Reflexões sobre a discussão acerca do rol de cobertura da ANS

Há muito se discute a cobertura dos planos de saúde em suas diversas modalidades, destacando-se aqui dois temas recorrentes: ampliação de cobertura dos planos como decorrência da incorporação de novos procedimentos, e a discussão sobre a natureza do rol da ANS, se exemplificativo ou taxativo.

São discussões distintas, mas imbricadas, pois ambas dizem respeito, de uma forma geral, à cobertura dos planos de saúde, implicando em altos índices de judicialização e, como não poderia deixar de ser, impactam o setor de saúde suplementar, incluindo ofertantes de serviços e consumidores. Para além disso, tais discussões repercutem no próprio papel da ANS, pois a depender da decisão sobre a natureza do rol, teremos o fortalecimento do papel da ANS e do procedimento previsto na Lei 9656/98 para a incorporação de tecnologias em saúde ou, ao contrário, teremos o enfraquecimento da agência e do próprio procedimento administrativo para incorporação de tecnologias.

Usualmente, essa divergência é reduzida, de forma muito simplista, a supostas dicotomias entre direito à vida e à saúde x lucro ou entre seguradoras x consumidores, o que além de distorcer a discussão, nos afasta das reflexões centrais sobre assunto tão delicado, como por exemplo, a função social desses contratos e, efetivamente, a cobertura que queremos para os planos privados de assistência à saúde.

Saúde, direito à saúde e cobertura contratual de planos e seguros de assistência à saúde.

Conforme a declaração da Organização Mundial de Saúde em 1948, “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.”

Em que pese a abrangência do conceito proposto pela OMS, é muito elucidativo dos diversos fatores envolvidos no atingimento do bem-estar e da saúde. Não se trata apenas da não doença, mas também, dentre outros, do potencial acesso aos tratamentos preventivos e paliativos que se mostrarem necessários.

É factível supor que essa concepção de saúde, aliada a um conjunto maior de transformações no âmbito da garantia de direitos, influenciou ou mesmo foi determinante para a inclusão da saúde no conjunto de direitos fundamentais de segunda geração, ainda que as formas de concretização desse direito, no caso brasileiro, tenham se concentrado na saúde física.  

No caso brasileiro, o direito social à saúde foi expressamente previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Já a forma de concretização desse direito, encontra previsão no artigo 196 e seguintes da Constituição. Assim, temos que o direito social à saúde é assegurado a todos, sendo que a prestação desse serviço é incumbência do poder público, a quem compete prestações positivas e materiais. Nesse sentido, foi instituído o Sistema Único de Saúde, público e universal, a ser financiado com recursos públicos, notadamente pelo orçamento da seguridade social.

Para além da prestação pública de serviços de saúde, o constituinte previu também a possibilidade de atuação de agentes privados, de forma complementar. A atuação dos agentes privados encontra fundamento na livre iniciativa e tem uma lógica diversa da do Sistema Único, pois não é obrigação do agente privado concretizar, em substituição ao Estado, o direito à saúde, pois atuação complementar não se confunde com preposição ou substituição do Estado.

Essa afirmação gera algum tipo de desconforto, mas se faz necessária para a delimitação das atribuições e responsabilidades de cada agente envolvido, bem como para reflexão e construção do sistema que queremos.  

De início, importante destacar que a oferta privada de saúde se inicia na primeira metade do século XX atrelada às categorias profissionais, em razão da falta de oferta de serviços públicos que, efetivamente, pudessem atender a população, e permanece mesmo após a criação do Sistema Único de Saúde1.

Atualmente, o sistema de saúde suplementar abarca 49 milhões de beneficiários2, o que corresponde a cerca de 23% da população. Ao verificarmos a distribuição do conjunto de beneficiários por modalidade de contratação, observa-se que cerca de 40 milhões de beneficiários ou 82% do total de beneficiários estão inseridos em contratos coletivos na modalidade empresarial (33,7 milhões) ou por adesão (6,32 milhões), ao passo que a contratação individual ou familiar responde por apenas 18,18% do total de beneficiários3.

Significa dizer que a distribuição do total de beneficiários por modalidade de contratação indica que o ingresso no sistema suplementar está diretamente relacionado ao pertencimento do mercado formal de trabalho e, sendo assim, sujeito as oscilações e as clivagens do mercado de trabalho e não tão distante dos primórdios do sistema. 

Ademais, os números indicam que a cobertura do sistema suplementar ainda é baixa e concentrada nos planos coletivos. Podemos indagar se essa baixa cobertura é derivada da amplitude e efetividade do sistema público de saúde ou se o custo da assistência privada é um obstáculo para o ingresso de parcela maior da população, especialmente daqueles que não preenchem os requisitos de elegibilidade para pertencer aos planos coletivos.

Essa nos parece ser uma questão essencial, afinal entende-se premente definir o que se compreende ou pretende por cobertura por planos e seguros privados de assistência à saúde. A finalidade do sistema é a cobertura mais abrangente possível de procedimentos em saúde ou uma cobertura abrangente, tal qual previsto na legislação, mas previamente determinada, o que garante previsibilidade, essencial para todos os envolvidos, especialmente para o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e do setor.  

Plano-referência e o rol de procedimentos da ANS

A Lei 9656/98 regula o segmento de planos privados de assistência à saúde, estabelecendo dentre outros, o plano-referência e a segmentação assistencial. Assim, a lei garante uma cobertura mínima e igual por todas as operadoras, bem como faculta contratações diferenciadas a partir da segmentação disponível.

