Texto de autoria de Marília Pedroso Xavier e William Soares Pugliese
É inequívoco que os tempos atuais parecem marcados pela tendência de polarização dos debates. No contexto pragmático jurídico, a polêmica atual gira em torno da manutenção da suspensão de prazos processuais ou de sua imediata retomada.
Ocorre que, com pandemia provocada pelo covid-19, instalou-se um período indeterminado de quarentena e de isolamento social. Com isso, a orientação passada pela Ordem dos Advogados do Brasil aos seus membros foi no sentido de aderir ao modelo de home office para mitigar riscos de propagação dessa enfermidade.
A postura da OAB não poderia ser diferente, já que, por um acaso do destino, acabou sendo de certa forma protagonista nos capítulos iniciais das cenas de tragédia produzidas pelo coronavírus. Nos dias 5 e 6 de março do corrente ano, durante a realização da III Conferência Nacional da Mulher Advogada, houve contágio e propagação do referido vírus entre participantes da conferência. O evento reuniu três mil pessoas e várias advogadas adoeceram após a sua realização. O fato foi amplamente divulgado por tradicionais veículos de comunicação1 e a instituição chegou até mesmo a emitir um comunicado para alertar os congressistas2.
Com o início do alastramento do vírus no país e as primeiras notícias de internamentos de pacientes em unidades de tratamento intensivo e, até mesmo, a confirmação de lamentáveis falecimentos, os tribunais brasileiros começaram a se pronunciar sobre a continuidade, regular ou não, de suas atividades. Como era de se esperar, diante de um cenário caótico de regras diferentes (e até mesmo divergentes) para cada órgão disciplinando o mesmo tema, coube ao Conselho Nacional de Justiça uniformizar o regramento em termos nacionais.
Sendo assim, em 19 de março de 2020, o CNJ editou a resolução nº 313, a qual estabelece o regime de Plantão Extraordinário no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Com essa normativa, ocorreu a desejada uniformização do funcionamento dos serviços judiciários, bem como a garantia de acesso à justiça durante o período emergencial3. A resolução ainda esclarece que tem como objetivo prevenir o contágio pelo COVID-19 e que o Plantão Extraordinário funcionará no mesmo horário do expediente forense regular, suspendendo o trabalho presencial dos servidores e assegurando a manutenção dos serviços tidos como essenciais. Há, no artigo 4º, a indicação expressa de quais matérias devem ser apreciadas durante o período. No artigo 5º, temos a previsão de que “Ficam suspensos os prazos processuais a contar da publicação desta Resolução, até o dia 30 de abril de 2020”. No dia 13 de abril, o CNJ editou nova portaria, de n. 77/2020, prorrogando indeterminadamente o regime de teletrabalho para os servidores e colaboradores da justiça.
A advocacia defendeu, em um primeiro momento, a suspensão dos prazos. Afinal, a migração para o home office exigiria adequações por parte dos profissionais, inclusive para se adaptar a uma rotina diferente. Os longos meses de março e abril, porém, mostraram outra consequência dos prazos suspensos: sem prazos sendo cumpridos, os processos deixaram de ter movimentação e as decisões, especialmente as definitivas, como sentenças e acórdãos, não podem ser proferidas. Com isso, a advocacia que antes defendeu a suspensão dos prazos agora questiona quando serão retomadas as atividades como “eram antes”. Aqui, tem-se talvez uma visão ingênua, pois como tem sido dito e repetido, nada será como antes.
A resolução nº 313 parece ter inaugurado a polêmica indicada nas primeiras linhas desse texto. Assim, pode-se dizer que a suma divisio jurídica contemporânea coloca em tensão a retomada integral das atividades forenses e a manutenção da suspensão dos prazos. Prova disso é a pesquisa realizada pela OAB Nacional entre os dias 03 e 04 de abril sobre o tema. O resultado final para a pergunta “Você é a favor do retorno dos prazos processuais nos processos eletrônicos?” foi de 52,04% a favor4.
O tema ganha contornos ainda mais sensíveis pelo fato de que existem argumentos extremamente persuasivos para os dois lados. Há quem diga que a pesquisa acima citada já tinha perguntas prontas e que poderiam ser tendenciosas, que o número de respostas (55.084) estaria muito longe de contemplar contingente significativo de advogados inscritos, que o momento seria vocacionado para a proteção das minorias e não das maiorias. Há também quem lance luz para a realidade de colegas que dependem das salas e serviços da OAB (inoperantes no momento) e para colegas que estão extremamente sobrecarregados com as atividades domésticas e escolares dos filhos5. Por outro lado, emerge com cada vez mais força o clamor para um olhar atento aos colegas que recebem seus honorários por cumprimento de atos processuais e que tendem a experimentar situação de extrema penúria caso os prazos não voltem a fluir. Aqui, sem dúvidas, temos um hard case.
Nesse contexto, a doutrina é chamada para desempenhar seu importante papel criativo em busca de soluções adequadas e equilibradas para os dilemas experimentados pela sociedade. É disso que o presente texto pretende se ocupar.
O primeiro ponto a ser enfrentado é conceitual e de grande repercussão prática: são os prazos processuais que estão suspensos ou os processos judiciais? A resposta é clara: apenas os prazos processuais. É perfeitamente possível aforar novas demandas que serão integralmente examinadas e decididas quando integrarem o rol do artigo 4º da Resolução nº 313/20. Da mesma forma, os procuradores estão livres para peticionarem e cumprirem prazos caso possam e assim desejem. Ainda, e talvez o mais importante, é perfeitamente possível e lícito que sejam praticados quaisquer atos processuais, seja pelas partes, seja pelos magistrados. Não se aplica, portanto, o art. 314, do Código de Processo Civil, que impede a prática de qualquer ato processual na suspensão do processo. O que se encontra suspenso, em última ratio, é o curso dos prazos preclusivos para as partes.
Isto permite prosseguir para o segundo ponto, o qual tem relação, justamente, com a razão de ser da existência de prazos no direito processual. Os prazos têm, como objetivo, delimitar o tempo dentro do qual determinado ato processual deve ser praticado. O direito processual adota os prazos para permitir que o processo realize sua função essencial, que é alcançar um determinado fim, com ordem e segurança. Ao se utilizar a suspensão dos prazos para interromper o curso de um processo restringe-se o próprio exercício da função jurisdicional. Por outro lado, a opção por não cumprir os prazos é apenas das partes.
A questão que se pretende destacar, portanto, é a voluntariedade das partes em cumprir os prazos e decidir sobre o andamento de seus processos. Ou seja, se partes e advogados tiverem interesse em movimentar seus processos e não identificarem qualquer impedimento gerado pelo período de quarentena, é perfeitamente possível que se convencione a respeito da retomada do curso normal dos prazos. E, sobre este ponto, ganha destaque um instituto específico do Código de Processo Civil. Trata-se do negócio jurídico processual.
O art. 190 do CPC/15 prevê que quando a demanda versar sobre direitos que admitam autocomposição, “é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”. Caberá ao magistrado, de ofício ou a requerimento, a importante missão de controlar a validade das convenções entabuladas pelas partes.
Uma das espécies de negócio jurídico processual que está plenamente em consonância com as demandas do momento atual é o chamado calendário processual. Disciplinado pelo artigo 191, do CPC/15, dispõe que, de comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais sur mesure.
Assim, o calendário processual parece oferecer vantagens significativas, quais sejam: i) previsibilidade, ii) segurança jurídica, iii) mitigação de alegações de nulidade; iv) possibilidade das partes e advogados convencionarem sobre o andamento processual para alcançar o resultado pretendido em tempo razoável.
Para além disso, é uma solução equilibrada porque permite, em tese, contemplar interesses de início contrapostos. Explica-se: por meio da ideia de cooperação, as partes podem estabelecer prazos que sejam factíveis de serem cumpridos. Assim, caso um dos procuradores ventile sua extrema dificuldade em ter produtividade diante dos desafios pessoais e familiares vividos neste período, poderá fixar seus prazos em dobro (ou qualquer outro período que entenda razoável).
Evidentemente, caberá ao magistrado avaliar as condições de execução do calendário. Há atos que dependem da presença física das partes, tais como perícias e audiências, os quais podem ser inviabilizados diante das circunstâncias contemporâneas e que não admitem composição. No entanto, cabe considerar que algumas soluções que empregam a tecnologia em favor dos processos têm sido desenvolvidas, como audiências de conciliação e mediação virtuais.
É improvável que diante de um tempo que desafia a sociedade de forma sem precedentes um comando normativo seja capaz de agradar gregos e troianos. É preciso admitir, sem tabus, que qualquer opção do legislador acabará por desagradar parcela significativa da advocacia. O consenso talvez esteja muito mais propenso a ser alcançado dentro do lócus privilegiado de uma determinada relação jurídica processual. E isso pode e deve ser operado por meio do calendário processual.
Cabe o alerta para que os advogados estabeleçam regra de transição para o momento em que a quarentena e a suspensão de prazos acabar, o que também depende da colaboração entre as partes.
Em última análise, o calendário processual é uma saída perspicaz, factível e lícita para contornar o verdadeiro maniqueísmo instaurado no tocante aos rumos da marcha processual no país. Parece notadamente vantajoso trocar o cenário incerto acerca dos prazos por uma convenção previsível, idônea e de plena concordância de todos.
*Marília Pedroso Xavier é professora da graduação e da po’s-graduac¸a~o strictu sensu da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP. Mestre e graduada em Direito pela UFPR. Coordenadora de Direito Privado da Escola Superior de Advocacia do Paraná. Membro da Diretoria Paranaense do Instituto Brasileiro de Direito de Família e da Diretoria Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT. Advogada. Mediadora.
**William Soares Pugliese é pós-doutor em Direito pela UFRGS. Mestre e doutor em Direito pela UFPR. Professor do Programa de pós-graduação do Centro Universitário Autônomo do Brasil – mestrado e doutorado (Unibrasil). Coordenador da Especialização de Direito Processual Civil da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal (IIBDP). Advogado.
1 PRADA, Pedro. Novo coronavírus pega advogada. O Estado de São Paulo. Acesso em 16 de abr. de 2020.
2 MIGALHAS. OAB emite comunicado após participante de evento testar positivo para coronavírus. Informativo Migalhas. Acesso em 16 abr. 2020.
3 Disponível aqui. Acesso em 16 de abr. de 2020.
4 OAB. Pesquisa sobre suspensão dos prazos em processos eletrônicos. Acesso em 16 abr. 2020.
5 FACHIN, Melina. Mulheres em tempo de pandemia: 5 razões que nos demandam incorporar viés de gênero na preparação e avaliação das intervenções. Jota. Acesso em 16 abr. 2020.