Tutela externa do crédito e o aliciamento de atleta profissional por entidade desportiva diversa da contratante: Diálogo do Código Civil com a Lei Pelé

  1. Terceiro cúmplice na relação contratual e a exceção ao princípio da relatividade dos efeitos contratuais

Um dos princípios1 individuais dos contratos é o da relatividade dos efeitos contratuais2 (res inter alios3), ou seja, o contrato produz efeitos entre as partes. O terceiro é aquele “que não participa do negócio jurídico, para quem a relação é absolutamente alheia”.4 Noutros termos, a “posição jurídica do terceiro assenta-se em um alheamento material e formal a determinada e particular relação jurídica”.5 Desse modo, em regra, o contrato firmado entre dois contratantes não afeta aquela pessoa que não contratou.

Existem hipóteses nas quais há uma maior proximidade de um não contratante daquele contrato no qual não faz parte, como exemplifica Otávio Luiz Rodrigues Júnior:

“O sucessor, o credor quirografário, o accipiens hipotecário diante do devedor que aliena a coisa dada em garantia, o terceiro a favor de quem se constituiu estipulação, o locador em face do locatário que subloca o imóvel, o fiador superveniente, o cedido na cessão de crédito, o devedor ante o terceiro sub-rogado e, por derradeiro, o gestor de negócios são exemplos de pessoas que normalmente figurariam como terceiros, muitos até recebem essa denominação, entretanto ostentam um tal nexo com a relação jurídica específica que mais se assemelham a satélites em derredor aos planetas: não se encontram na atmosfera destes, mas gravitam com tal proximidade a sua órbita, que não podem deixar de influir ou de ser influenciados por aquela.6”

Além disso, existem hipóteses legais em que o terceiro é atingido diretamente pelo contrato que não é parte:

(i) a responsabilidade dos(as) herdeiros(as) do(a)contratante (Código Civil – CC, art. 1.792); (ii) a promessa de fato de terceiro (CC, arts. 439-440), como na promessa do produtor de um show para que um terceiro (cantor) realize o show, o contrato de transmissão de jogos de futebol,7 entre outros; (iii) a estipulação em favor de terceiros (CC, arts. 436-438), por exemplo, o contrato de seguro de vida, no qual o terceiro consta como beneficiário e o contrato é firmado entre a seguradora e o segurado;8 (iv) contrato com pessoa a declarar (CC, .arts. 467-471), como o contrato preliminar;9 (v) a ideia de consumidor por equiparação ou bystander posta nos arts. 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo, como se vê no Enunciado 47910 da Súmula do STJ; (vi) a função social do contrato (CC, arts. 421 e 421-A), como aponta o Enunciado 21 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF): “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”.11 A função social do contrato como fundamento da tutela externa do crédito é controversa na literatura jurídica brasileira,12 como se exporá em outro tópico deste artigo; (vii) com a boa-fé objetiva;13 (viii) da responsabilidade por ato ilícito ou abusivo (STJ – RESP 2.023.942/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25.10.2022, DJe 28.10.2022); (ix) publicidade de registros notariais, documentais ou de títulos;14 (x) fraude contra credores e demanda revocatória falimentar.

O contrato pode ter efeito sobre terceiros, mesmo que não haja a intenção de prejudicar terceiros, como aponta Otavio Luiz Rodrigues Júnior:

Muita vez, os efeitos reflexos ocorrem sem que os contraentes os desejem ou os tenham previsto, porém suas conseqüências sobre o terceiro apresentam-se de modo inevitável, revelando que sua relatividade será mais ampla que o próprio desejo dos declarantes. 57

Posteriormente, com o desenvolvimento das relações contratuais de massa e do direito do consumidor, passou-se a admitir a figura do contrato em prejuízo de terceiro, assim entendido o que produz prejuízo reflexo a terceiros, mesmo sem ser essa a intenção dos declarantes. 58 São exemplos dessa espécie a formação de cartéis entre fornecedores para impedir a redução de preços ou para controlar sua majoração, bem assim contratos destinados a repartir faixas de mercado, limitar a concorrência e prejudicar o interesse dos consumidores, que se colocam como terceiros em face de tais pactos. 59 Segundo Vincenzo Roppo (2001:565), a nulidade desses contratos em dano a terceiro não depende de uma violação do princípio res inter alios acta, mas da ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.15