O plano de referência, previsto no art. 10 da Lei 9656/98, estabelece as doenças cobertas e o rol de procedimentos da ANS estabelece os procedimentos e/ou tratamentos obrigatoriamente cobertos. Ambas as previsões são essenciais para todos os envolvidos: consumidores e operadoras e seguradoras. A lei prevê ainda a revisão e incorporação de tecnologias em saúde, ou seja, o rol, embora abrangente, não é estático, como a rigor não poderia ser.

Os expedientes são necessários e favoráveis ao consumidor, pois constituem mecanismo de mitigação da assimetria técnica e informacional. Afinal, o leigo não seria capaz de prever doenças e tratamentos adequados. Também é um favor ao consumidor, pois permite a comparação entre os serviços e preços que estão sendo ofertados por diferentes operadoras e seguradoras.

Mas, para além de ser um mecanismo de proteção do consumidor, o rol de procedimentos é essencial para a análise econômico-financeira dos planos e seguros de assistência privada à saúde. Isto porque esses contratos seguem a lógica do contrato de seguro, de natureza eminentemente comunitária e cujos elementos essenciais são: prêmio; garantia; interesse legítimo (segurável); risco; e, empresarialidade.

A defesa pelo rol exemplificativo, em síntese, vai ao encontro de uma concepção de cobertura pelo viés da garantia da saúde física, abarcando os procedimentos que venham a ser prescritos pelo profissional médico. Em que pese tal abrangência não ser garantida nem mesmo pelo sistema público e universal, muitas decisões sustentam o caráter exemplificativo do rol, ao argumento de que o contrário atentaria contra o direito à saúde do consumidor, da impossibilidade de o consumidor conhecer e até mesmo compreender a lista de procedimentos e, também, que a recusa na cobertura em razão da não previsão no rol seria exploração predatória do serviço.

Assim, temos que a natureza exemplificativa do rol de procedimentos e eventos em saúde, a princípio, favorece o conjunto atual de beneficiários de planos e seguros de saúde, pois retira a limitação imposta pelo rol, mas pode significar barreiras de entrada aos novos ingressantes e mesmo se tornar fator impeditivo de permanência daqueles que já estão no sistema em razão da pressão sobre os preços finais.

Já a natureza taxativa do rol de procedimentos cobertos encontra fundamento direto na técnica securitária, especialmente na correlação entre o risco coberto e o prêmio pago, na medida em que, em conjunto, orientam a técnica securitária, sendo o risco predeterminado no contrato, o parâmetro definidor da correspectividade entre o prêmio pago pelo segurado e a garantia assumida pelo segurador.

A defesa pelo rol taxativo encontra fundamento na literalidade do art. 10, §4º da Lei 9656/98 e no equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Ainda que não se possa garantir que a definição nesse sentido representaria uma diminuição ou contenção dos custos, facilitando o acesso de novos consumidores, fato é que a dissonância entre prêmios pagos e riscos cobertos impactam no equilíbrio e são repassados aos consumidores.

Considerações finais:

O debate sobre a natureza do rol de procedimentos da ANS envolve o sensível tema da saúde e não pode deixar de considerar que, não obstante inserido em um contrato, envolve, para os consumidores e/ou beneficiários, interesse existencial. Por outro lado, igualmente não se pode olvidar da relevância do equilíbrio econômico-financeiro do setor e da sua importância no contexto social e sanitário do país.

Deve-se atentar ainda para as especificidades da funcionalização dos contratos de assistência saúde e da sua lógica securitária. Isto porque, nesse tipo contratual, a funcionalização é peculiarmente caracterizada pela necessidade de compatibilização de três centros de interesses: i) do consumidor/beneficiário e da operadora ou seguradora, em uma perspectiva individual; ii) do conjunto de consumidores/beneficiários e do fundo por eles constituído, em uma perspectiva coletiva interna; e, iii) dos centros de interesses acima descritos com o da coletividade externa.

Em outros termos, sendo um contrato comunitário, a relação estabelecida entre do consumidor/beneficiário e da operadora ou seguradora deve observar não apenas os objetivos perquiridos pelas partes em suas relações isoladas, mas sim o fim almejado pelo conjunto de relações que compõem a base mutuária do sistema, permitindo a sua própria existência e, além desses, os objetivos socialmente relevantes, na medida em que, além da sua função econômica própria, o contrato deve respeitar e cumprir a função social dos contratos.

Nessa perspectiva, voltamos aos questionamentos feitos previamente: qual é a definição de cobertura que pretendemos para esse sistema, qual é a atribuição e responsabilidade de todas as partes envolvidas, incluindo o órgão regulador?

Seja qual for o resultado de tal embate doutrinário e jurisprudencial, precisamos de uma decisão final que garanta, no mínimo, a previsibilidade necessária.


1 Ver: Carlini, Angelica. Judicialização da Saúde Pública e Privada. Livraria do Advogado Editora. Edição do Kindle.

2 Disponível aqui.

3 A baixa participação dessa modalidade de contratação pode resultar da dificuldade financeira das famílias, assim como da restrição de ofertas de planos nessa modalidade por parte das operadoras e seguradoras.

Texto disponível na íntegra em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/360843/reflexoes-sobre-a-discussao-acerca-do-rol-de-cobertura-da-ans

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