Os debates sobre saúde suplementar, normalmente restritos à doutrina especializada e aos profissionais do setor, extrapolaram para o campo de um dos assuntos mais comentados nas últimas semanas, após recente decisão do STJ acerca da taxatividade do rol de procedimentos estabelecidos pela ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar. Em março deste ano, o número de usuários de planos de saúde no país passou de 49 milhões de pessoas, o maior desde janeiro de 2016.
Segundo informações do jornal o Globo, o setor da saúde suplementar tem registrado aumentos consecutivos de beneficiários desde julho de 20201. Mesmo sofrendo as duras consequências de uma crise econômica, esta parcela da população tenta equilibrar o orçamento doméstico para manter o contrato, por considerar o acesso à saúde suplementar uma conquista, que só perde em prioridade para moradia e educação2.
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar3, antes da crise sanitária da covid-19, os lucros do mercado de planos de saúde eram significativos, ultrapassando os 18 bilhões de reais. Mesmo amargando prejuízo operacional em 2021, com o aumento do custo assistencial e a pressão ocasionada pela retomada de procedimentos médicos não realizados durante a pandemia, vislumbra-se a retomada de resultados financeiros expressivos para os próximos anos, embora especialistas destaquem que o aumento contínuo das despesas com a adoção de novas tecnologias, a introdução de novos medicamentos e os tratamentos podem comprometer o equilíbrio financeiro do setor.
Afinal, o que foi decidido no julgamento?
O “rol da ANS é taxativo, com possibilidades de cobertura de procedimentos não previstos na lista”, assim consta da conclusão do julgamento4, iniciado em 16 de setembro de 2021, pela 2ª seção do STJ, razão pela qual, em princípio, não estariam as operadoras de planos de saúde obrigadas a cobrir tratamentos não previstos na referida lista5.
Passou-se a sustentar uma “taxatividade mitigada”, expressão que encerra uma contradição interna, que se justifica, segundo a posição da maioria dos julgadores, pela possibilidade de relativização da lista em situações excepcionais, razão por que foram estabelecidas as seguintes teses:
O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferida expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec6 e Natjus7) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
Os diferentes pontos de vista sobre a matéria: na prática, qual a diferença entre as posições?
Prevaleceu a posição do relator, ministro Luis Felipe Salomão, que incorporou em seu voto acréscimos trazidos em voto-vista pelo ministro Villas Bôas Cueva. Ficaram vencidos no julgamento a ministra Nancy Andrighi e os ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro, para os quais o rol da ANS teria caráter meramente exemplificativo8.
Segundo informações divulgadas pela assessoria de comunicação do STJ, o ministro Salomão destacou que a competência da ANS para a elaboração do rol de procedimentos de cobertura obrigatória foi conferida pela Lei 9.961/2000. Ademais, observou que a Lei dos Planos de Saúde estabelece que a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar será estabelecida em norma editada pela ANS9. Por conseguinte, seria “vedado ao Judiciário, de forma discricionária, substituir a administração no exercício de sua função regulatória”.
A partir dessa fundamentação legal, sustentou o relator que em nenhum outro país do mundo haveria “lista aberta de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória pelos planos privados pelo sistema público”. Lembrou, ainda, segundo informações extraídas do site do STJ, que “a taxatividade do rol da ANS é fundamental para o funcionamento adequado do sistema de saúde suplementar, garantindo proteção, inclusive, para os beneficiários – os quais poderiam ser prejudicados caso os planos tivessem de arcar indiscriminadamente com ordens judiciais para a cobertura de procedimentos fora da lista da autarquia”10.
