Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19

Texto de autoria de Marco Aurélio Bezerra de Melo

É de conhecimento geral que a doença covid-19 (CID 10) causada pelo vírus coronavirus pode causar sintomas típicos de uma gripe como evoluir para um grave quadro de infecção respiratória com necessidade de utilização de respirador hospitalar e que pode levar ao óbito por falta do aparelho ou pela própria evolução da patologia.

Os números são assustadores e enquanto parte do planeta se preocupava com a proteção das fronteiras do país, o inimigo invisível a desrespeitou e está presente em todos os continentes do planeta, fato que levou a que a Organização Mundial de Saúde decretasse a existência de uma pandemia e compreendesse que a melhor maneira de lidar com esse problema é evitar a sua ocorrência por várias pessoas ao mesmo tempo a fim de que o sistema de saúde de cada país tenha condições de dar conta ao atendimento de seus pacientes.

Assim, a par da recomendação da utilização de máscaras e a tomada de cuidados importantes como o de lavar corretamente as mãos e se isto não for possível, usar álcool em gel, em razão da facilidade de contágio por qualquer grupo humano que se reúna e um dos elementos esteja infectado, o isolamento social é a medida recomendada e adotada por quase todas as nações do mundo e aquelas que de alguma forma não perceberam a severidade desse fato se arrependem e estão vivenciando momentos de muito sofrimento como temos tido notícia.

O isolamento social, conquanto necessário, apresenta-se como uma ruína súbita para a economia e os contratos que moldam as operações econômicas com vistas à segurança jurídica sofrem esse baque e podem eventualmente exigir uma releitura ou, em dizeres mais apropriados, uma leitura em consonância com as circunstâncias atuais imprevisíveis no momento da celebração do pacto que para cumprir seu papel fundamental na sociedade deve persistir no caminho sadio do equilíbrio presente na sua gênese.

Essa imprevisibilidade é de tal dimensão que no contrato de seguro de vida é comum constar cláusula na qual, à presença de uma pandemia, a seguradora não estará obrigada a indenizar o beneficiário que, por conseguinte, receberá apenas o capital segurado, mas essa questão, por si só, merece um tratamento mais acurado e é dita aqui apenas para trazer à baila o nível de imprevisibilidade da situação ora enfrentada.

Na imensa maioria dos casos, a saúde do acerto contratual depende da vida de relação da mesma forma que a disseminação do vírus. A aglomeração humana adoece a humanidade que a evita. Evitando-nos, maiores as chances de estarmos a salvo, tanto quanto tornarmos doentia diversas relações contratuais que se protraem no tempo.

Por exemplo, foi dito1 recentemente com inegável apuro técnico que na locação de shopping center a ausência da posse direta por parte do lojista, abala sobremaneira o dever de pagar aluguel, pois a causa do contrato fica suspensa em razão de uma causa superveniente e imprevisível. O artigo 576 do Código Civil fala em deterioração da coisa alugada.

No âmbito do modelo contratual acima, há quem defenda2 a possibilidade da utilização de mecanismos como a própria exceção de contrato não cumprido, resilição unilateral do contrato sem a necessidade de pagamento da multa penitencial prevista no artigo 4º da lei do Inquilinato ou a revisão contratual em suas variadas perspectivas em razão de a atividade empresarial inerente ao shopping center recair sobre os ombros do empreendedor pela clara alocação de risco que se percebe por diversas cláusulas contratuais válidas (art. 54, da lei 8245/91), mas que de certo são excêntricas se comparadas aos contratos de locação em geral como, por exemplo, a obrigatoriedade do pagamento de um aluguel mínimo e outro calculado sobre a lucratividade percebida pelo lojista locatário, o que, de fato, parece bem apropriado3 e se encontra prevista no inciso II do artigo 421-A (redação dada pela LLE), o qual prevê que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada”.

