As sociedades estatais e a aplicação imediata da lei 13.303/16 aos contratos pactuados anteriormente ao vigor da lei das estatais

As sociedades de economia mista e as empresas públicas estatais foram inicialmente estruturadas pelo decreto-lei 200/1967, inspirada nos établissements publics franceses1, com o intuito de conferir maior rapidez, qualidade e eficiência a partir de um modelo empresarial em diálogo com o direito administrativo, que fazem parte da Administração Pública Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.

O contexto jurídico das sociedades estatais une o direito constitucional, o direito administrativo, com a aplicação de recursos estatais, o direito empresarial, ante as atividades empresariais, normalmente desenvolvidas pelas sociedades estatais2, e o direito civil, na configuração jurídica dos institutos de base desde a constituição à extinção das sociedades estatais.

Como o regime jurídico das sociedades estatais é híbrido, deve-se focar na “maior liberdade de atuação possível às estatais no que elas necessitarem para atuarem com eficiência no mercado, mas sem olvidar de mecanismos que evitem que essa liberdade seja desviada, mecanismos que, todavia, não correspondem ao mero retorno ou fortalecimento dos controles típicos da Administração Pública tradicional”3. Por isso, os aspectos relacionados ao regime4-5-6-7 das sociedades estatais8.

A Emenda Constitucional 19/1998 alterou os arts. 22, XXVII, e 173 da Constituição Federal de 1988, da hibridez do regime jurídico que cerca as sociedades estatais e, diante da aplicação às empresas públicas e de economia mista e subsidiárias da legislação atinente aos entes da Administração Pública Direta, como a lei 8.666/93 (Licitações e Contratos), lei 8.987/95 (delegação de serviço público à iniciativa privada), lei 10.520/02 (Pregão), lei 11.079/04 (parceria público-privada), lei 12.462/11 (RDC – Regime Diferenciado de Contratações Públicas), entre outras, foi promulgada a lei 13.303/16, a fim de regular o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios9.

Nessa linha, a hibridez do regime jurídico das sociedades estatais permite que a lei 13.303/16 seja interpretada “de acordo com a realidade da função econômica com que a gestão pública brasileira, a partir da Carta Fundamental de 1988, tem manejado aquelas empresas”10-11.

Esse caldo de cultura de modificação do estatuto jurídico das sociedades estatais traz à baila o estratégico papel que estas pessoas coletivas exercem no cenário brasileiro do século XXI, uma vez que se apresenta na gestão estatal influenciadora de agentes políticos, públicos e privados na seara da ordem econômica, cujas decisões podem produzir efeitos em aspectos ambientais, sociais, jurídicos e econômicos do espaço em que atuam12. Essa autuação, muitas vezes, se verifica no campo licitatório e contratual.

Desse modo, a adequada regulação das sociedades estatais passa pela correta compreensão da lei 13.303/16 no âmbito das licitações e dos contratos. Isso porque a lei manteve regulações no âmbito licitatório e contratual com base na experiência legal e concreta da legislação retrocitada, bem como trouxe regulamentos específicos para tema em relação às sociedades estatais. Diante disso, a regra continua sendo licitar, como se infere do art. 71 do decreto-lei 8.945/16, mantendo-se hipóteses de contratação direta13.

Destaca-se que o art. 40 da lei 13.303 indica que as sociedades estatais devem manter atualizados o RILC, sendo que as “disposições do regulamento devem basear-se nas normas gerais da Lei n.º 13.303/16, sendo vedado à empresa estatal dispor de modo diverso, porém admitidas soluções procedimentais com elas compatíveis, com o fim de atender às peculiaridades de cada empresa”14.

Dentro dos diversos temas que emergirão da referida lei, um tem causado controvérsia, a interpretação do art. 91, § 3º, da Lei das Estatais:

Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei.

§ 3º Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput .

(…)

Art. 97. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Como deve ser lido o art. 91, § 3º, da lei 13.303/16? Noutros termos, a lei 13.303/16 aponta ser autoaplicável regime de licitação e de contratação por ela estipulado, salvo quanto aos arts. 31, § 4º, 32, V, § 3º e § 4º, 39, 40, 42, X, 48 e 63-67 da referida lei15, como explica a literatura jurídica:

À exceção dessas hipóteses, as normas sobre licitações e contratações da lei 13.303/16 têm eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral, desde a entrada em vigor da lei, aptas, portanto, a produzir efeitos independentemente de norma regulamentar. Aquelas exceções dependem de regulamento para lhes complementar o sentido, e a elaboração desse regulamento é atribuição interna de cada empresa estatal, com o que o direito brasileiro ainda produzirá considerável volume de normas disciplinadoras da atividade contratual dessas empresas, podendo suscitar conflitos interpretativos que terminarão nos tribunais, judiciais e de contas16.

Para que não paire dúvida sobre o ponto, a lei 13.303/16 foi promulgada em 30.06.2016 (lei 13.303/16, art. 97), sendo que o prazo de 24 (vinte e quatro) meses de adaptação e de adequação das sociedades estatais já existentes à lei 13.303/16 posto no art. 91, caput “não se trata de “vacatio legis” mas de prazo para adaptação”17.

O Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que as sociedades estatais já existentes teriam até 30 de junho de 2018 para realizar as referidas adaptações (TCU, Acórdão n.º 23/2017). Explica a literatura jurídica:

Quanto aos contratos e licitações, dispõe o § 3º do art. 91 que permanecem regidos pela legislação anterior, até o final do prazo previsto de vinte e quatro meses da vigência da lei. Assim, a legislação anterior, nesses temas em específico, acaba sendo perpetuada por esses dois anos.

Diante da conjuntura em destaque, consideramos um equívoco não aplicar a lei 13.303/16, a partir da sua vigência, quanto às licitações e aos contratos feitos posteriormente à vigência da lei 13.303/16. Tais situações deveriam seguir as suas disposições, e não as normas anteriores, ainda que tenham sido feitos por empresa estatal criada antes da vigência da legislação ora comentada.

Não tem sentido esperar que as empresas públicas e as sociedades de economia mista aguardem o prazo de vinte e quatro meses para começar a aplicar a lei 13.303/16 nesse tema, porque, como dissemos, não se trata de “vacatio legis”, mas de prazo para adaptação. Apenas correriam pelas regras antigas os negócios os negócios celebrados ou em execução antes da vigência da Lei das Estatais. Nesse caso, não caberia sequer a opção do gestor para aplicação da lei nova. De mais a mais, não faria sentido a publicação da lei com a urgência a que foi submetida, e, de outro lado, se ofertado dois anos para que ela tivesse vigência – seria um contrassenso nesse sentido18.

Dessa maneira, a lei 8.666/93 somente deve ser aplicada, no âmbito das licitações e dos contratos das sociedades estatais após a entrada em vigor da lei 13.303/16, nas hipóteses, arts. 41 e 55, III, da lei 13.303/16, conforme, por exemplo, despacho desta DIJUR/COJUR (41000884), nos autos do processo n.º 00111-00006125/2018-79.

Nessa senda, o art. 68 da lei 13.303/16 indica que: “Os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta lei e pelos preceitos de direito privado”. O TCU, no Acórdão 213/2017, assentou: “Não faz sentido pretender que a Lei 13.303/1016 estabelecesse às empresas estatais limitações maiores do que a Lei 8.666/1993 já estabelece”. Explica a literatura jurídica:

(…) enfatiza-se que, embora a Lei das empresas Estatais tenha sofrido importante influência da Lei Geral das Licitações, com ela não se confunde. Assim que não se pode cogitar da aplicação subsidiária, como regra. (…) um contrato feito por uma empresa estatal e regulado pelo art. 68 da lei13.303/16 não seria “contrato administrativo”, para a concepção por assim dita “clássica” ou “ordinária”, mas, sim, típico “contrato da Administração” (…), porque, em tese, despidos do regime derrogatório – cláusulas exorbitantes – , tendo em vista que a regra em questão determina que sejam eles regidos pela própria lei 13.303/16 e pelos preceitos de direito privado. (…) o regime de direito privado não é aplicado de modo supletivo, mas de modo direto, ao lado das disposições da legislação mencionada – a qual, diga-se de passagem, sequer prevê um rol de cláusulas exorbitantes. Assim, o regime dos contratos do direito civil aplica-se como fonte primária do direito, e não de modo supletivo, na hipótese em que a Lei das Estatais não desse conta de disciplinar o tema. Logo, a natureza dos contratos feitos e regidos pela lei 13.303/16 seria típico “contrato da administração”.

Para sermos ainda mais objetivos, o art. 68 determina que somente possam ser inseridas nos contratos feitos pela empresa estatais as cláusulas que derivam expressamente da lei 13.303/16 e, claro, do direito privado. De modo que tal legislação não permite a importação de norma administrativa que não aquelas já constantes (recepcionadas) na própria lei 13.303/16. Assim, se por um acaso se quisesse mirar uma dita “clausula exorbitante” nos negócios jurídicos feitos pelas empresas estatais, teríamos de procurá-las no âmbito do seu estatuto, ora comentado.

Portanto, o art. 68 impõe um traço diferencial marcante entre os contratos feitos pela lei 13.303/16 e pela lei 8.666/93. A origem dessa disparidade reside na possibilidade de  as sociedades de economia mista e de as empresas públicas deterem capacidade gerencial menos rígida e burocrática, como ocorre com as autarquias e as fundações, para que aquelas entidades possam seguir a lógica do mercado, a enaltecer sua competitividade. Logo, é apropriado dizer que as empresas estatais receberam a possibilidade de contratações de forma mais flexível e ágil, adequadas às dinâmicas do mercado no qual estão inseridas, desde que observados os princípios da administração pública19.

Não obstante isso, houve divergência quanto à incidência (ou não) da lei13.303/16 às licitações e aos contratos feitos pela Terracap antes da entrada em vigor da Lei das Estatais e que produziam efeitos futuros depois da entrada em vigor da citada lei.

Emergiram dois entendimentos no âmbito de diversas sociedades estatais: (i) manutenção até o término do processo licitatório e do contrato dele advindo da legislação anterior; (ii) aplicação da Lei n.º 13.303/16 para os efeitos produzidos pelos processos licitatórios e pelos contratos firmados antes da lei, mas que, sob seu vigor, produzem efeitos.

Defendemos, desde sempre, a hipótese de correção do segundo entendimento, com base na perspectiva traçada por Mario Delgado ao interpretar o art. 2.035 do Código Civil (CC):

