Vivencia-se um período de complexas transformações, que ocorrem em velocidade exponencial, cujos reflexos são sentidos imediatamente na dinâmica social, nos sistemas de produção, na área científica e, até na forma como as pessoas passaram a se relacionar.
A Quarta Revolução Industrial destaca-se das anteriores, dentre outros aspectos, por sua velocidade e amplitude. Chevallier (2011) considera que as mudanças tecnológicas agem como um relevante vetor de alteração da dinâmica social e que, junto a outros fatores, posicionam as sociedades contemporâneas em uma outra fase. Em tradução livre:
(…) as sociedades contemporâneas parecem ter entrado em uma nova fase. Por um lado, assistimos à comoção do conjunto de equilíbrios sociais: revoluções tecnológicas (avanço das tecnologias da informação e comunicação, desenvolvimento de biotecnologias…), mutações no sistema de produção (papel crescente da informação, declínio da indústria em benefício da prestação de serviços, realocação de unidades de produção, adaptação de formas de trabalho.), transformações da estratificação social (migração dos campos para a cidade, explosão do mundo do trabalho, multiplicação de empregos “intermediários”.), inflexão de comportamentos e relações sociais que, nas sociedades dominadas pela urgência e caracterizadas por uma dinâmica permanente de mudança, tendem a ser vividas segundo a instantaneidade, sob o sinal do efêmero1(…) .
CHEVALLIER, 2011, p. 10
É inegável o impacto que a tecnologia tem causado nas mais diversas áreas, inclusive no setor industrial e na economia. No âmbito do Direito dos Contratos, um ponto ainda carece de especial atenção, os contratos eletrônicos, haja vista o número de transações contratuais que foram potencializadas durante a pandemia do COVID-19.
No âmbito do Direito dos Contratos, em especial, no que concerne aos contratos eletrônicos, nota-se que um ponto ainda carece de especial atenção, a formação dos contratos pela via eletrônica, haja vista a inexistência de regras na legislação civil e sobre a formalização do aceite.
Destaca Flávio Tartuce que a referida carência legislativa, não obsta a aplicação das regras do atual Código Civil ou mesmo do Código de Defesa do Consumidor aos contratos eletrônicos (2022, p.213). Ademais, esclarece que existe na Câmara dos Deputados o PL. 3.514/2015, que pretende alterar o Código de Defesa do Consumidor, para receber um capítulo próprio relativo à contratação eletrônica (TARTUCE, 2022).
Relevante também destacar que o contrato eletrônico pode ser considerado como formado entre presentes (chat, salas de bate-papo e chamada de vídeo) ou por ausentes (no caso de e-mail, segundo doutrina majoritária). Com relação aos contratos eletrônicos firmados por email, a doutrina assinala da aplicação da teoria da agnição, na subteoria da recepção, conforme previsto no Enunciado n. 173 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil2.
Os contratos eletrônicos recebem essa denominação pela forma de contratação, ou seja, pela instrumentalização do vínculo contratual, não devendo ser considerados como uma espécie diferenciada de contrato:
“…negócios jurídicos bilaterais, que se utilizam de computadores ou outros tipos de aparelhos eletrônicos (ex. aparelho de telefone celular) conectados à Internet, por meio de um provedor de acesso, a fim de se instrumentalizar e firmar o vínculo contratual, gerando, assim uma nova modalidade de contratação, denominada contratação eletrônica”.
SOUZA, 2009, p. 73
Assim sendo, destaca-se como diferencial, o meio utilizado para a formação doF vínculo contratual. Para tanto, deve-se observar o que a legislação civil determina quanto aos requisitos no plano da existência, validade e eficácia, bem como quanto à autenticidade e a segurança. É fato que o contrato eletrônico não é um novo tipo contratual, mas somente uma nova forma de contratar.
Os meios eletrônicos estão viabilizando operações contratuais mais rápidas e menos burocráticas, rompendo com o excessivo rigor e formalismo. Por essa razão, nessas transações, a manifestação de vontade ocorre de diversas formas, como assinatura, digital ou eletrônica, aceite eletrônico ou resposta a e-mail, dentre outras.
É bem verdade, que para a formação dos contratos é necessário observar os princípios da autonomia da vontade, da boa-fé, função social, eticidade, operabilidade e da socialidade, que norteiam as relações civis.