Enfim, a pandemia e as medidas sanitárias decorrentes deteriorou a vida de relação e, por conseguinte, a utilização da coisa pelo lojista durante o fechamento do shopping center para ficarmos apenas nesse exemplo, perdeu a função. Por ser uma situação temporária, não há que se falar em frustração do fim do contrato a ensejar a resolução contratual por tal fundamento, mas imperioso se mostra que as partes rediscutam a relação contratual, tocando como premissa o equilíbrio contratual.

A despeito de aderirmos ao pensamento do professor José Fernando Simão4 que seguindo seguras lições de Pontes de Miranda, aponta que o foco de atuação dos operadores do direito deve ser o estudo casuístico da base do negócio jurídico e não propriamente o caso fortuito posto, parece não haver dúvidas de que a situação atual surgida a partir do coronavírus pode possibilitar a modificação (arts. 317, 478, 479 e 480, CC) e até mesmo a extinção do contrato (art. 393, CC) por quaisquer das teorias ou linhas doutrinárias hermenêuticas mais restritivas ou ampliativas que se queira adotar, observada a vedação aos efeitos retroativos.

Trata-se de fato já referendado pelo Senado Federal que aprovou recentemente o PL 1179/20205 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid- 19), ora submetido à Câmara dos Deputados.

Para o adequado enfrentamento desse desafio, importa o respeito às diversas categorias jurídicas postas à disposição dos interessados e, nesse ângulo de visada, recomenda-se recente texto de Flávio Tartuce6, no qual o festejado doutrinador trata didática e pragmaticamente dessa questão.

No campo da efetividade da justiça comutativa contratual, a sociedade contemporânea conta com vários métodos adequados de solução de conflitos como a mediação, posta, por exemplo, como requisito prévio à análise da concessão da liminar possessória em uma ação possessória coletiva (art. 565, caput, CPC). Agrada-nos, sobremaneira, a definição de mediação contida no parágrafo único do artigo 1º da lei 13.140/15 que a considera como uma “atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”.

A Dra Fernanda Guerra, especialista no Brasil na confecção dos denominados contratos conscientes que seriam pactos baseados em valores morais que fortalecem os vínculos relacionais objeto da avença, sustenta em obra ainda no prelo que um conflito não deve ser uma ruptura, e sim uma espiral de evolução, se cuidado com humanidade e abertura. Ora, essa humanidade e abertura tão importante a qual se refere a indigitada advogada e que vai encontrar fundamento constitucional no princípio da solidariedade (art. 3º, I, CF), deve partir primeiramente dos próprios interessados e se não se chegar a bom termo que entre, obviamente, a atividade subsidiária do Estado-juiz.

Anderson Schreiber7, em tese que premiou o autor com a titularidade em direito civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cujas premissas e conclusões não cabem nesse modesto texto, demonstra com muita argúcia que o “dever de renegociar” exsurge da interpretação e aplicação do artigo 422 do Código Civil, o qual, como sabido, impõe, juridicamente falando, que a boa fé objetiva seja observada em todas as etapas do contrato, aqui, muito particularmente, na fase pós-contratual. Dessume-se ainda do trabalho a perspectiva de que a recusa da renegociação diante do desequilíbrio contratual que eventualmente venha a favorecer economicamente uma das partes, poderia render ensejo à possível pleito indenizatório em favor do prejudicado, posto que não renegociar, quando as circunstâncias concretas, assim determinarem, enseja uma espécie de ato ilícito.

Tal ilícito funcional pode ter uma função preventiva da futura responsabilidade civil e o Estado tem interesse em evitar a excessiva judicialização das ações de revisão contratual, assim como das eventuais ações de resolução e/ou indenizatórias.

Se for admitida a premissa de que a recusa indevida de renegociar o contrato diante de desequilíbrio contratual configura ato ilícito, é possível existir uma lei que determine tal comportamento antes da demanda judicial. Além dos requisitos processuais do artigo 330, §§ 2º e 3º, do CPC para as ações revisionais de obrigação, deveria ser demonstrada ao julgador a existência de uma prévia tentativa de renegociação e que esta restou frustrada, pois o réu a quem se imputa, no âmbito da teoria da asserção, a vantagem excessiva, se recusou a rediscutir o contrato que se protrai no tempo e foi alvejado pela pandemia.

