Exceção de contrato não cumprido e renúncia: notas sobre os atos unilaterais do credor e as cláusulas solve et repete

A exceção de contrato não cumprido, também denominada pela doutrina de exceptio non adimpleti contractus, exceção de inexecução ou exceção de inadimplemento, pode ser conceituada como a “faculdade que tem uma das partes de recusar-se a cumprir a obrigação, quando a parte contrária, por sua vez, à sua não deu cumprimento”1. Prevista expressamente no art. 476 do Código Civil2, alude-se a essa figura jurídica a noção de direito potestativo3, atuando como remédio para o contratante que possui interesse na manutenção da relação obrigacional e no adimplemento da contraparte. Busca-se refletir, então, acerca da possibilidade do exercício de renúncia à oposição dessa exceção.

Afirma-se que a renúncia consiste em causa impeditiva da exceção de contrato não cumprido4. Em outros termos, o exercício de autonomia privada pelas partes, no bojo de uma relação sinalagmática, com o propósito de renunciar à possibilidade de oposição da exceção de contrato não cumprido não extingue essa exceção, apenas impede o seu exercício por parte do contratante que estaria na posição de excipiente.

A renúncia à exceção de contrato não cumprido pode se configurar de diversos modos, quais sejam de forma antecipada, no próprio contrato; no curso da relação obrigacional, por meio de ato unilateral de uma das partes; e depois de oposta a exceção, desde que antes do trânsito em julgado do provimento que reconhecer a exceção5.

Quanto à renúncia pactuada no bojo da relação contratual – seja no próprio contrato ou em seu respectivo aditivo -, a doutrina geralmente enuncia a cláusula solve et repete, que em sua concepção latina significa “pague e depois reclame”. Importa observar, todavia, que tal cláusula pode se manifestar por arranjos contratuais os mais diversos e pode ter por objeto exceções muito variadas. Por essa razão, a restrição de seu  âmbito de atuação à exceção de contrato não cumprido não parece adequada, como não raramente se verifica na doutrina6.

Nesse contexto, a cláusula solve et repete “tem uma finalidade específica, qual seja limitar, em favor daquele a quem beneficia, a oponibilidade de exceções relativas à inexecução das obrigações contratuais, como é o caso da exceptio non adimpleti contractus”7. Dito de outra forma, a cláusula solve et repete consiste em “meio de autotutela no contrato bilateral, em favor da parte que tem a receber a prestação indispensável, a fim de impedir que a contraparte se exima de cumprir invocando a exceção”8.

Trata-se, portanto, de renúncia ao exercício da oponibilidade de uma exceção e não de renúncia ao crédito. Por essa razão, pode o contratante, impedido de opor a exceção e prejudicado pelo inadimplemento da contraparte, voltar-se contra o inadimplente para exigir o cumprimento da prestação ou as perdas e danos9. Essa renúncia gera, então, o efeito de impedir que o contratante prejudicado se recuse a cumprir a própria prestação10, mas não o impossibilita de perseguir o seu crédito pelos meios adequados. Assim, a cláusula solve et repete assegura ao contratante que dela se beneficiou “um fluxo contínuo das prestações a que tem direito, o que pode atender a diversos interesses negociais dignos de tutela”11.

Embora amplamente aceita doutrinariamente, a cláusula solve et repete, diferente do direito italiano12, não possui previsão legal na codificação civil brasileira. Ainda assim, é possível cogitar de sua aplicabilidade como resultado do exercício da autonomia privada, desde que observadas certas limitações tais como a observância dos deveres laterais da boa-fé objetiva, o respeito aos critérios de validade do negócio jurídico, bem como o exercício não abusivo da cláusula13.

Ainda sobre as limitações de aplicabilidade da cláusula solve et repete, podem-se reputar os contratos de adesão e os contratos de consumo. Quanto aos contratos de adesão, considerando-se especificamente a exceção de contrato não cumprido, pode-se alcançar a conclusão de que a cláusula solve et repete se amolda à causa de nulidade disposta no art. 424 do Código Civil14, tendo em vista que essa exceção consiste em remédio atribuído aos contratos sinalagmáticos15. Já em relação aos contratos de consumo, a inserção de cláusula solve et repete seria reputada nula por força do art. 51, I, do CDC16.

O exercício de renúncia à possibilidade de oponibilidade da exceção de contrato não cumprido também pode resultar de ato unilateral do contratante, seja expresso ou tácito. No primeiro caso, é possível vislumbrar a hipótese em que, diante de um inadimplemento, o contratante prejudicado pela falta da prestação comunique a contraparte informando que continuará cumprindo com a sua obrigação, a despeito do incumprimento do outro. A renúncia seria tácita, por outro lado, se o contratante, cientificado de forma antecipada pela contraparte de seu iminente descumprimento, ainda assim efetuasse normalmente o seu pagamento17.