Esclarece-se que o CDC, nos arts 3º, 7º, 12, 14 e 25, estabelece uma “solidariedade legal entre agentes econômicos diversos, cujos efeitos dimanam sobre a responsabilidade pelo produto ou serviço, em regra, de caráter objetivo (arts. 12, 14 e 25 do CDC”).16

Delimitado os pontos sobre a eficácia perante terceiros de contratos nos quais não são partes, passa-se ao tópico seguinte a abordar da tutela externa do crédito, a fim de aferir, no último tópico, se o art. 608 do CC e o art. 28 da lei 9.615/98 (Lei Pelé) são exemplos de tal instituto e se podem ser aplicados cumulativamente pela entidade desportiva contra o atleta profissional e contra a entidade desportiva que o auxiliou na quebra do contrato antes do tempo combinado.

Há , também, a hipótese de tutela externa do crédito prevista no art. de 209 da lei 9.279/96 (concorrência desleal em negócios jurídicos de comércio alusivos à propriedade industrial),17 que não será objeto de análise neste artigo.

Clique aqui e confira a íntegra da coluna.


1 Entende-se que os princípios são deontológicos, parâmetros interpretativos que fundam as normas jurídicas (resultado da interpretação do texto no contexto de aplicação) e operam no código jurídico/antijurídico, pois significam a incorporação jurídica do mundo prático ao Direito, sendo instituidor da regra jurídica. “Uma regra só pode ser aplicada a partir de um ou mais princípios, e um princípio sempre será aplicado por meio de uma regra (…) Se a regra não fosse porosa, bastaria sempre a subsunção. Por isso, sempre será necessária a presença de um ou mais princípios para a sua interpretação. Mesmo nas situações (ou nas que são consideradas) mais claras, pelas quais uma regra pode abarcar determinada situação fática, ainda assim haverá a interferência de um princípio. Nesses termos, princípios (constitucionais) devem ser compreendidos a partir do que chamo de “tese de descontinuidade”: eles instituem o mundo prático no Direito, possibilitando, a partir de sua normatividade, o fechamento interpretativo no Direito. “. STRECK, Lenio. Diferença entre regras e princípios. In: STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020, p. 67-70, p. 69-70.

2 Lôbo, Paulo Luiz Neto. Direito Civil: Contratos. 10. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 82.

3 Tartuce, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 129.

4 Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil – Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2002, p. 485.

5 Rodrigues Junior, Otavio Luiz. Revista dos Tribunais | vol. 821/2004 | p. 80 – 98 | Mar / 2004, edição eletrônica.

6 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004.

7 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu: “Contratos. Televisão. Jogos. A confederação que engloba os times de certa atividade desportiva firmou contrato com a empresa de televisão a cabo, pelo qual lhe cedia, com exclusividade, os direitos de transmissão ao vivo dos jogos em todo o território nacional, referentes a determinada temporada. Sucede que 16 times, em conjunto com a associação que formaram, e outra empresa de televisão também firmaram contratos com o mesmo objetivo. Daí a interposição dos recursos especiais. Pela análise do contexto, conclui-se que, apesar de figurar no primeiro contrato como cedente e detentora dos direitos em questão, a confederação firmou, em verdade, promessa de fato de terceiro: a prestação de fato a ser cumprido por outra pessoa (no caso, os times), cabendo ao devedor (confederação) obter a anuência dela quanto a isso, tratando-se, pois, de uma obrigação de resultado. Pela lei vigente à época (art. 24 da Lei n. 8.672/1993), somente os times detinham o direito de autorizar a transmissão de seus jogos. Assim, visto que a confederação não detém o direito de transmissão, cumpriria a ela obter a anuência dos times ao contrato que firmou, obrigação que constava de cláusula contratual expressa. O esvaziamento desse intento, tal como atesta notificação posta nos autos realizada pela própria confederação, de que não conseguiu a anuência dos clubes, enseja a resolução (extinção) desse contrato e sua responsabilização por perdas e danos (art. 929 do CC/1916, hoje art. 439 do CC/2002). Contudo, não se fala em nulidade ou ineficácia, pois, houve, sim, a inexecução (inadimplemento) de contrato válido, tal como concluiu o tribunal a quo. Tampouco há falar em responsabilidade solidária dos times porque, em relação ao contrato firmado pela confederação, são terceiros estranhos à relação jurídica, pois só se vinculariam a ele se cumprida a aludida obrigação que incumbia ao promitente, o que, como dito, não se realizou. Já a associação, mesmo que tenha anuído a esse contrato, não pode ser responsabilizada juntamente com a confederação: não há previsão contratual nesse sentido e pesa o fato de que a obrigação de obter a aceitação incumbia apenas à confederação, quanto mais se a execução dependia unicamente dos times, que têm personalidades jurídicas distintas da associação que participam e são os verdadeiros titulares do direito. Com esse e outros fundamentos, a Turma negou provimento aos especiais” (STJ, REsp 249.008/RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJRS), j. 24.08.2010).

