Esta é a última coluna do Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), deste 2020, o ano da pandemia de Covid-19. Se até março seguíamos o nosso curso “normal”, com temas que até então eram de relevo, a sua chegada ao Brasil trouxe grandes impactos para o Direito Privado Nacional, o que, por óbvio, repercutiu diretamente sobre os contratos. A partir desse mês, quando tivemos o início do estado de emergência, esta coluna passou a ser diária e depois semanal, tendo sido publicados 62 artigos.
Isso mesmo, 62 artigos, sobre temas variados, de autoria de Everilda Brandão, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Salomão Resedá, Rodolfo Pamplona Filho, João Hora Neto, Rafael Mansur, Gustavo Henrique Baptista Andrade, Marcos Ehrhardt Júnior, Pablo Malheiros da Cunha Frota, Raif Daher Hardman de Figueiredo, Arnaldo Rizzardo Filho, Jeniffer Gomes da Silva, Marcos de Souza Paula, Gabriela Buarque Pereira Silva, Anderson Schreiber, Bruno Casagrande e Silva, José Augusto Fontoura Costa, Marco Aurélio Fernandes Garcia, Felipe Quintella, Hercules Alexandre da Costa Benício, Angélica Carlini, João Pedro Leite Barros, Marcelo Matos Amaro da Silveira, João Pedro Kostin Felipe de Natividade, André Luiz Arnt Ramos, Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira, Úrsula Goulart, Cesar Calo Peghini, Renato Mello Leal, Ronnie Preuss Duarte, Jânio Urbano Marinho Júnior, Ricardo Alves de Lima, José Fernando Simão, Maurício Bunazar, Cristiano Sobral Pinto, Oksandro Gonçalves, Daniel Bucar, Luciana Pedroso Xavier, Adroaldo Agner Rosa Neto, Carla de Calvo Dantas, Ana Luiza Maia Nevares, Paulo Nalin, Fernando Carvalho Dantas, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Bruna Duarte Leite, Marcos Catalan, Rodrigo da Guia Silva, Marília Pedroso Xavier, William Soares Pugliese, Carlos Eduardo Pianovski, Bianca Kremer, Gustavo Tepedino, Carla Moutinho, Gabriel Schulman, João Pedro Biazi, Rodrigo Mazzei, Bernardo Azevedo, Aline de Miranda Valverde Terra, Vynicius Pereira Guimarães, Eduardo Nunes de Souza, Roger Vidal Ramos, Fernando Rodrigues Martins e Pablo Renteria.
Entre os assuntos tratados, destacaram-se aqueles relativos a temas como prescrição, princípios contratuais, caso fortuito e força maior, enriquecimento sem causa, revisão, extinção, adimplemento substancial, endividamento, racionalidade econômica, contratos digitais, negócios imobiliários, locação, franquia, seguro, transporte, contratos e sucessão, entre outros. Além dessa farta produção doutrinária – não vista em tempos recentes, e que também se verificou em outros ambientes, virtuais ou não -, em 2020 foram editadas leis emergenciais para tentar resolver os problemas decorrentes da pandemia. Farei o destaque de três delas.
A primeira é a Lei n. 14.046/2020, originária da Medida Provisória n. 948, dispondo sobre o adiamento e o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e de cultura em razão da pandemia de Covid-19. A norma tem claro intuito protetivo das empresas, para “salvar” esses setores, em detrimento dos direitos e interesses dos consumidores. Entre as suas regras que devem ser destacadas, o art. 2º estabelece que, na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão da pandemia, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem: a) a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou b) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.
Ainda conforme o § 1º deste comando, tais operações se darão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, em qualquer data e a partir de 1º de janeiro de 2020, e estender-se-ão pelo prazo de cento e vinte dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos serviços, ou trinta dias antes da realização do evento, o que ocorrer antes. Se o consumidor não fizer essa solicitação no prazo assinalado de cento e vinte dias, por motivo de falecimento, de internação ou de força maior, o prazo será restituído em proveito da parte, do herdeiro ou do sucessor, a contar da data de ocorrência do fato impeditivo da solicitação (§ 2º). Esse crédito poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, devendo-se respeitar os valores e as condições dos serviços originalmente contratados e o prazo de dezoito meses, contado da data do encerramento desse estado de calamidade pública (§§ 4º e 5º). O prazo para restituição pelo prestador de serviço é de doze meses, novamente a partir do encerramento desse estado de calamidade, e somente ocorrerá se os prestadores de serviços ficarem impossibilitados de exercer as alternativas antes referidas (§ 6º do art. 2º da lei 14.046/2020).
