Introdução
Na legislação que disciplina o direito societário brasileiro, a expressão haveres aparece nos artigos: 1.107 do Código Civil1, 72 da lei 5.764/712, 215 da lei 6.404/763 e ao longo de todo o Capítulo V do Título III do Código de Processo Civil, o qual disciplina o procedimento de dissolução parcial de sociedade.
Em monografia clássica sobre o tema, Hernani Estrella conceitua haveres como “o conjunto de valores, composto pela contribuição de capital, pelo quinhão nos fundos e reservas, pela quota-parte nos lucros e, ainda, por quaisquer outros créditos em conta disponível. Todos estes componentes vêm a dar, afinal, a resultante que representará a soma total a reembolsar ao sócio”.4
Sempre se admitiu que os sócios previssem no estatuto ou contrato social o modo de avaliar os haveres e, além disso, o modo de os pagar; o n. 6o do artigo 302 do Código Comercial chegava mesmo a arrolar entre os requisitos do contrato social a previsão do modo de liquidação da sociedade e partilha dos resultados.
O direito dos sócios de, por ato de autonomia privada, estabelecer o modo de avaliar os haveres e o modo de os pagar é, ainda, inequívoco no direito positivo vigente; concede-o os artigos 1.031 caput e § 2o5, 1.1026 do Código Civil e os artigos 604, II, 606 e 609 do Código de Processo Civil7.
No entanto, a jurisprudência e a nova disciplina constante do Código de Processo Civil têm mitigado a força obrigatória da cláusula que estabelece o modo de apuração dos haveres.
Ademais, até a entrada em vigor do Código de Processo Civil, a pretensão aos haveres era privativa do sócio e condicionada à liquidação da sociedade, ainda que parcial. O Código Civil, em seu artigo 1.027, preceitua que os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.
Não obstante, os incisos I e II e o parágrafo único do artigo 600 do Código de Processo Civil deram à matéria disciplina radicalmente diversa. Com efeito, passaram a ter legitimidade para requerer a apuração de haveres o espólio e, após ultimada a partilha, os herdeiros do sócio falecido e, ainda, legitimidade para pleitear a liquidação parcial da sociedade e a apuração de haveres o cônjuge ou companheiro do sócio, quando da extinção do casamento ou união estável.
Concedida, todavia, legitimidade ao cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento ou união estável se desfez, coloca-se a questão da eficácia dessas previsões perante eles, terceiros na relação sócio-sociedade.
A efetividade da cláusula de apuração de haveres e a vinculação do ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio são questões às quais se pretende oferecer alguma contribuição, ainda que muitíssimo singela.
Uma cláusula que não é levada a sério
A eficácia da cláusula de apuração de haveres é a de preestabelecer o modo de avaliar e quantificar o crédito do sócio; por efetividade, no entanto, quer-se significar a sua aplicação autônoma e heterônoma, é dizer, pelos sócios e pelo adjudicador (juiz ou árbitro).
Embora óbvio, parece útil e até mesmo necessário reafirmar a natureza jurídica da cláusula: trata-se de disposição contratual que tem por fonte a autonomia privada e, que, portanto, desde que existente e válida, deve produzir todos os seus efeitos.
A cláusula de apuração de haveres é dotada da obrigatoriedade inerente a qualquer disposição contratual e seu afastamento somente pode se dar quando presentes requisitos preestabelecidos pelo legislador, como os determinantes dos vícios de invalidade e os autorizadores da revisão.
Todavia, a jurisprudência e, agora, a própria lei tratam a cláusula de apuração de haveres como mera “obrigação” moral, despida de efetividade. Embora o espaço dessa coluna não permita a análise detida da jurisprudência, principalmente a do Superior Tribunal de Justiça, pode-se afirmar que a tendência é que, quanto à cláusula de apuração dos haveres, ela só prevaleça se a unanimidade dos sócios estiver de acordo com os resultados a que os critérios livremente eleitos conduziram.
Em julgado considerado paradigmático, o acórdão restou ementado assim:
DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. 4. Recurso especial desprovido. RECURSO ESPECIAL Nº 1.335.619 – SP (2011/0266256-3), julgado em 3/3/2015.
A decisão, sempre com todas as vênias, conduz a uma conclusão absurda: a cláusula contratual só tem eficácia quando ela não é necessária, isto é, quando todos estão de acordo. Ora, é escusado dizer que a função principal dos contratos de duração é antecipar soluções para as eventuais divergências futuras. Em questões patrimoniais disponíveis, é óbvio que as partes, sendo capazes, podem acordar de modo diametralmente oposto ao originalmente previsto no contrato. A utilidade do contrato é servir como norma autônoma e, como toda norma, ser vinculante8.