8 Tartuce, Flávio, 2024, p. 129.

9 Tartuce, Flávio, 2024, p. 131.

10 Enunciado 479 da Súmula do STJ: “as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”.

11 Tartuce, Flávio, 2024, p. 132.

12 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; BÜRGER, Marcelo L. F. de Macedo. A tutela externa da obrigação e sua (des)vinculação à função social do contrato. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui. Acesso em 11abr2024.

13 Tartuce, Flávio, 2024, p. 519-520; Greco Bandeira, Paula. Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 30, ano 8, abr./jun., 2007, p. 79-128.

14 Otávio aponta: “Trata-se de questão inerente à eficácia e não à validade do ato. 33 São exemplos: a) a carta de fretamento, desde que escriturada por corretor de navios ou tabelião, com duas testemunhas, terá eficácia de instrumento público, caso contrário “obrigará as próprias partes, mas não dará direito contra terceiro” (art. 569 da Lei Imperial 556, de 25.06.1850, do Código Comercial brasileiro); b) o contrato de câmbio marítimo deverá ter forma de instrumento público ou, se particular, entre outras formalidades, reconhecido e visado por “cônsul do Império”, sob pena de ficar “este subsistindo entre as próprias partes, mas não estabelecerá direitos contra terceiro” (art. 633 do CCo (LGL\1850\1) brasileiro 34); c) “o instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público” (art. 221 do CC/2002 (LGL\2002\400)35); d) é ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não se celebrar mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades legais (art. 288 do CC/2002 (LGL\2002\400)36); e) “o contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial” (art. 1.144 do CC/2002 (LGL\2002\400)37); f) “para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis” (art. 1.333, parágrafo único, do CC/2002 (LGL\2002\400)38); g) “as convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges” (art. 1.657 do CC/2002 (LGL\2002\400). 39); h) nos contratos de locação predial urbana, com cláusula de vigência em caso de alienação devidamente averbada junto à matrícula do imóvel, o adquirente – terceiro em relação ao locador e ao locatário – não poderá denunciar o vínculo locatício, devendo aguardar o termo final da avença primitiva (artigo 8.º da Lei 8.245 de 18.10.1991, com norma similar no art. 576 do CC/2002 (LGL\2002\400)40)”. Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004.

15 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004.

16 Rodrigues Junior, Otavio Luiz, 2004.

17 Lei 9.279/2006: “Art. 209. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio. § 1º Poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória. § 2º Nos casos de reprodução ou de imitação flagrante de marca registrada, o juiz poderá determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada”

Este artigo foi também publicado no site do Migalhas. Clique aqui para acessar.

Pablo Malheiros da Cunha Frota
Doutor em Direito pela UFPR. Professor de Direito Civil e de Processo Civil na graduação e, colaborador, no mestrado em Direito Agrário na UFG. Diretor do IBDCONT, IBDFAM-DF e BRASILCON. Advogado no DF.
Artigos criados 5

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo