O condomínio residencial pode proibir oferta de apartamentos pelo Airbnb?

Um dos temas mais controvertidos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, em 2021, foi o enquadramento legal e as consequências advindas da disponibilização – total ou parcial – de imóveis a terceiros, mediante contraprestação pecuniária, por curto período e mediante a utilização de plataformas virtuais, como o Airbnb1. O STJ examinou a questão em duas oportunidades e, tendo publicado há poucos dias o inteiro teor do acórdão do segundo caso, o que torna possível cotejar as duas decisões, de modo a compreender com exatidão seus atuais contornos.

A importância desta análise decorre do fato de que, a partir de tais decisões, proprietários que dispõem de apartamentos residenciais para uso de terceiros via plataformas digitais podem enfrentar severas limitações. Por outro lado, condomínios que estão enfrentando problemas de segurança ou de perturbação do sossego causados pela alta rotatividade destes “hóspedes” podem agora adotar com maior certeza medidas para solucionar tais transtornos. 

O primeiro caso foi o REsp n.º 1.819.075/RS, julgado pela 4ª Turma, sob a relatoria do min. Luis Felipe Salomão e publicado em 27/05/2021. A controvérsia fática era peculiar, razão pela qual será apresentada com maiores detalhes, pois estes influenciaram sobremaneira o desfecho do julgamento. Tratava-se de ação de obrigação de não fazer ajuizada por condomínio residencial em face dos proprietários (mãe e filho) de duas unidades autônomas por meio da qual se objetivava a cessação da exploração econômica de tais espaços, que se dava de forma fracionada, por curtos períodos, com alta rotatividade de pessoas e oferecida por meio de plataforma digital (Airbnb). Os requeridos realizaram reformas para ampliar o número de quartos e assim acomodar mais pessoas. Além disso, passaram a oferecer serviços suplementares, tais como o de lavanderia, e adquiriram mais um apartamento para replicar esse modelo de exploração. Não havia um contrato padrão ou regime único, existindo ocupações mais curtas e outras mais longas. Em seu depoimento, a requerida afirmou que idealizou o uso de tais ambientes à semelhança do funcionamento de um hostel. Ainda, não juntou aos autos cópia dos contratos celebrados.

Em primeiro grau, foi julgado procedente o pedido, sob o fundamento de que o contrato em questão seria atípico, não regulado pela Lei do Inquilinato (lei 8.245/91) e, portanto, incompatível com condomínio residencial. O TJ/RS, por sua vez, manteve a sentença por entender que os negócios praticados teriam natureza de contrato de hospedagem, o que implicaria ocorrência de atividade comercial, vedada pela convenção condominial. Finalmente, a partir da singularidade do caso concreto, o STJ decidiu, por maioria, seguindo o voto do min. Raul Araújo, que: i) os contratos pactuados neste caso se enquadram em modalidade de hospedagem atípica remunerada com múltipla e concomitante disponibilização de aposentos em apartamento, para diferentes pessoas, em geral sem vínculo entre si, por curta temporada, o que configura exploração comercial; ii) tal modelo de negócio é incompatível com a destinação residencial inserida em cláusula da convenção condominial, sendo, portanto, ilegal; iii) caso seja do desejo da maioria dos condôminos, é possível a alteração da convenção para permitir tal uso dos apartamentos2.

Destaca-se que a decisão proferida pelo STJ se vincula ao contexto fático do caso julgado. Certamente, a confissão da requerida de que idealizou uma espécie de hostel, o fato de proporcionar serviço de lavanderia e a não juntada dos contratos celebrados foram determinantes para a conclusão de que havia atividade comercial e, portanto, desvirtuamento da destinação residencial do condomínio. Logo, o STJ não decretou que a utilização do Airbnb configura, por si só, exploração comercial, mas que no modelo do caso, sim, pelas razões mencionadas. Não houve tese geral firmada ou o estabelecimento de precedente vinculante.