No entanto, como sinalizado, também a lei parece enfraquecer a força vinculante da cláusula de apuração de haveres. O artigo 607 do Código de Processo Civil estabelece que a data da resolução e o critério de apuração de haveres podem ser revistos pelo juiz, a pedido da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia9.
Quanto à questão da revisão da data-base da resolução, remetemos o leitor à obra de Valladão e Adamek; quanto à previsão de revisibilidade do critério de apuração, sugere-se seja dado ao dispositivo interpretação restritiva.
Embora a lei pareça facultar à parte amplo direito de pleitear a revisão do critério de apuração, deve-se, a partir de uma análise sistemática do conjunto normativo, concluir que o pedido de revisão deve se fundamentar em alguma das hipóteses legais que admitem a revisão dos contratos, designadamente os artigos 317 e 478/479 do Código Civil -cabendo fazer notar, quanto a estes últimos dispositivos, que o devedor é a sociedade-, mesmo quando, em razão da omissão das partes (o que também deve ser qualificado como fruto da autonomia privada), o critério de apuração seja aquele previsto no artigo 606 do Código de Processo Civil.
O respeito à autonomia privada, valor estruturante do Direito Privado, foi reafirmado pela chamada Lei da Liberdade Econômica, que, entre outras disposições, incluiu no Código Civil o parágrafo único do artigo 421 e o artigo 421-A10, os quais consagram as regras da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão dos acordos.
A eficácia da cláusula de haveres perante terceiros
O fato de o contrato ser produto da autonomia privada implica, como corolário lógico, sua obrigatoriedade e a relatividade de seus efeitos; se o contrato é eficácia do exercício da autonomia privada, somente pode estar vinculado contratualmente quem exerceu autonomia privada.
A partir dessa premissa simples, põe-se a questão sobre a vinculação, ou não, do ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio à cláusula de haveres (expressão genérica que abrange a cláusula de determinação do modo de apuração e do modo de pagamento dos haveres), afinal inequivocamente são qualificados como terceiros na relação sócio-sociedade.
Trata-se, na verdade, de pseudoquestão. A imunidade de terceiros contra os efeitos do contrato refere-se, fundamentalmente, aos direitos subjetivos do terceiro11 que não derivem direta ou indiretamente do contrato. Sempre que a situação jurídica do terceiro derivar do contrato, ela se submeterá ao regime jurídico contratual.
Assim, o cônjuge ou companheiro do sócio não tem propriamente direito contra a sociedade; seu direito é contra o sócio- é direito sobre o direito [rectius: crédito] do sócio- e, portanto, submete-se ao regime jurídico a que está submetido o sócio.
Não faria sentido, por exemplo, que o contrato estabelecesse como critério de apuração o do valor dos bens tangíveis a preço de saída e o pagamento em trinta e seis parcelas e o ex-cônjuge exigisse o critério do fluxo de caixa descontado e o pagamento em noventa dias.
A velha máxima segundo a qual nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet tem, pois, integral aplicação à hipótese.
Cabe, ademais, apontar uma lacuna importante no regime jurídico disposto pelo Código de Processo Civil ao procedimento de dissolução parcial de sociedade. Embora o parágrafo único do artigo 606 confira legitimidade ativa ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, não estabelece a data-base para efeitos do disposto artigo 60812.
Considerando-se que o direito do ex-cônjuge ou ex-companheiro deriva do regime de bens que regia a relação patrimonial entre ele e o sócio, a melhor interpretação parece ser a de estabelecer como data-base o momento em que tem fim a sociedade conjugal, o que se dá com a mera separação de fato e, a partir da entrada em vigor da emenda constitucional n 66/2010, independentemente do tempo da separação.
Conclusões
As cláusulas contratuais de apuração e pagamento de haveres são produto legítimo do exercício da autonomia privada dos sócios; ninguém melhor do que os sócios há para predeterminar como deve ser avaliado o patrimônio da sociedade e como deve ser pago o crédito do sócio cujo vínculo com a sociedade se desfez.
As intervenções heterônomas em questões como estas, puramente patrimoniais e disponíveis, para além de estimularem comportamentos oportunistas e desleais, colocam em risco a própria atividade econômica. Decisões como a citada a cima, que substituiu o critério de apuração de haveres eleito livremente pelos sócios pelo critério chamado fluxo de caixa descontado são desastrosas para a segurança do tráfego negocial.