Em breve interlocução acadêmica com o professor de direito civil da Universidade Federal do Espírito Santo, Dr. Rodrigo Mazzei, tivemos a ocasião de refletir na inovadora releitura feita pela atual codificação processual civil acerca da Produção Antecipada de Provas, tendo em vista que de modo franco e direto os incisos II e III do artigo 381 do CPC estabelecem que a referida medida judicial pode viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução do conflito e, ainda, que o prévio conhecimento dos fatos tem a potencialidade de justificar ou evitar o ajuizamento de ação.

Não se trata de malferir o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal que preconiza o princípio da inafastabilidade da jurisdição como poderia, a princípio, se entender, mas a proposta de uma regular determinação legal de requisito prévio ou uma condição de procedibilidade. O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em repercussão geral, no Recurso Extraordinário 631.240, Relator o Ministro Roberto Barroso, em 10/11/2014, que, em regra, o prévio requerimento ao INSS de algum benefício previdenciário, configurava requisito para a postulação judicial mesmo inexistindo lei federal que imponha tal condição. Obviamente, que no caso, há uma autarquia federal com essa função e, nesse passo, mais confortável ao Poder Judiciário se mostra a prova de que o requerimento prévio não foi suficiente para atender ao direito material do cidadão.

De acordo com as peculiaridades do caso concreto, é adequada a concepção indenizatória em desfavor daquele que não observa o dever de renegociar e recolhe abusivo proveito econômico diante da pandemia ou mesmo sufoca a contraparte sem restaurar o propósito contratual inaugural, mas não tem o condão de evitar perniciosa judicialização excessiva com os riscos inerentes, fato que pode inviabilizar ou tornar mais árdua e custosa uma saudável perspectiva sanatória do contrato adoecido de modo a preservá-lo e, com ele, como cediço, garantir a circulação de riquezas com a possibilidade de salvar empregos, recolhimento de tributos, entrega de produtos e serviços importantes ou mesmo essenciais para a sociedade, dentre outros, em desencontro com a função social do contrato (art. 421 e 421-A, CC) e, porque, não dizer, da solidariedade constitucional (art. 3º, I, CF).

Trata-se apenas de uma semente a ser plantada que poderá render frutos em atenção à boa fé objetiva e à função social dos contratos, assim como evitar inoportuna judicialização excessiva de ações de revisão e resolução contratual que pode colocar em risco o importante programa contratual.

No caso do dever de renegociação diante da pandemia, é possível que se mostre oportuno e conveniente nesses tempos de covid-19 a existência de uma lei federal de natureza excepcional e, portanto, temporária que imponha um dever colaborativo em nível de direito material (arts. 113, 187, e 422, CC) e processual civil (art. 5º, CPC), situação jurídica que importa ser debatida com fundamentos e propostas bem mais sólidas e eficazes do que estas franciscanas e iniciais reflexões.

*Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do TJ/RJ, professor titular de Direito Civil do IBMEC/RJ. Mestre e doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá.


1 TERRA. Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas de Peso. Acesso em: 14 de abril de 2020.

2 AZEVEDO, Fábio. Sem shopping, sem aluguel: covid-19 e alocação de risco. Acesso em 14 de abril de 2020.

3 Enunciado 443, da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ (2012) – O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida.

4 SIMÃO, José Fernando. O Contrato nos tempos da covid-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Acesso em 18 de abril de 2020.

5 Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário. §1° As regras sobre revisão contratual previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo. § 2° Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.

6 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos – Extinção, revisão e conservação – Boa fé, bom senso e solidariedade. Acesso em 17 de abril de 2020.

7 SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e o Dever de Renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018.

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