Sabe-se da grande utilidade da promessa de compra e venda para perfectibilização de negócios jurídicos de bens imóveis que envolvam pagamentos a prazo.
Em apertada síntese, a promessa de compra e venda significa que as partes prometem, após quitado o preço, a lavrar a escritura pública definitiva de compra e venda do imóvel em questão.
Dentro do direito brasileiro a promessa de compra e venda de imóvel é regulada, em sua essência, pelos arts. 1.4171 e 1.4182 do Código Civil de 2002.
O primeiro artigo acima citado sustenta que o registro da promessa acarretaria a criação de um direito real (logo, oponível perante terceiros) à aquisição do imóvel. Por sua vez, o segundo artigo aduz que com o registro da promessa e compra e venda, possível seria a promoção da adjudicação compulsória3 do imóvel em caso de recusa por parte do promitente vendedor após quitado o preço pactuado.
Neste ponto, ainda que a legislação civil seja clara quanto à necessidade do registro da promessa para a adjudicação compulsória, relevante anotar que atualmente é pacífico o entendimento em todas as cortes de justiça do país acerca da aplicabilidade da Súmula 239 do STJ4, que aventa a prescindibilidade do registro da promessa de compra e venda para a promoção da adjudicação compulsória do imóvel objeto do negócio jurídico.
Em paralelo à Súmula 239 do STJ, outros importantes entendimentos consolidados devem ser lembrados quando se enfrenta o tema da manutenção e efetividade da promessa de compra e venda dentro do Poder Judiciário, dentre eles, a Súmula 845 e a Súmula 3086, ambas do STJ.
Nesta coluna, contudo, procuro trazer elucidação quanto à necessidade de prévia resolução da promessa de compra e venda por inadimplemento do promitente comprador para que, então, possa o promitente comprador se reintegrar na posse do imóvel objeto daquele contrato, notadamente porque não é rara a transmissão da posse para o promitente comprador já na formalização do contrato, antes de quitado seu integral preço.
Necessário frisar que até 2021 havia certa pacificidade no Superior Tribunal de Justiça quanto ao entendimento de que mesmo que houvesse cláusula resolutiva expressa na promessa de compra e venda, para a reintegração do promitente vendedor na posse do bem necessário seria, além de uma prévia notificação extrajudicial anterior à promoção da demanda resolutiva, o trânsito em julgado de decisão que declarasse a resolução judicial do contrato.
Após a resolução judicial do contrato, então, é que a posse se tornaria injusta e, com isso, apenas a partir deste ponto é que preenchidos estariam os requisitos da reintegração de posse.
Isto significa dizer que não era possível, em regra, segundo o entendimento dominante até 2021, a concessão de tutela antecipada de reintegração de posse em favor do promitente comprador mesmo no caso que houvesse flagrante inadimplemento contratual por parte do promitente comprador.
Sobre esta pacificidade existente até o ano passado citam-se alguns julgados, como o Recurso Especial 1.236.960/RN7, de relatoria do Min Antônio Carlos Ferreira e o Agravo Interno em Agravo em Recurso Especial 1.278.577/SP8 e Recurso Especial 620.787/SP9, estes dois últimos de relatoria do Min. Luís Felipe Salomão, que tinham como norte a imprescindibilidade de prévia manifestação judicial para que restasse consumada a resolução contratual, mesmo que com cláusula resolutória expressa, para que fosse possível a reintegração do promitente vendedor na posse do imóvel.
Como possível observar, até 2021 muito comum extrair das decisões judiciais que para a reintegração de posse do promitente vendedor lesado pelo adimplemento, mesmo que houvesse cláusula resolutória expressa no contrato, necessário seria, antes, que houvesse um prévio pronunciamento judicial acerca da resolução do contrato.
Isso, sem nenhuma dúvida, obstava que o promitente vendedor conseguisse retomar o bem do promitente comprador inadimplemente de forma célere, já que precisaria aguardar até o trânsito em julgado da demanda para que, então, pudesse diminuir seu prejuízo retomando a posse do bem para si.
Ocorre que a partir do segundo semestre de 2021 a situação parece ter-se alterado de forma abrupta dentro do Superior Tribunal de Justiça, já que no REsp 1.789.863/MS decidiu a Quarta Turma do STJ pelo não provimento do Recurso Especial que solicitava a extinção de uma reintegração de posse sem julgamento do mérito exatamente porque estava a posse consubstanciada em promessa de compra e venda que não foi objeto de resolução via declaração judicial.