O ponto controverso diz respeito aos limites da atuação das agências reguladoras. Seria possível, no exercício da atividade regulatória, impor limites ou restrições aos direitos das pessoas, que não foram estabelecidas pelo Poder Legislativo? Direitos e obrigações devem ser disciplinados por lei e não por resolução da ANS. Apesar de a atividade da Agência ser relevante e servir como referência para a organização do sistema de saúde suplementar, entende a ministra Nancy Andrighi que
“não cabe à ANS estabelecer outras hipóteses de exceção da cobertura obrigatória pelo plano-referência, além daquelas expressamente previstas nos incisos do artigo 10 da lei 9.656/1998, assim como não lhe cabe reduzir a amplitude da cobertura, excluindo procedimentos ou eventos necessários ao pleno tratamento das doenças listadas na CID, ressalvadas, nos termos da lei, as limitações impostas pela segmentação contratada”.11
Não podemos esquecer que a lei dos planos de saúde (9.656/98) assegura que todas as moléstias indicadas na CID – classificação internacional de doenças estão incluídas no chamado plano-referência. Por essa razão, apenas procedimentos e eventos relacionados a segmentos não contratados pelo consumidor e aqueles que o próprio legislador estabeleceu como de cobertura não obrigatória podem ser excluídos da cobertura dos planos, nos termos do art. 10 da citada lei.
Para a corrente que se saiu vencedora, a superação do rol da ANS deve ser encarada como algo excepcional e necessita de adequada e extensa fundamentação técnica. Para o ponto de vista que ficou vencido, o rol configura garantia mínima exemplificativa, o que leva a outro aspecto fundamental na discussão: se é entendimento pacífico ser vedado à operadora recusar o tratamento prescrito pelo médico para doença coberta pelo contrato, o que dizer do procedimento apontado pelo médico credenciado pela operadora para tratamento da moléstia?
Não se estaria diante de hipótese de incidência do disposto no art. 51 do CDC, que estabelece nulidade de cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade?
Neste ponto deve-se anotar que nenhuma das duas posições nega peremptoriamente a possibilidade de condenação das operadoras de planos de saúde a arcarem com procedimentos que não estão previstos no rol da ANS12.
O que esperar daqui em diante?
Independentemente do posicionamento adotado, não se pode perder de vista a significativa vulnerabilidade dos consumidores no momento da contratação de um plano de saúde, uma vez que é impossível analisar todas as opções de tratamento postos à disposição do contratante, especialmente pelo fato de ele não se achar acometido pela eventual enfermidade a que se refere um dos quase 3 mil procedimentos atualmente listados no anexo I da resolução ANS 465/2113.
Muitos dos problemas que chegaram ao Judiciário nos últimos anos decorrem da falta de compreensão sobre as distinções entre o sistema único de saúde e os limites da saúde suplementar. Petições iniciais, decisões concedendo tutela antecipada ou sentenças baseadas apenas uma referência genérica a “direito à saúde” criaram uma verdadeira loteria da judicialização, não se distinguindo tratamentos comprovadamente eficazes com base em critérios científicos com alternativas experimentais ou de eficácia significativamente não demonstrada.
Não basta provar a existência da doença e solicitar o tratamento. É preciso apresentar a evolução do caso, alternativas terapêuticas já adotadas e seus resultados, culminando com a análise de como a adoção de outros tratamentos poderia ser benéfica ao quadro de saúde específico do paciente. Explicitar o que já foi tentado e não deu certo, apontar as alternativas, destacar entre estas qual seria a mais viável no caso concreto, indicando suas vantagens ou, quem sabe, que não existem alternativas disponíveis no atual estágio da medicina14.
Antes da decisão aqui em análise, essa era a tarefa exigida do consumidor que buscava no Poder Judiciário a proteção dos seus interesses após negativa de cobertura da operadora. No cenário pós-decisão isso não é mais suficiente, pois se passa a exigir, de modo cumulativo, que sejam “esgotados os procedimentos do rol da ANS”, que nem sempre será possível diante das peculiaridades do quadro de saúde do paciente, pois a debilidade de seu quadro clínico pode ser comprometida com a utilização de múltiplos recursos apenas para demonstrar sua inadequação. Dias de tratamento inadequados podem custar a vida da pessoa.
