Texto de autoria de Daniel Bucar
Os acentuados reflexos econômicos ocasionados pela pandemia da covid-19 já são uma realidade. A retração na cadeia de circulação de bens e serviços já se impõe e, excetuados os denominados bens e serviços essenciais, os demais atores da economia sofrem, em variadas medidas, o revés da crise sanitário-econômica. Ante os acentuados problemas daí decorrentes, um em especial merece atenção: o endividamento crítico da pessoa humana.
Primeiramente, uma advertência deve ser feita: o tratamento do grave endividamento patrimonial se distancia daquele destinado ao desequilíbrio do sinalagma de um certo e único contrato (uma locação, uma franquia ou uma prestação de serviço, por exemplo), para cuja problemática já é notável o debate promovido pela civilística, notadamente por meio desta coluna1, em torno das consequências daí originadas e de seus respectivos remédios.
Não é para estas situações que se destinam estas notas. A reflexão aqui se dirige, portanto, à patologia do endividamento patrimonial crítico, cuja universalidade envolve, como sabido, todas as relações jurídicas dotadas de valor econômico (art. 91, CC). Portanto, vai-se além da análise de uma única relação jurídica.
Para a desequilíbrio patrimonial da pessoa humana, o ordenamento jurídico prevê, a princípio, o impiedoso e desconhecido processo de insolvência, regulamentado pelos artigos 748 a 786-A do CPC/732. O expediente, positivado a partir de estudo teórico3, desconsiderou, contudo, que por trás dele haveria uma pessoa humana e viva. Note que a ideia é excutir a integralidade do patrimônio do devedor, a quem, ouvidos os credores, até pode ser destinada uma pensão por decisão judicial (art. 785, CPC/73).
O anacronismo do procedimento é ainda demonstrado pela retirada da autonomia negocial do insolvente4 (senão um morto civil, o insolvente é considerado um incapaz – art. 752, CPC/73) e por um desajustado concurso de credores, que, disciplinado pelo Código Civil de 2002 nos artigos 957, sequer previu uma atenção especial, por exemplo, a alimentos. Um apontamento positivo, contudo, merece ser destacado. Após penar por um procedimento torturante, o ordenamento prevê, ao menos, a extinção das obrigações não pagas pela alienação dos bens do devedor (art. 780, CPC/73), cuja excepcional forma de extinguir o vínculo passa geralmente despercebida pelos manuais de direito das obrigações.
De toda forma, a bancarrota do próprio processo de insolvência é patente: são pouquíssimas pessoas que a ele se submetem – pois dele todos fogem – e, dado o seu caráter deliberadamente sancionatório, seu manejo acaba por ter como objetivo uma vendeta do credor, nas raras vezes em que o procedimento é encontrado.
Por outro lado, diversamente de patrimônios destinados à atividade empresária, bem como a experiência estrangeira5, não há um processo coletivo expressamente previsto pela lei para renegociação de débitos da pessoa humana. Quando muito, resta-lhe a utilização de expedientes processuais para revisar, por vezes sem fundamento, determinadas dívidas e, desta forma, valer-se da morosidade do Poder Judiciário para “girar” o passivo (parcelar o pagamento ou prorrogá-lo até o momento em que haja ativos disponíveis para tanto).
Esta omissão legal expressa estimulou a doutrina consumerista a buscar uma saída de emergência para o tratamento do que chamaram de consumidor superendividado. A proposta encontra-se em tramitação no Congresso Nacional6, mas, no entanto, as medidas projetadas mostram-se acanhadas, pois cuidam de tratar apenas endividamento decorrente de relação de consumo.
É pouco. Basta pensar que duas relevantes preocupações da doutrina e do legislador em um período de pandemia simplesmente são ignoradas por esta solução parcial: os alimentos e a locação. O patrimônio é único, garantidor geral dos créditos (art. 391, CC), e não se pode, portanto, buscar tratamento parcial para salva-los de débito que simplesmente não possuem posição preferencial no ordenamento brasileiro.
Em contrapartida, é alvissareiro o PL 1397/20, produzido em caráter emergencial para lidar com questões de recuperação judicial e falência no âmbito da crise sanitário-econômica. Em seu texto, pela primeira vez, prevê-se a aplicação de regras próprias de tratamento coletivo de débitos para pessoa natural que desempenhe “atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade”7. Ora, pessoa natural que exerça atividade econômica em nome próprio é qualquer pessoa que participe do processo econômico de uma sociedade, com seu patrimônio. São todas as pessoas naturais, portanto.
No contexto do referido PL, também é bem-vindo o instituto da Negociação Preventiva. Por meio dele, faculta-se ao devedor, que tenha sofrido redução de 30% ou mais na sua receita (art. 5°, §2°), requerer a instauração de um procedimento de jurisdição voluntária (art. 5°, caput). Em suma síntese, este se desenvolve a partir de rodadas de negociação com todos seus credores, durante o período máximo de sessenta dias (art. 5°, incisos II, III e IV), as quais podem contar com o auxílio de um negociador, ou não, a depender da escolha do requerente (art. 5°, inciso II).
Contudo, até o Projeto de Lei (ou texto semelhante) ser aprovado, há que ser estimulado, por inúmeras razões (entre outras, boa-fé objetiva e limites da responsabilidade patrimonial), a renegociação extrajudicial e coletiva dos débitos que oneram o patrimônio do devedor, de sorte a lhe proporcionar reabilitação patrimonial. Tal renegociação deve ter como balizas o próprio patrimônio do devedor e as preferências de pagamento de cada débito.