A MP 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, instituiu a “Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônicas, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras” (art. 1º). Desta forma, os documentos assinados de forma eletrônica possuem presunção de veracidade.
Há também a lei 14.063, de 23 de setembro de 2020, que estabelece regras para o uso de assinaturas eletrônicas em atos que envolvam entes públicos em interação com as pessoas naturais e as pessoas jurídicas, inclusive em questões de saúde, incluindo-se a utilização de softwares, reconhecendo a validade da assinatura eletrônica de forma simples, de forma avançada e por meio de assinatura eletrônica qualificada.
As assinaturas eletrônicas juridicamente reconhecidas pelo Direito brasileiro são variadas, ou seja, tem-se a assinatura digital, a assinatura digitalizada, o login junto com a senha e um clique no botão “aceito” e a assinatura biométrica. Mas o aceite nos contratos são considerados válidos mesmo quando não há a assinatura em si, a depender dos demais requisitos que podem comprovar a sua validade.
Presume-se que a formalização do contrato por meio da assinatura das partes ratifica a intenção de firmar determinado compromisso, declarando a ciência das obrigações e dos direitos decorrentes do negócio jurídico. Por sua vez, a assinatura demonstra, de forma inequívoca, que a pessoa é quem diz ser, servindo também para garantir a autenticidade do documento que é repassado para outrem.
Verifica-se que os aceites, atualmente, ocorrem de forma rápida nos contratos eletrônicos e, por diversas formas, como mensagens eletrônicas que são trocadas entre as partes contratuais, como a troca de correspondência eletrônica (e-mail), por aceites de mensagens instantâneas, por sistemas automatizados de compras, através das lojas virtuais, entre tantos outros meios digitais colocados à disposição da sociedade, muitas vezes entendidos como formas mais rápidas de vendas de produtos e serviços, por exemplo.
Para a efetiva formalização do negócio jurídico, este precisa ser analisado nos aspectos da existência, validade e eficácia. A declaração da vontade livre e informada no contrato eletrônico é um aspecto importante a ser observado como requisito da validade contratual. Além da assinatura digital e da assinatura eletrônica, outros meios podem ser utilizados para dar validade ao contrato e confirmar a autenticidade do aceite pela parte contratante, como o endereço do IP do terminal utilizado para realizar o contrato. A confirmação por meios digitais é uma forma de aceite que deve ser considerada válida quando a vontade do contratante não possui vício.
O consentimento, nos contratos eletrônicos, não se restringe, portanto, a assinatura eletrônica e a assinatura digital. Estas são meios mais seguros para garantir a autenticidade do consentimento ou aceite. Porém, há outras formas que são válidas, mas que podem abrir espaço para abusos e fraudes, como explica Santos e Rossi:
“Devido à especificidade das transações realizadas no ambiente digital, problemas jurídicos típicos da contratação eletrônica têm reclamado maior atenção dos juristas, alguns sustentando a necessidade de um regime legal diferenciado, outros negando tal necessidade. Entre tais problemas podemos citar: a eficácia jurídica do documento eletrônico e da assinatura digital; a certificação eletrônica; a responsabilidade dos intermediários e a proteção dos usuários. […]”
2000, p. 105
O Superior Tribunal de Justiça – STJ – em dezembro de 2021, firmou tese (Tema Repetitivo 1061) no sentido de que “Na hipótese em que o consumidor/autor impugnar a autenticidade da assinatura constante em contrato bancário juntado ao processo pela instituição financeira, caberá a esta o ônus de provar a autenticidade (CPC, arts. 6º, 369 e 429, II)”. Assim, tratando-se de contrato eletrônico, a referida tese também deve ser aplicada.
Um caso curioso acerca do que se discute, foi o de uma idosa, recém-viúva e com 90 anos de idade, foi acompanhada por um de seus filhos a um estabelecimento para realizar um contrato de Plano de Saúde. Vale apenas considerar que a idosa, em questão, já possuía assistência médica e hospitalar por outra operadora de saúde. Seu filho, contudo, “considerava” que o atendimento não era adequado e que seria melhor que ela tivesse um outro plano, razão pela qual persuadiu a mãe a acompanhá-lo.