Não fosse isso o suficiente, para a segunda seção do STJ, após demonstrar o “esgotamento dos procedimentos do rol da ANS”, seria preciso ao paciente comprovar que o tratamento pretendido “não foi indeferido expressamente” pela Agência Reguladora, situação que pode ter decorrido de condutas praticadas por terceiros, estranhos ao caso concreto, antes mesmo da manifestação da doença.
Aqui cabe indagar se, por exemplo, a falta de apresentação dos documentos exigidos pela ANS, que ensejaram um indeferimento administrativo de incorporação do procedimento, será determinante para, muitas vezes, decidir o destino do paciente, pois novo pedido diante da agência reguladora demandará observância do procedimento administrativo, cuja duração pode ser incompatível com a manutenção da saúde do interessado.
Superados os dois primeiros pontos (não existem outros procedimentos no rol e não ocorreu indeferimento do tratamento pretendido), há de se comprovar “eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências”, o que pode ocorrer utilizando recomendações de órgãos técnicos como a Conitec e o Natjus.
Esse aspecto permite tecer algumas considerações sobre a dificuldade de os próprios profissionais de saúde acompanharem a constante evolução do conhecimento científico para tomarem a decisão a respeito do melhor caminho terapêutico a seguir em cada caso. Estamos na complexa seara da variabilidade do cuidado médico, sujeita a diversas circunstâncias, desde a formação do profissional, seu grau de especialização, localidade onde está sendo dispensado o tratamento e recursos técnicos disponíveis ao paciente.
Neste cenário, surge a exigência da “medicina baseada em evidências”, ou seja, na aplicação do método científico a toda a prática médica e ao estabelecimento de protocolos a serem seguidos com base em pesquisas[15]. O problema aqui é da falta de uniformidade na utilização dessas bases científicas e nas mais diversas interpretações daí decorrentes, como pudemos constatar nos incansáveis debates acerca dos riscos e da eficácia das vacinas e medicamentos com prescrição para o combate da covid-19.
Estamos tratando de um país com dimensões continentais e com diversos níveis de atuação do Natjus, que em muitos casos não consegue apresentar suas considerações em observância ao direito à duração razoável do processo que deveria ser assegurado ao paciente. Alguns magistrados parecem esquecer que assim como qualquer outra prova pericial, as manifestações do Núcleos de Apoio Técnico não são vinculantes e devem ser analisadas em conjunto com as demais provas existentes nos autos.
O Judiciário precisa equilibrar os interesses em jogo. Ultimamente parece que a balança favorece as operadoras de saúde, em detrimento dos consumidores. O nível de exigência para a admissão de exceções ao rol de procedimentos fixados pela ANS parece estar em completa dissintonia com a realidade das demandas no primeiro grau de jurisdição. É missão quase impossível conseguir de um médico credenciado por uma operadora a elaboração de um laudo que atenda aos requisitos (cumulativos) da quarta tese estabelecida pela 2ª seção.
Muitos médicos se recusam a oferecer informações complementares, acreditando que seu diagnóstico e prescrição médica são mais do que suficientes para resolver a questão, esquecendo que tais documentos servirão de prova fundamental numa demanda na qual invariavelmente pessoas leigas em termos médicos e sem formação na área da saúde debaterão sobre o sentido e o alcance do que consta no relatório médico. Resta ao paciente, se quiser submeter, com alguma possibilidade de sucesso, sua demanda ao Judiciário, contratar os serviços de um médico particular, onerando ainda mais sua situação, num contexto processual no qual o ônus da produção da prova técnica deveria recair sobre a operadora de saúde, nos termos do disposto no inciso VIII do art. 6º do CDC.
A decisão da 2ª seção do STJ inaugura um novo capítulo nas demandas de saúde, que ainda não foi escrito e dependerá da diligência dos advogados dos pacientes e da sensibilidade dos magistrados, especialmente aqueles do primeiro grau de jurisdição, de interpretar as teses fixadas a partir da realidade do caso concreto.
Artigo também disponivel no Migalhas Contratuais: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/368134/judicializacao-por-negativa-de-cobertura-de-procedimentos