Mas se nem extrajudicialmente for possível alcançar a desejada recuperação, de uma leitura atenta do ordenamento jurídico, desprovida de timidez interpretativa (que se impõe superar em um período de exceção), é possível extrair instrumentos para o tratamento judicial do patrimônio da pessoa humana criticamente endividado. Com efeito, se o ordenamento brasileiro tem no valor da pessoa o seu fundamento (art. 1º, III, Constituição da República), uma leitura axiológica do artigo 52 do Código Civil (“Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”) permite aferir que é lícito e recomendável aplicar às pessoas humanas, no que couber, as proteções patrimoniais da pessoa jurídica.
Assim, como inclusive já indicado por precedente do Superior Tribunal de Justiça8, há que se superar, enquanto inexistir previsão legal específica, o suposto abismo entre a reabilitação do patrimônio da pessoa humana e a recuperação do acervo destinado à atividade empresária, já disciplinada pela Lei 11.101/05. Considerando que o sistema recuperacional da referida lei está fundado no princípio da preservação da empresa, com maior razão o ordenamento deve emprestar ferramentas à preservação da pessoa humana, cujo excessivo endividamento lhe furta condições materiais para a manutenção mínima de um projeto de vida.
Neste sentido e em linhas gerais9, levando-se em conta que o patrimônio garantidor de débitos é o limite de excussão dos credores, é imperioso viabilizar ao devedor o pleito de recuperação de seu acervo endividado, por meio de procedimento simplificado, aplicando-se, no que couber, lei 11.101.05), bem como, em situações mais críticas e com as devidas adequações, até mesmo o amplo procedimento da recuperação judicial com a possibilidade, inclusive, de aplicação do chamado cram down (espécie de imposição judicial do plano – art. 58, §1°, lei 11.101/05).
Nestes termos, é notável a importância das ferramentas oferecidas pela Lei de Recuperação Judicial e Falência no tratamento da insolvência da pessoa humana, sobretudo no atual cenário de crise sanitário-econômica. Não só os institutos da referida legislação, mas as orientações jurisprudenciais firmadas, ao menos em suas linhas gerais, são de utilização recomendável, no tratamento deste patrimônio em crise.
Um ponto, contudo, parece ser certo. Em um ordenamento fundado no valor da pessoa humana, cujo protagonismo na atividade econômica deve ser reconhecido – não há economia sem pessoas e vice-versa, o princípio da solidariedade se impõe e a renegociação coletiva, abalizada nos conhecidos critérios concursais é medida que afasta interesses egoístas de credores sobre um patrimônio gravemente endividado.
“Farinha é pouca, meu pirão primeiro”, neste cenário, não pode ter vez.
*Daniel Bucar é professor Direito Civil do IBMEC/RJ. Doutor e mestre em Direito Civil (UERJ). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Procurador do município do Rio de Janeiro. Advogado.
1 Entre os quais se destacam a aplicação i) dos feitos da força maior, ii) da revisão, iii) da resolução e iv) do dever de renegociar. Vide Anderson Schreiber, Devagar com o andor: coronavírus e contratos – Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional; Eduardo Souza Nunes e Rodrigo da Guia Silva, Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus; Carlos Eduardo Pianovsky, A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus; Flávio Tartuce, O coronavírus e os contratos – Extinção, revisão e conservação – Boa-fé, bom senso e solidariedade; Aline Miranda Valverde Terra, Covid-19 e os contratos de locação em shopping center; SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos da covid-19″. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio; SCHULMAN, Gabriel. Covid-19: Os contratos, a incerteza os desafios para a manutenção das empresas e a exceção da ruína; RESEDÁ, Salomão. Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil para se ejetar do contrato em razão da covid-19, mas a pergunta que se faz é: todos possuem esse direito?; PIANOVSKY, Carlos Eduardo. A crise do covid-19 entre boa-fé, abuso do direito e comportamentos oportunistas; RAMOS, André Luiz Arnt; CATALAN, Marcos. Os desafios da negociação: notas sobre habilidades necessárias à prática contratual (não apenas) em tempos de crise.
2 Única parte ainda em vigor do antigo Código de Processo Civil, conforme artigo 1052 do Diploma vigente.
3 A disciplina codificada reflete, em boa parte, a tese “Do concurso de credores no processo de execução”, apresentada por Alfredo Buzaid, um dos principais elaboradores do CPC/73, para o concurso da Cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da PUC/SP.
4 Portanto, a própria renegociação.
5 Para notícia do fresh start norte americano e o padrão europeu, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 127/166.
6 O projeto de atualização do Código de Defesa do Consumidor, que cuida do superendividamento, já foi aprovado pelo Senado Federal e atualmente tramita perante a Câmara dos Deputados (PL 3515/215).
7 Art. 1º do PL 1397/20.
8 “A Lei de Falências há de ser aplicada analogicamente à execução de quantia certa contra devedor insolvente nos casos em que a lei processual civil se apresenta omissa, como sói ocorrer quanto à multa moratória e aos juros, porquanto ubi eadem ratio ubi eadem dispositivo” (STJ, 1. T., REsp 1108831/PR, rel. Min. Luiz Fux, j. 23-11-2010, DJe 3-12-2010).
9 Para uma exposição mais detalhada, que não é viável neste espaço, consinta-se remeter a BUCAR, Daniel. Superendividamento: reabilitação patrimonial da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 180-200.