Já no estabelecimento, o atendente, após breves explanações sobre a cobertura de assistência médica e hospitalar prevista pelo contrato, solicitou tão somente que o filho informasse o seu endereço eletrônico (e-mail) para o qual o contrato eletrônico deveria ser enviado, comunicando que após o recebimento da proposta bastava o simples aceite para que fosse finalizada a contratação. E, é exatamente esse o ponto que merece atenção!
Questiona-se, portanto, se essa manifestação eletrônica, realizada por terceiro, que não a representava juridicamente, seria instrumento oportuno para a formação do contrato? A resposta é negativa.
Embora o Poder Judiciário reconheça como válida e apta a produzir direitos e deveres as mensagens trocadas por meio de comunicação eletrônica (e-mail) em várias situações, permitindo-se contratar, notificar e distratar utilizando esse meio, no caso acima citado, além da hipervulnerabilidade em decorrência da idade da contratante, o contrato foi feito em nome de uma pessoa, contudo o aceite foi realizado por outra, não se podendo, portanto, ser reconhecida a sua validade.
Note-se a fragilidade dessa transação, que já na sua origem é carente quanto à existência, validade e eficácia. Em situações similares deve ser declarada a nulidade do contrato e, como consequência, dos direitos e obrigações dele decorrentes. Embora o instrumento de aceite pudesse ser utilizado, o destinatário da transação não era o contratante.
O princípio da concretude deve ser efetivamente aplicado pelo Poder Judiciário, quando diante de um litígio que envolva o contrato eletrônico e o aceite, sendo imprescindível a observação dos usos e costumes em relação ao tipo de contrato e em relação às partes contratuais (se estas costumam ou não utilizar o meio digital para contratar e a forma como o fazem). A assinatura eletrônica e a assinatura digital, assim como o aceite eletrônico conferem uma maior segurança aos contratos firmados por meio digital, sendo uma garantia para as partes, porém não foram suficientes para a mencionada situação.
Caberá ao Poder Judiciário, portanto, ao analisar o caso concreto sobre o aceite em um contrato eletrônico, atentar para a dinâmica da integração das normas legais, dos costumes e dos princípios, de modo que a análise da formação válida do negócio jurídico, que perpasse pelos aspectos da vontade livre e da boa-fé para que seja reconhecida a existência, validade e a eficácia. Deverá, ainda, ser levado em consideração, o comportamento habitual das partes envolvidas quanto ao negócio jurídico. Assim sendo, enquanto não existe legislação específica sobre a formação dos contratos eletrônicos, deve-se aplicar a teoria geral dos contratos que se presta a este fim.
BRASIL – MEDIDA PROVISÓRIA No 2.200-2, DE 24 DE AGOSTO DE 2001.
BRASIL LEI Nº 14.063, DE 23 DE SETEMBRO DE 2020.
CHEVALLIER, J. El Estado Posmoderno. Tradução de Oswaldo Pérez. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2011.
SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. ROSSI, Mariza Delapieve. Aspectos Legais do Comércio Eletrônico – contratos de adesão. Revista de Direito do Consumidor, V. 36, São Paulo: RT, Out/2000, p. 105).
SOUZA, Vinicius Roberto Prioli de. Contratos Eletrônicos & Validade da Assinatura Digital. Curitiba: Juruá, 2009.
TARTUCE, Flávio. Teoria Geral do Direito Civil e Contratos em Espécie. 17 ed. São Paulo: Forense, 2022.
1 No original: “(…) las sociedades contemporáneas parecen haber ingresado en una nueva fase. Por una parte, asistimos a la conmoción del conjunto de equilibrios sociales: revoluciones tecnológicas (avance de las tecnologías de la información y de la comunicación, desarrollo de las biotecnologías…), mutaciones del sistema de producción (papel creciente de la información, decadencia de la industria en beneficio de la prestación de servicios, deslocalización de las unidades de producción, adaptación de las formas de trabajo.), transformaciones de la estratificación social (migración de los campos a la ciudad, explosión del mundo obrero, multiplicación de los empleos “intermediarios”.), inflexión de los comportamientos (INGELHART, 1993) y de las relaciones sociales, que, dentro de las sociedades dominadas por la urgencia y caracterizadas por una dinámica permanente de cambio, tienden a ser vividos según la instantaneidad, bajo el signo de lo efímero (…)”.
2 Enunciado n. 173 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil: “a formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente”.
Este artigo também foi publicado no site do Migalhas. É possível acessá-lo clicando aqui.