e de concorrência desleal da AMBEV (terceiro cúmplice) que trouxe para si aquele que seria o garoto-propaganda de outra cervejaria e não observou a tutela externa do crédito ou os efeitos da função social do contrato perante terceiros como assinala o preciso e justo enunciado 21 da I Jornada de Direito Civil3? A jurisprudência pátria, felizmente, respondeu que sim a ambas as indagações4. Se fosse adotada a teoria do inadimplemento eficiente do contrato e os seus requisitos acima delineados estivessem presentes, a resposta seria negativa.

Pensemos, ainda, em drama mundial vivido recentemente por ocasião da pandemia, em uma situação na qual uma empresa tivesse contratado a venda de vacinas para determinado país e recebesse proposta bem mais vantajosa economicamente de outro, poderia ela indenizar cabalmente o país que celebrou o contrato primeiramente e vender o produto para o outro? Parece-nos que não, mas sob o ponto de vista da referida teoria, seria possível, ao menos em tese, dizer que sim. Haveria fungibilidade entre o dinheiro e tal prestação de elevado conteúdo existencial? Acreditamos que não.

Enfim, para não ultrapassar os limites de uma singela reflexão e sem a veleidade de arrolar todos os óbices que a teoria do inadimplemento eficiente encontra no direito brasileiro, podendo ser mesmo um retrocesso em um direito que prima pela busca da execução específica e encontra normas de conteúdo material e processual, apontamos os que seguem:

1) ofensa ao princípio da obrigatoriedade dos contratos;

2) a confiança, que é um valor relevante, pode deixar de ser respeitada por iniciativa de um dos contratantes;

3) ofensa ao dever de cooperação inerente à boa fé objetiva;

4) no âmbito material e processual há um fomento indiscutível à possibilidade de execução específica da obrigação que poderia restar frustrada (arts. 475, CC, 479 a 501, CPC, 118, § 3º, LSA);

5) possibilidade de intervenção nociva de terceiros (figura do terceiro cúmplice);

6) O direito posto coloca a indenização como alternativa do credor (ex. art, 410, CC) e não o contrário.

7) Possível excesso de patrimonialização em contratos existenciais, malferindo a legalidade constitucional que tem na solidariedade e na proteção da dignidade humana seus vetores inafastáveis.

Preocupa-nos o avanço de trabalhos sobre o tema no Brasil em estudo comparado ao direito estatudinense, motivo pelo qual enviamos na última jornada de direito civil a seguinte proposta de enunciado: “O ordenamento jurídico brasileiro não possibilita a aplicação da teoria do inadimplemento eficiente do contrato.“. A proposta avançou, sendo aprovada, às cegas, na fase preliminar e, por unanimidade, no grupo de contratos, mas não alcançou os 2/3 necessários na plenária, talvez por não ter sido suficientemente discutida entre os presentes na sessão.

Por fim e não menos importante, quero externar a minha profunda gratidão ao IBDCONT que tenho a honra de integrar, em nome de seu presidente Dr. Flávio Tartuce, pela oportunidade de apresentar essas modestas linhas que, com certeza, estão a merece maior aprofundamento.


1 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, p. 11.

2 Peço licença para citar MELO, Marco Aurélio Bezerra de Melo. Contratos. Rio de Janeiro: GEN/FORENSE, 2019, p. 51/60

3 A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.

4 “Indenização – Danos morais e materiais – Contrato de utilização da imagem e voz de cantor em campanha publicitária de cerveja – Quebra do contrato, com o debande do artista para empresa concorrente – Violação do contrato, com efetivação de danos materiais e morais. Provimento parcial a ambos os recursos – Danos materiais a serem apurados em liquidação de sentença por arbitramento, proporcionalmente ao efetivo cumprimento do contrato de prestação de serviços – Dano moral, considerando a condição das partes e o valor do contrato, na quantia de R$ 420.000,00″ (TJSP, 14a Câmara de Direito Privado, Apelação 9085298-60.2007.8.26.0000, Rel. Des. Pedro Ablas, julg. em 9/4/2008)”.

“Indenização por Danos Materiais, Morais e à Imagem – Empresa-autora que foi prejudicada pelo aliciamento do principal artista de sua campanha publicitária por parte da empresa-ré – Improcedência da demanda – Inconformismo – Acolhimento parcial – Requerida que cooptou o cantor, na vigência do contrato existente entre este e a autora – Veiculação de posterior campanha publicitária pela ré com clara referência ao produto fabricado pela autora – Não observância do princípio da função social do contrato previsto no art. 421 do Código Civil – Concorrência desleal caracterizada – Inteligência do art. 209 da Lei no 9.279/96 – Danos materiais devidos – Abrangência de todos os gastos com materiais publicitários inutilizados (encartes e folders) e com espaços publicitários comprovadamente adquiridos e não utilizados pela recorrente, tudo a ser apurado em liquidação – Dano moral – Possibilidade de a pessoa jurídica sofrer dano moral – Súmula 227 do Colendo Superior Tribunal de Justiça – Ato ilícito da requerida que gerou patente dano moral e à imagem da requerente – Sentença reformada – Ação procedente em parte – Recurso parcialmente provido” (TJSP, 5a Câmara de Direito Privado, Apelação 9112793-79.2007.8.26.0000, Rel. Des. J. L. Mônaco da Silva, julg. em 12/6/2013).

Este artigo também foi publicado no site do Migalhas. É possível acessá-lo clicando aqui.

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