Em outras palavras, ao negar provimento ao Recurso Especial acima mencionado, o STJ altera o entendimento que por muito tempo prevaleceu na Corte ao ponto de afirmar que existindo cláusula resolutiva expressa na promessa de compra e venda, poderá o promitente vendedor enviar notificação extrajudicial ao promitente comprador, e, se este não purgar eventual mora, solicitar de forma imediata a reintegração de posse.
É o extrato da parte relevante do julgado:
RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL RURAL COM CLÁUSULA DE RESOLUÇÃO EXPRESSA – INADIMPLEMENTO DO COMPROMISSÁRIO COMPRADOR QUE NÃO EFETUOU O PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES AJUSTADAS – MORA COMPROVADA POR NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL E DECURSO DO PRAZO PARA A PURGAÇÃO – INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE JULGARAM PROCEDENTE O PEDIDO REINTEGRATÓRIO REPUTANDO DESNECESSÁRIO O PRÉVIO AJUIZAMENTO DE DEMANDA JUDICIAL PARA A RESOLUÇÃO CONTRATUAL – INSURGÊNCIA DO DEVEDOR – RECLAMO DESPROVIDO.
Controvérsia: possibilidade de manejo de ação possessória fundada em cláusula resolutiva expressa decorrente de inadimplemento de contrato de compromisso de compra e venda imobiliária, sem que tenha sido ajuizada, de modo prévio ou concomitante, demanda judicial objetivando rescindir o ajuste firmado.
[…]
Inexiste óbice para a aplicação de cláusula resolutiva expressa em contratos de compromisso de compra e venda, porquanto, após notificado/interpelado o compromissário comprador inadimplente (devedor) e decorrido o prazo sem a purgação da mora, abre-se ao compromissário vendedor a faculdade de exercer o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para a resolução da relação jurídica extrajudicialmente.
Impor à parte prejudicada o ajuizamento de demanda judicial para obter a resolução do contrato quando esse estabelece em seu favor a garantia de cláusula resolutória expressa, é impingir-lhe ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refogue o texto da lei e a verdadeira intenção legislativa.
[…]
(REsp 1.789.863/MS, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10/8/21, DJe de 4/10/21.)
Como se pode observar, o julgado é pontual e extremamente claro no que tange à alteração de seu histórico posicionamento de, ao menos para casos que não envolvam contrato de adesão e não sejam de consumo, não mais exigir a judicial resolução contratual para que seja viabilizada a reintegração do promitente vendedor na posse do imóvel quando há inadimplemento por parte do promitente comprador.
O fundamento utilizado para lastrear o acórdão não poderia ser outro que aplicação do art. 474 do Código Civil de 200210, que permite que as partes pactuem cláusula resolutiva expressa que se opera de pleno direito, isto é, por meio do direito potestativo da parte lesada.
Assim, uma vez inadimplida uma promessa de compra e venda por parte do promitente adquirente, desnecessário será, caso realmente enveredada a jurisprudência para este novo posicionamento, que o promitente aguarde uma declaração judicial de resolução contratual para poder reintegrar-se na posse do imóvel outrora prometido à venda.
Por fim, em posterior manifestação, já em sede de embargos declaratórios no mesmo Recurso Especial acima discorrido, cuidou a Quarta Turma de expressamente reconhecer a alteração de posicionamento e informar que até aquele momento a jurisprudência então dominante atentava contra texto expresso em lei.
1 Art. 1.417: Mediante promessa de compra e venda, em que não se pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador o real à aquisição do imóvel.
2 Art. 1.418: O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.
3 Ação esta que depois do advento da Lei 14.381/2022 que incutiu art. 216-B na Lei 6.015/73 que autoriza a realização da adjudicação compulsória de imóvel pela via extrajudicial perante o Registro de Imóveis da situação do imóvel.
4 Súmula 239: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.
5 Súmula 84: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundada em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.
6 Súmula 308: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.
7 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.236.960/RN. Quarta Turma. Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira. Dj. 19/11/2019.
8 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.278.577/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Dj. 18/09/2018.
9 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 620.787/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Dj. 28/04/2009.
10 Art. 474 do CC/02: A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial
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