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Estabelece o presente dispositivo que os requisitos de validade dos negócios e demais atos jurídicos serão aqueles estabelecidos na lei anterior, mas os seus efeitos, desde que produzidos após a vigência do novo Código, a ele estarão subordinados, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Assim, um contrato celebrado antes de 11 de janeiro de 2003, ainda que uma das partes estivesse, por exemplo, em estado de perigo (art. 156), será válido, ou pelo menos por tal vício não haverá de ser anulado. Entretanto, contratos anteriores, que ainda estejam sendo executados, como nos casos de financiamentos a longo prazo, poderão ser revistos ou resolvidos sempre que, por evento imprevisível, ocorrido após 11 de janeiro de 2003, venham a se tornar excessivamente onerosos para um dos contratantes (art. 478). Nas repactuações que venham a ser realizadas após a entrada em vigor do Código, aplicam-se integralmente todas as novas regras, desde que compreendidas como novo contrato. Imagine-se, em outro exemplo, um contrato de prestação de serviços, de trato sucessivo, onde as partes hajam fixado determinado percentual para o reajuste periódico das parcelas do preço, vindo a lei posterior (por exemplo, plano econômico de congelamento) proibir esse tipo reajuste. Ainda que o reajuste contratual só viesse a ocorrer quando já vigente a lei nova proibitiva, a teor do disposto no caput do art. 2.035, deve ser observada a lei da época da celebração e aplicado o percentual definido no contrato. O pagamento posterior de parcela do preço, quando já estabelecido o respectivo valor em época pretérita, não seria considerado efeito futuro de ato passado, de modo a receber os influxos da lei novata. Trata-se (o reajuste) de fato pendente de realização, porém já definitivamente assentado sob o pálio da lei revogada. A incidência da lei nova, nesse caso, caracterizaria retroatividade de “grau médio”. No mesmo exemplo, houvessem as partes previsto apenas a atualização do preço de acordo com certo índice oficial, a ser apurado no mês anterior ao do reajuste, e havendo esse índice sido extinto pela lei posterior, não haveria como se pleitear a manutenção do indexador, pois o facta pendentia ainda não estava definitivamente assentado. Sua ultimação se daria no futuro, quando fosse apurado o percentual do indexador eleito no contrato. Extinto o índice oficial, sem que o ajuste de vontades houvesse estabelecido percentual certo nem outro índice substituto, não haveria possibilidade de se assegurar a sobrevivência da lei revogada, aplicando-se imediatamente a lei nova. Vê-se, aqui, uma situação jurídica de fato passado, cujos efeitos jurídicos ainda não foram consumados, o que possibilita a aplicação imediata da lei posterior. Nos contratos de trato sucessivo, o CC/2002 trouxe, no caput do art. 2.035, verdadeira regra de sobredireito plenamente adequada e consentânea à doutrina de um novo direito intertemporal brasileiro. A ideia de que o contrato, como negócio jurídico realizado sob o império de determinada lei, se enquadra no conceito de “ato jurídico perfeito”, para os fins de se furtar à retroatividade da lei nova, é assimilada pelo Código, que inclui, sob a sua regência, tão somente os efeitos futuros dos contratos anteriores, desde que produzidos após a vigência da lei nova e desde que as partes não tenham previsto determinada forma de execução. Caso os contratantes tenham feito essa previsão, fica afastada a incidência imediata da lei. Fica assegurada, assim, como regra geral codificada, a pós-atividade do Código de 1916 no que tange aos requisitos de validade dos contratos e a eficácia imediata do Código de 2002 quanto aos efeitos futuros desses negócios jurídicos. A regra geral, portanto, é a da aplicação imediata da lei nova aos efeitos dos contratos em curso, salvo se as partes houverem expressamente manifestado a intenção de excluir também os efeitos futuros do âmbito de eficácia da lei posterior. Para isso, precisariam haver inserido no contrato cláusula específica, salvaguardando o regime de execução, e desde que não houvesse contrariedade a norma de ordem pública. Convém esclarecer, no entanto, não serem poucos os autores que encampam a tese da inconstitucionalidade do dispositivo. A doutrina clássica, forjada à luz do Código de 1916, se opõe firmemente à eficácia imediata da lei nova nesses casos, sacralizando o princípio do pacta sunt servanda. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que, “se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado” (ADIn 493/DF, Rel. Min. Moreira Alves). Não partilhamos dessa opinião, tampouco concordamos com as conclusões do aresto do STF. A imprecada retroatividade do caput do art. 2.035 constitui mera hipótese de aplicação imediata da lei nova. Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro direito adquirido aos efeitos futuros das situações jurídicas contratuais constituídas sob a égide da lei antiga. A lei nova colhe os contratos em curso de execução ou de produção de efeitos no estado em que se encontram, aplicando-se imediatamente, sem retroatividade. Apenas os efeitos já produzidos, por exemplo, a multa moratória já vencida e já paga em percentual superior ao novo teto legal, não seriam alcançados pela nova lei. Mais polêmica ainda que a regra constante do caput do art. 2.035 é a norma que se extrai do parágrafo único, a prever, não só a aplicação imediata, mas também a aplicação retroativa (nenhuma convenção prevalecerá) das normas de ordem pública, citando como exemplos aquelas relativas à função social dos contratos e da propriedade. O dispositivo deixa claro que está apenas a exemplificar, e quaisquer outras normas, desde que consideradas como “de ordem pública”, terão aplicação imediata, contra elas não cabendo invocar direito adquirido ou ato jurídico perfeito. Defendemos, com entusiasmo, a possibilidade de se utilizar a técnica da ponderação para avaliar, em cada caso concreto, se a lei posterior pode interferir nos contratos anteriores. Se a partir da ponderação entre o valor da segurança e os princípios da segurança jurídica e do pacta sunt servanda, de um lado, e o valor da Justiça e os princípios da solidariedade e da função social do contrato, de outro, pudermos concluir qual o lado mais pesado da balança, esse será o critério para decidir entre a aplicação da lei anterior, vigente à data da celebração do contrato, e a lei posterior, editada quando o contrato encontrava-se em curso de produção de efeitos. Formulemos um exemplo hipotético para facilitar a compreensão da ideia. Vamos supor que o personagem João, pretendendo abrir um negócio próprio, tivesse celebrado, no ano de 2002, antes do início da vigência do atual Código Civil, um contrato de franquia, cujas obrigações do franqueado eram manifestamente desproporcionais àquelas do franqueador e com cláusula penal em valor manifestamente excessivo. Com a posterior entrada em vigor do Código Civil de 2002 e vendo-se impossibilitado de continuar a cumprir com todas as obrigações do contrato, João postula a sua revisão (ou alternativamente a resolução com redução da cláusula penal), invocando a seu favor o estatuído nos arts. 413, 421 e 2.035 do CC/2002. Depois de ponderar e sopesar normas e valores conflitantes no caso concreto (p. ex., pacta sunt servanda => ato jurídico perfeito => segurança jurídica versus função social => solidariedade => justiça social), provavelmente entenderíamos razoável a pretensão de João, e optaríamos pela aplicação imediata do CC/2002, ainda que o contrato tenha sido celebrado em data anterior. É verdade que a técnica de ponderação poderá levar, no limite, à admissão de hipóteses invalidantes supervenientes, previstas na lei posterior, o que será motivo de estupefação para a doutrina tradicional. Entretanto, nas quadras atuais, onde temos uma população cada vez maior e com crescente expectativa de vida, onde os recursos naturais (e os direitos a eles inerentes) são cada vez mais escassos, o aplicador do Direito será chamado, cada vez mais, a fazer escolhas como essa, atribuindo direitos para alguns e suprimindo direitos já considerados incorporados ou adquiridos por outros. Se não existem direitos para todos, há de se suprimir de alguns e atribuí-los a outros. A norma que se extrai do art. 2.035 ainda não foi apreendida em sua plenitude pela doutrina nacional. Durante a IV Jornada de Direito Civil ocorreram extensos debates, os quais resultaram na aprovação de dois enunciados. O Enunciado n. 300 esclarece que “a lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio”. O Enunciado n. 396, por sua vez, versa sobre a capacidade para ser sócio, dispondo que “a capacidade para contratar a constituição da sociedade submete-se à lei vigente no momento do registro”. Interessante questão de direito intertemporal surgiu com o advento da lei 13.786/2018, que disciplina “a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária” e trouxe importantes inovações para o mercado imobiliário, especialmente o estabelecimento de limites (de até 50%) para a estipulação de cláusula penal. A indagação logo surgida era se as novas regras se aplicariam aos contratos celebrados antes de sua entrada em vigor. A aplicação analógica do art. 2.035 do Código Civil c/c o art. 6º da LINDB nos leva a conclusão de que, se não houver previsão no contrato estipulando o percentual da cláusula penal, aplica-se imediatamente a nova lei, com os limites ali previstos, pouco importando a data da celebração do negócio. Contudo, se o contrato estabelecer um percentual ou montante para a cláusula penal, essa pactuação estará ao abrigo da aplicação da nova lei20.