Nesse contexto, Vitor Butruce observa que o não uso da exceção de contrato não cumprido não implica necessariamente em renúncia. Isso porque a exceção de contrato não cumprido consistiria em direito potestativo e, por essa razão, faculta-se ao seu titular o seu exercício no momento mais oportuno. Dessa forma, a tolerância ao inadimplemento não se iguala à renúncia à oposição da exceção de contrato não cumprido18. É o que se constata nos chamados contratos de duração, em que a parte excipiente por vezes, aceita o inadimplemento do outro contratante enquanto essa postura se mostra conveniente à persecução de seu interesse dentro do programa contratual globalmente considerado.

A renúncia à exceção de contrato não cumprido demonstra que as partes podem perseguir o resultado útil do contrato sem necessariamente lançarem mão do remédio previsto em lei. Embora o adimplemento reconhecidamente polarize a obrigação, a complexidade da relação contratual permite construir e modular os meios para alcançá-lo, de maneira que o próprio adimplemento passa a integrar uma equação mais ampla, em que se leva em conta a globalidade dos interesses subjacentes ao contrato. Uma vez mais, a leitura funcional se mostra imprescindível, ao permitir, de um lado, a identificação dos fins efetivamente perseguidos pela parte que renuncia e, do outro, a submissão da própria renúncia, enquanto expressão da autonomia privada, a um exame de conformidade com a ordem civil-constitucional.

*Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela UERJ. Pesquisadora da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.

**Marcos de Souza Paula é mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ. Assessor do TJ/RJ. 


1 DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: os contratos. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, v. 2, p. 188.

2 “Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.

3 Nesse sentido, v. BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 64 e FREITAS, Rodrigo Lima e Silva de. O locus de atuação da exceção de contrato não cumprido no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 53-54.

4 GAGLIARDI, Rafael Villar. A exceção de contrato não cumprido. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC SP, 2006, p. 228. Em sentido contrário, Araken de Assis considera que a renúncia como uma das “causas autônomas de extinção da exceção de inadimplemento” (ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 694).

5 ASSIS, Araken de. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coords.). Comentários ao código civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 695-696.

6 Para uma análise pormenorizada da matéria e dessa crítica, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia; SILVA, Jeniffer Gomes da. Cláusulas solve et repete: perspectivas de atuação da autonomia privada na (de)limitação das exceções oponíveis pelo devedor. Revista Eletrônica da PGE RJ. Jan.- abr./2020, v. 3, n. 1. Disponível aqui.

7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Contratos e Obrigações – Pareceres: de acordo com o Código Civil de 2002, Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 472.

8 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2011, v. 6, t. 2, p. 821-822.

9 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 414.

10 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167.

11 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 171.

12 Na codificação civil italiana, as cláusulas solve et repete são previstas no art. 1.462: “Cláusula limitativa da proponibilidade de exceções. A cláusula pela qual se estabelece que uma das partes não pode opor exceções a fim de evitar ou de retardar a prestação devida, não tem efeito para as exceções de nulidade, de anulabilidade e de rescisão do contrato. Nos casos em que a cláusula for eficaz, se o juiz achar que concorrem motivos graves, pode, apesar da circunstância, suspender a condenação, impondo, quando for o caso, uma caução” (tradução livre do original).

13 Miguel Maria de Serpa Lopes conclui pela admissibilidade da cláusula solve et repete no direito brasileiro, desde que ressalvadas algumas limitações: “(…) a referida cláusula não pode ser entendida deslimitadamente, mas sim guardadas certas reservas, sobretudo no tocante à questão da nulidade, anulabilidade e precipuamente em relação ao dolo. Consideramos, mesmo, que a omissão da nossa ordem jurídica a esse respeito pode ser perfeitamente suprida obedecendo-se à estrutura que vem de lhe dar o atual Código Civil italiano (…)” (LOPES, Miguel Maria de Serpa. Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p. 334).

14 “Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”.

15 Em sentido semelhante, manifesta-se João Pedro de Biazi: “Em contratos por adesão, a cláusula solve et repete é inválida por incidência do artigo 424 do Código Civil, bem como por incidência da cláusula geral de boa-fé, que impõe a preservação de regras que assegurem o equilíbrio mínimo da relação negocial” (BIAZI, João Pedro de. A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 241).

16 “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;”.

17 A situação é bem exemplificada por Vitor Butruce: “Imagine-se situação em que um empreiteiro deixe de concluir tempestivamente certa etapa do cronograma de uma empreitada, por encontrar-se em dificuldades financeiras. Haveria renúncia expressa à exceptio se o dono da obra comunicasse à contraparte, mediante correspondência, que não suspenderia seus pagamentos periódicos para não o conduzir à ruína. Diante da mesma inadimplência, haveria renúncia tácita, por exemplo, se o empreiteiro desse ciência ao dono da obra sobre o iminente descumprimento do prazo e este, verificado o inadimplemento, solicitasse emissão de fatura para providenciar o pagamento da prestação vencida (embora inexigível, dado o inadimplemento). Também o próprio cumprimento da prestação, antecipado ou em conformidade ao programa contratual, é considerado por alguns autores como uma espécie de renúncia tácita ao exercício da exceptio”. (BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 167).

18 BUTRUCE, Vitor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no Direito Civil brasileiro contemporâneo: funções, pressupostos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, p. 168.

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