Seguindo, o art. 5º da lei 14.046/2020 prevê que eventuais cancelamentos ou adiamentos dos contratos de natureza consumerista regidos pela norma caracterizam hipótese de caso fortuito ou de força maior, “e não são cabíveis reparação por danos morais, aplicação de multas ou imposição das penalidades previstas no art. 56 da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, ressalvadas as situações previstas no § 7º do art. 2º e no § 1º do art. 4º desta Lei, desde que caracterizada má-fé do prestador de serviço ou da sociedade empresária”. Lamenta-se o teor do preceito, generalizando os adiamentos como eventos imprevisíveis e inevitáveis, e decretando-se uma indesejada moratória ampla e irrestrita, mais uma vez em detrimento dos interesses dos consumidores.
O segundo diploma legal a ser mencionado é a lei 14.034/2020, que consagrou regras emergenciais para a aviação civil brasileira, em razão da pandemia da Covid-19, também com vistas a proteger as empresas desse setor. Todavia, ao contrário da lei 14.010/2020 – que será a última a ser abordada -, esse diploma legal trouxe regras definitivas, muito além do reembolso do valor das passagens que foram canceladas em virtude da pandemia, no longo prazo de doze meses, contados da data do voo cancelado (art. 3º). Entre essas regras permanentes foi incluído um art. 251-A no Código Brasileiro de Aeronáutica, exigindo a prova efetiva do dano moral – chamado na lei de “dano extrapatrimonial”, com falta de propriedade técnica, uma vez que a Constituição Federal, o Código Civil, o CDC e o CPC falam em “dano moral” -, em virtude de falha na execução do contrato de transporte, o que inclui o atraso de voo e o extravio de bagagem. Trata-se de um claro retrocesso na tutela dos consumidores, diante de julgados que vinham concluindo pela presença de danos presumidos ou in re ipsa em casos tais.
Como outro aspecto relevante, essa mesma lei também trouxe novas e específicas excludentes de responsabilidade civil contratual para o transporte aéreo. Conforme o novo § 3º do art. 256 do Código Brasileiro de Aeronáutica, incluído pela lei 14.034/2020, constitui caso fortuito ou força maior, para fins de análise do atraso do voo, a ocorrência de um ou mais dos seguintes eventos, desde que supervenientes, imprevisíveis e inevitáveis: a) restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas impostas por órgão do sistema de controle do espaço aéreo; b) restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária, podendo aqui ser enquadrado, por exemplo, o “apagão aéreo” que nos acometeu no passado; c) restrições ao voo, ao pouso ou à decolagem decorrentes de determinações da autoridade de aviação civil ou de qualquer outra autoridade ou órgão da Administração Pública, que será responsabilizada, podendo aqui também se enquadrar esse eventos; e d) a decretação de pandemia ou publicação de atos de Governo que dela decorram, com vistas a impedir ou a restringir o transporte aéreo ou as atividades aeroportuárias, hipótese essa, sim, que tem relação com a crise decorrente da Covid-19. Observa-se que foram incluídas na lei excludentes que antes não eram admitidas, pois ingressavam no risco do empreendimento ou risco do negócio das empresas de transporte aéreo, o que representa outro retrocesso na tutela e proteção dos passageiros-consumidores.
Como terceira lei, foi muito comentada e debatida, especialmente nas nossas colunas deste último ano, a lei 14.010/2020, que criou o Regime Jurídico Emergencial Transitório de Direito Privado (RJET). O novo diploma teve origem no Projeto de lei 1.179/2020, por iniciativa dos Ministros Dias Toffoli (STF) e Antonio Carlos Ferreira (STJ), tendo sido proposto pelo Senador Antonio Anastasia. O seu conteúdo foi elaborado sob a liderança do Professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., contando com a minha honrosa participação e o meu total apoio. A atuação do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT) foi também destacada no parecer da Senadora Simone Tebet, relatora do projeto.