Não fosse suficientemente grave desprezar um critério de apuração de haveres livremente pactuado, acolher a pretensão do sócio retirante de ver a sociedade avaliada por um critério cuja função principal é a de fornecer balizas para precificação de negócios jurídicos de compra e venda de participação societária é quase que prestigiar o enriquecimento sem causa. Ora, mensurar quanto um sócio tem de crédito hoje a partir da perspectiva de lucro eventual que a sociedade possa ter amanhã é solução leonina, já que o sócio retirante não correrá o risco das perdas futuras; cláusula contratual que dispusesse que certo sócio terá direito a antecipação de predeterminados lucros futuros hipotéticos, mas não responderá por riscos futuros certamente esbarraria no artigo. 1.108 do Código Civil13.
Finalmente, de lege ferenda, melhor seria que o parágrafo único do artigo 600 do Código de Processo Civil fosse revogado e fosse expressamente repristinada a vigência do 1.027 do Código Civil, impedindo-se que vicissitudes pessoais afetassem a sociedade e os demais sócios; de lege lata, é importante assentar que o ex-cônjuge/ex-companheiro vincula-se tanto à cláusula de apuração de haveres como à de seu pagamento, bem como que a data-base para efeitos de quantificação do crédito é o fim da sociedade conjugal, desde a separação de fato.
*Maurício Bunazar é mestre em Direito Civil pela USP. Doutor em Direito Civil pela USP. Pós-doutorando em Direito Civil pela USP. Professor do IBMEC-SP e do Damásio Educacional. Fundador e diretor executivo do Instituto Brasileiro de Direito Contratual-IBDCONT. Advogado.
1 Art. 1.107. Os sócios podem resolver, por maioria de votos, antes de ultimada a liquidação, mas depois de pagos os credores, que o liquidante faça rateios por antecipação da partilha, à medida em que se apurem os haveres sociais.
2 Art. 72. A Assembléia Geral poderá resolver, antes de ultimada a liquidação, mas depois de pagos os credores, que o liquidante faça rateios por antecipação da partilha, à medida em que se apurem os haveres sociais.
3 Art. 215. A assembléia-geral pode deliberar que antes de ultimada a liquidação, e depois de pagos todos os credores, se façam rateios entre os acionistas, à proporção que se forem apurando os haveres sociais.
4 ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. José Konfino editor. Rio de Janeiro, 1960, p. 182.
5 Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. (omissis). §2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
6 Art. 1.102. Dissolvida a sociedade e nomeado o liquidante na forma do disposto neste Livro, procede-se à sua liquidação, de conformidade com os preceitos deste Capítulo, ressalvado o disposto no ato constitutivo ou no instrumento da dissolução.
7 Art. 604. Para apuração dos haveres, o juiz: (omissis); II – definirá o critério de apuração dos haveres à vista do disposto no contrato social. Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma; Art. 609. Uma vez apurados, os haveres do sócio retirante serão pagos conforme disciplinar o contrato social e, no silêncio deste, nos termos do § 2º do art. 1.031 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
8 O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, infelizmente vencido, sintetizou com precisão os problemas da decisão: a um só tempo se legitima o desrespeito ao princípio da obrigatoriedade dos contratos, e viola-se a lei na medida em que ela determina que o critério a ser observado deve ser o eleito pelas partes.
9 Esse artigo mereceu crítica tão dura quanto justa dos juristas Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira von Adamek, os quais colocam em dúvida até mesmo a constitucionalidade da norma. Direito Processual Societário. Comentários breves ao CPC/2015, 2a edição, 2021, Malheiros e Juspodium, p. 92-93.
10 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela lei 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela lei 13.874, de 2019);
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
11 Utilizar-se-á a definição de direito subjetivo proposta por A. TOMASETTI Jr., para quem “trata-se de uma posição jurídica subjetiva ativa complexa, unitária e unificante de posições jurídicas subjetivas ativas elementares, ou seja, implica um conjunto de faculdades, pretensões, poderes formativos e imunidades, os quais se acham em estado de coligação normal e constante, sob a titularidade de um sujeito determinado, relativamente a certo objeto”. Cf. Comentário, in RT 723 (1996), pp. 208-223.
12 Art. 608. Até a data da resolução, integram o valor devido ao ex-sócio, ao espólio ou aos sucessores a participação nos lucros ou os juros sobre o capital próprio declarados pela sociedade e, se for o caso, a remuneração como administrador.
13 Art. 1.008. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.