O segundo caso foi o REsp n.º 1.884.483/PR, julgado pela 3ª Turma, sob a relatoria do min. Ricardo Villas Bôas Cueva e publicado em 02/02/2022. O caso versou sobre ação de anulação de assembleia condominial que alterou a convenção de condomínio e incluiu cláusula de proibição de realização de locação por prazo inferior a 90 dias. Por maioria, entendeu-se pela possibilidade de tal vedação na convenção condominial. No acórdão, o min. Marco Aurélio Bellizze apontou discordar do entendimento do relator quanto à desnaturação da finalidade residencial apenas por ser a hospedagem atípica. Ainda, pontuou corretamente que – ao contrário do que a leitura dos votos do relator min. Cueva e do relator para o acórdão do caso antecedente, min. Raul Araújo, poderia levar a crer – eventual alteração da finalidade do condomínio dependeria da unanimidade dos condôminos, conforme determina o art. 1.351 do Código Civil.

Neste cenário, percebem-se, em tese, duas posições antagônicas: a dos proprietários que desejam explorar o imóvel e a dos condôminos que buscam impedir o uso por curto período e alta rotatividade.

Do ponto de vista do proprietário, é compreensível o objetivo de obter renda sobre um imóvel adquirido para investimento ou que simplesmente faz parte de seu acervo patrimonial. Há alguns anos, esses dilemas eram enfrentados apenas em cidades turísticas, onde a exploração geralmente ocorria por imobiliárias. Hodiernamente, plataformas como o Airbnb permitem atingir variados ambientes, bastando dispor de uma acomodação livre.

Importante: não havendo qualquer decisão vinculante, por ora, cabe ao proprietário inicialmente se informar sobre o conteúdo da convenção de condomínio. Caso a destinação seja residencial, devem ser evitadas a prestação de serviços assemelhados à hospedagem, como arrumação de quartos, limpeza, café da manhã e lavanderia, que podem contribuir para a caracterização de atividade econômica. Em relação ao modo como divulga o ambiente, como bem pontuou o STJ, é indiferente se a publicidade da disponibilização do ambiente é realizada “por meio de plataformas digitais, por intermédio de imobiliárias, por simples panfletos afixados nas portarias dos edifícios, anúncios em classificados, etc”.3

Um possível obstáculo ao proprietário pode ser o argumento de que o contrato de locação atípico desvirtuaria a destinação residencial do condomínio. O proprietário pode se defender invocando os seguintes fundamentos: i) há diversos modelos de negócio que podem ser usados nas plataformas digitais e nem todos acarretam exploração comercial; ii) este raciocínio conduzia ao impedimento de que os condôminos trabalhassem em regime de home office4, uma vez que o apartamento teria finalidade híbrida, residencial e comercial, o que é vedado em convenção. O condomínio precisaria tratar isonomicamente os condôminos e, se impedir o contrato de habitação atípico desprovido do fornecimento de serviços, também precisaria vedar o uso das unidades para home office, o que além de desarrazoado, seria de difícil fiscalização. Para evitar celeumas, poderia adaptar a oferta de seu apartamento às regras da locação por temporada, bastando celebrar contrato por escrito, que decline razão permitida pela lei, seja por prazo inferior a 90 dias e que mencione a descrição dos móveis que o guarnecem e seu estado, caso esteja mobiliado5. Essa seria uma boa estratégia, pois é incomum a proibição dessa modalidade locatícia nas convenções condominiais. Além disso, apesar de o STJ no REsp. n.º 1.884.483/PR ter julgado legal essa proibição, certamente o tema permanece inconclusivo e poderá ser examinado no futuro pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que se trata de potencial afronta ao direito de propriedade assegurado no inciso XXII do art. 5º da Constituição da República. Por fim, deve o proprietário se utilizar de expedientes que minorem riscos à segurança e ao sossego da vida condominial, tais como receber o usuário da plataforma, passar à portaria os dados, pesquisar a pontuação do usuário no aplicativo, restringir, na oferta, o acesso a determinadas áreas comuns do condomínio (CC, art. 1.336, IV).

Não é demais lembrar que, da mesma forma como ocorre com qualquer visitante ou locatário, o proprietário do imóvel é responsável por qualquer dano que possa ser causado por quem estiver no imóvel, estando sujeito à aplicação de multa caso haja violação da segurança ou do sossego dos demais moradores (CC, art. 1.336, §2º).

Com a facilidade de aproximação entre proprietário e interessados possibilitada por plataformas digitais como o Airbnb, até mesmo regiões não vocacionadas ao turismo podem despertar o interesse de “hóspedes” e gerar importante renda aos proprietários. Sendo assim, do ponto de vista do condomínio, é preciso se ter claro qual o perfil do empreendimento e da coletividade nele domiciliada para que eventuais restrições sejam pertinentes e apropriadas. Vários fatores podem contribuir para a decisão: em qual cidade é situado, sua localização, quantidade de unidades autônomas, perfil do condomínio, dentre outros6.

O condomínio que desejar deliberar a respeito do tema deverá convocar uma assembleia extraordinária com essa pauta. A depender do modelo de negócios adotado pelo proprietário, na medida em que plataformas como o Airbnb permitem diferentes formas de exploração de imóvel, o condomínio residencial poderá tomar duas atitudes. A primeira, caso entenda que houve exploração comercial, será a de notificar o condômino para que cesse imediatamente o uso que desvirtue a finalidade residencial do condomínio, sob pena de serem aplicadas penalidades. A segunda, caso não tenha havido exploração comercial, será a de propor alteração da convenção para inserir cláusula que proíba tal uso, a qual necessitará de quórum de 2/3. Deve-se respeitar todas as regras legais acerca da convocação e realização da assembleia (controle de presença, análise de procurações), bem como efetuar o registro da ata nos cartórios competentes. Cabe novamente advertir que tal proibição poderá ser revista pelos tribunais, caso se entenda que há violação do direito de propriedade, como acima aludido7.

Sendo assim, ao se comparar e contrastar os fundamentos dos acórdãos dos Recursos Especiais n.ºs 1.819.075/RS e 1.884.483/PR conclui-se que a oferta – total ou parcial – de imóveis residencial a terceiros, mediante contraprestação pecuniária, por curto período, pode desvirtuar a finalidade do condomínio caso sejam agregados serviços típicos de hospedagem. Além disso, o modo como é dada publicidade à oferta (plataforma virtual, imobiliária, panfleto, etc.) é irrelevante. Por fim, foi admitida a inclusão de cláusula na convenção que veda locação por temporada, o que certamente ensejará novos pronunciamentos judiciais ante a potencial violação do direito de propriedade. Aos proprietários e condôminos, é fundamental compreender quais são os seus interesses e buscarem a devida regulamentação junto aos seus respectivos condomínios.

*Luciana Pedroso Xavier é advogada sócia da banca P.X Advogados. Diretora do IBDCont PR. Professora de Direito Civil da UFPR.


1 Sobre o tema já foi publicado nesta coluna, em maio de 2021, instigante artigo de Rodrigo Toscano de Brito: “Contrato atípico de hospedagem realizado através de plataformas digitais e sua incompatibilidade com a destinação residencial dos condomínios edilícios”.

2 Restou vencido o voto do relator originário do REsp n.º 1.819.075-RS, min. Luis Felipe Salomão, que entendeu pelo não desvirtuamento da destinação residencial e pela impossibilidade de o condomínio limitar o direito de propriedade dos requeridos. O voto é muito bem construído e merece exame mais profundo, o que se realizará futuramente em artigo mais extenso sobre o tema.

3 STJ, REsp 1884483/PR, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23/11/2021, REPDJe 02/02/2022, DJe 16/12/2021.

4 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 442. (livro digital).

5 Art. 48 da lei 8.245/91: “Considera – se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel. Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram”.

6 “Cada condomínio tem suas características e peculiaridades próprias. Aqueles situados em locais turísticos, próximos a universidades e hospitais, por exemplo, tendem a atrair investidores e proprietários cujo interesse predominante seja o de locar seus apartamentos para temporada (com ou sem a oferta de serviços). Por sua vez, um condomínio puramente residencial e com determinadas características, pode demandar cuidados adicionais em relação à segurança e à privacidade de seus moradores, mitigando o interesse na disponibilização da unidade para uso de terceiros”. (STJ, REsp 1819075/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/04/2021, DJe 27/05/2021).

7 Foi o entendimento do voto vencido proferido no REsp. n.º 1.819.075-RS pelo min. Luis Felipe Salomão. Como medida alternativa já sustentada por Flávio Tartuce, a restrição ao Airbnb poderia ser analisada a posteriori, e não por meio de uma vedação na convenção, que poderia violar o direito de propriedade. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 432. (livro digital).

Artigo também disponível no Migalhas Contratual: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/359312/condominio-residencial-pode-proibir-oferta-de-aptos-pelo-airbnb

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