A sua inspiração, segundo o Professor Otávio Luiz Rodrigues Jr., foi a Lei Failliot, da França, de 21 de janeiro de 1918. Segundo ele, “era uma lei de guerra, de caráter transitório, mas que introduziu no ordenamento jurídico um suporte normativo que possibilitou a resolução, por qualquer das partes contratantes, de obrigações de fornecimento de mercadorias e alimentos, contraídas antes de 1º de agosto de 1914, bem assim que ostentassem a natureza sucessiva e continuada, ou apenas diferida” (RODRIGUES JR., Otávio Luiz. A célebre lei do deputado Failliot e a teoria da imprevisão.
A sua extensão de aplicação, com caráter transitório, foi fixada entre 20 de março e 30 de outubro de 2020, imaginando-se que nesta última data os efeitos da pandemia já teriam cessado entre nós, o que acabou não ocorrendo. Eventualmente, caso tais consequências persistam, defendo que a norma seja reativada, por um novo projeto de lei.
Com impacto direto para os contratos, o art. 3º da lei 14.010/2020 impediu ou suspendeu os prazos de prescrição e de decadência entre a sua entrada em vigor – em 12 de junho – e 30 de outubro. Por certo que muitos casos concretos de disputas contratuais deverão considerar essa regra, para os fins de se reconhecer ou não a perda da pretensão ou do direito potestativo.
Além disso, o seu art. 7º trouxe parâmetros para a revisão e extinção dos contratos. O dispositivo havia sido vetado pelo Sr. Presidente da República, sob o argumento de que a legislação civil já disporia de mecanismos suficientes para a revisão contratual. Todavia, o Congresso Nacional derrubou o veto, pois, de fato, apesar da existência de normas a respeito da temática, haveria a necessidade de sua adaptação e de pequenos ajustes para atender aos desafios decorrentes da pandemia da Covid-19.
Conforme o caput desse art. 7º da lei 14.010/2020, não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário. Adota-se, portanto, o entendimento consolidado de análise limitada e objetiva da imprevisibilidade, algo que se sustenta para os tempos pandêmicos, em prol da conservação dos contratos.
Também se preceituou que tais afastamentos não se aplicam à revisão ou resolução dos contratos de consumo, regida pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), que não exige o elemento da imprevisibilidade; e pela Lei de Locações (lei 8.245/1991). Sobre essa última, apesar das considerações feitas por parte da doutrina, não houve a inclusão de regra específica de revisão, o que acabou por incrementar a judicialização, no meu entender. Apenas se afastou o despejo liminar em algumas situações (art. 9º da lei 14.010/2020).
Ademais, o art. 7º, § 2º, do RJET estabelece que, “para os fins desta lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários”. Assim, não é possível aplicar a revisão contratual prevista no CDC aos contratos civis ou mesmo aos contratos que se enquadram como de consumo, mas que sejam celebrados somente por empresas ou empresários. Afasta-se, portanto, para as ações revisionais fundadas na crise decorrente da Covid-19, a chamada teoria finalista aprofundada ou mitigada, que possibilita a utilização da Lei Protetiva em favor de sujeitos que não sejam destinatários finais do produto ou serviço, mas que estejam em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência. Não incide para essas revisões fundadas na pandemia entre empresários a tese n. 1 constante da Edição n. 39 da ferramenta Jurisprudência em Teses, do STJ, dedicada ao Direito do Consumidor: “o Superior Tribunal de Justiça admite a mitigação da teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor – CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), apesar de não ser destinatária final do produto ou serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade”. Novamente, essa limitação visa a trazer maior estabilidade aos contratos, limitando-se aos fins da lei transitória.
Em todas as hipóteses de revisão, mesmo dos contratos e negócios submetidos ao CDC e a outras leis específicas, as consequências decorrentes da pandemia do coronavírus nas execuções dos contratos não terão efeitos jurídicos retroativos ou ex tunc, mas apenas efeitos a partir de então ou ex nunc. É o que consta do art. 6º da lei 14.010/2020, outra norma que traz segurança aos contratos em tempos tão difíceis, sendo louvável. Esse comando também havia sido vetado pelo Sr. Presidente da República, de forma inexplicável, uma vez que tutela, mais uma vez, a segurança e a estabilidade das relações contratuais, afastando pedidos retroativos oportunistas.
Além disso, prevê o art. 8º da lei 14.010/2020 que “até 30 de outubro de 2020, ficou suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos”. Afastou-se a aplicação do prazo de arrependimento de sete dias para os serviços nele referidos, e que foram muito incrementados e considerados essenciais no período da pandemia, iniciado em 12 de março de 2020. Para a entrega de outros produtos, como roupas e outros bens duráveis, o art. 49 do CDC continuou tendo plena aplicação.
Como último aspecto deste breve texto de retrospectiva, destaco que muitas foram as ações judiciais propostas para a revisão de contratos no ano de 2020, em virtude da pandemia da Covid-19, com grandes variações de entendimento. O que se procurou, na essência, foi afastar a já criticada moratória ampla e irrestrita em benefício de qualquer uma das partes, o que poderia trazer graves consequências para o sistema jurídico nacional.
Em pesquisa realizada para atualização de minhas obras, constatei uma grande quantidade de julgados a respeito de locação imobiliária, contratos de prestação de serviços escolares, planos de saúde e negócios de aquisição de energia. Sobre os últimos, destaco a seguinte conclusão do Tribunal Paulista, somente para ilustrar a dedução pelo equilíbrio: “Decisão que deferiu a tutela antecipada para determinar que o agravado pague apenas a energia elétrica efetivamente consumida, em razão da pandemia (COVID 19). Parte agravante que pleiteia reforma da decisão. Desacolhimento. Crise de saúde em combate à Pandemia do COVID 19. Medidas restritivas governamentais em garantia do isolamento social que a todos afeta, especialmente com limitação às atividades turísticas e educacionais desenvolvidas pelo autor. Força Maior que justifica análise da situação contratual frente a excepcionalidade vivificada. Cláusula contratual que impõe aquisição mínima de energia fora dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade, com desequilíbrio evidente. Sacrifício excepcional que a todos se impõe. Consumidor que não pretende a suspensão dos pagamentos mas lançamentos pelo consumo efetivamente realizado enquanto perdurar a situação excepcional. Decisão agravada mantida” (TJSP, Agravo de instrumento n. 2231179-36.2020.8.26.0000, Acórdão n. 14075283, Campinas; Trigésima Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luis Fernando Nishi, julgado em 20/10/2020, DJESP 23/10/2020, p. 2635).
Em todos os casos de revisão, contudo, cabe a advertência que consta em outro aresto do Tribunal Paulista, no sentido de que “a mera dificuldade financeira do consumidor não é suporte para o descumprimento das obrigações sem as consequências da mora ou do inadimplemento” (TJSP, Agravo de instrumento n. 2174726-21.2020.8.26.0000, Acórdão n. 13919752, São Paulo, Décima Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Afonso Bráz, julgado em 31/8/2020, DJESP 03/09/2020, p. 2216). Reitero, como já fiz em outro texto publicado neste canal, a necessidade de se observar a boa-fé e a transparência nas demandas de revisão contratual.
As análises judiciais relativas à pandemia de Covid-19 se deram, no ano de 2020, em sede de tutela provisória e em agravo de instrumento. Aguardemos, portanto, a abordagem do mérito definitivo das questões pandêmicas e suas repercussões para os contratos nos próximos anos, considerando-se especialmente a duração da crise entre nós. E que 2021 seja melhor do que o ano que ora termina. Ficam os meus agradecimentos a toda a Diretoria do IBDCont, aos nossos articulistas e associados, a todos os que se dedicaram ao aprimoramento do Direito Privado neste último ano e ao Migalhas, pela parceria que prossegue.