À vista do exposto, sugere-se a seguinte ideia interpretativa do art. 91, § 3º, da Lei das Estatais:

Até 30 de junho de 2018, último dia do prazo de adaptação das empresas públicas e sociedades de economia mista construídas anteriormente ao início do vigor da lei 13.303/16, permanecem regidos pela legislação anterior e a indicada no Edital, os processos licitatórios, os contratos, os acordos, os ajustes, os aditivos, os convênios e instrumentos congêneres iniciados ou celebrados antes do início do vigor da lei 13.303/16, que ocorreu em 30 de junho de 2016.

A partir de 1º de julho de 2018, todo e qualquer processo licitatório, contrato, acordo, ajuste, aditivo, convênio e instrumento congênere iniciados ou celebrados antes do início do vigor da lei 13.303/16 será por ela regido, na forma do art. 91, § 3º, da lei 3.303/16.

Todo e qualquer processo licitatório, contrato, acordo, ajuste, aditivo, convênio e instrumento congênere iniciados ou celebrados a partir de 30 de junho de 2016 será regido pela lei 13.303/16.

Espera-se que com isso, a Lei das Estatais possa ser adequadamente interpretada no Brasil, a fim de que possa ser efetivamente utilizada pelas sociedades estatias.

*Pablo Malheiros da Cunha Frota é professor de Direito Civil e de Processo Civil da UFG. Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Fundador e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Sócio de Alencar, Barroso e Malheiros Advogados (DF).


1 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – Lei n.º 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 27.

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 13.ed. São Paulo: RT, 2018, Capítulo 6, Item 17 (edição eletrônica).

3  ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 146.

4 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 78-79, 89 e 133.

5 No RE 172.816, o STF indicou que o art. 173, § 1º, da CF/88 não incide nas atividades econômicas titularizadas com exclusividade pelo Estado. “A norma do art. 173, § 1º, da Constituição aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade”. Essa posição do STF foi reiterada em muitos julgados, como no RE 356.711/PR, voto do Ministro relator Gilmar Mendes, julgamento em 06.11.2005, Segunda Turma, DJ 07.04.2006 e no RE 433666 AgR/BA, julgamento em 03.11.2009, DJ 26.11.2009.

6 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 104.

7 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 104-106.

8 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 140.

9 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28.

10 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 29.

11 Sobre o tema vejam: MOREIRA, Egon Boockmann. O Direito Econômico e o papel regulatório das empresas estatais. Disponível aqui. Acesso em 20/8/2020.

12 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 29.

13 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28.

14 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 344.

15 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28.

16 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 28-29.

17 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; MAFFINI, Rafael; DOTTI, Marinês Restelatto. Comentários à lei das empresas estatais – lei 13.303/16. 2.ed. Belo Horizonte, 2020, p. 731.

18 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 730- 731. Essa é a linha, entre outros, do Parecer SEI-GDF n.º 241/2020 – TERRACAP/PRESI/DIJUR/COJUR, nos autos do processo n.º 0111-005447/2013 (39854799).

19 JÚNIOR, Jessé Torres Pereira; HEINEN, Juliano; DOTTI, Marinês Restelatto; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei das empresas estatais. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 627-629.

20 DELGADO, Mario. Art. 2.035. In: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando ; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; RÉGIS, Mário Luiz Delgado . Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Forense, 2020p. 1568.

Pablo Malheiros da Cunha Frota
Doutor em Direito pela UFPR. Professor de Direito Civil e de Processo Civil na graduação e, colaborador, no mestrado em Direito Agrário na UFG. Diretor do IBDCONT, IBDFAM-DF e BRASILCON. Advogado no DF.
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