Doação entre cônjuges no regime da comunhão universal de bens

Este artigo discute se é ou não viável doação entre cônjuges casados no regime da comunhão universal.

A doação entre cônjuges é permitida pelo CC de modo implícito no art. 544 do CC1. É preciso, porém, observar a sua compatibilidade com o regime de bens do casal.

No caso de consortes casados em regime diverso do da comunhão universal, não há obstáculo à doação entre cônjuges, pois as liberalidades não se comunicam.

Se, porém, os consortes foram casados no regime da comunhão universal de bens, o STJ entende que a doação entre eles seria nula por impossibilidade jurídica do objeto, a qual decorre da comunicabilidade das doações nesse regime de bens (STJ, REsp 1787027/RS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 24/04/20202; AR 310/PI, 2ª Seção, Rel. Ministro Dias Trindade, DJ 18/10/19933).

No voto da Ministra Nancy Andrighi do primeiro julgado retrocitado, é citado Pontes de Miranda para estabelecer que, no regime da comunhão universal, sequer seria viável uma doação entre cônjuges com cláusula de incomunicabilidade, pois isso “importaria permitir-se-lhes a alteração no regime de bens estabelecidos, que é, ex potestate legis, irrevogável”4. Isso foi dito de passagem (obiter dictum), pois o caso concreto não envolvia essa hipótese.

Ousamos apontar a necessidade de parcial ajuste nesse entendimento. Na verdade, nem se poderia falar propriamente que estamos suscitando uma divergência, pois o caso concreto julgado pelo STJ não abrangia as ressalvas que faremos abaixo.

Em primeiro lugar, a doação entre cônjuges no regime da comunhão universal poderia ocorrer quanto aos bens particulares.

O art. 1.668 do CC lista bens particulares nesse regime, como o instrumento de trabalho e as doações recebidas com cláusulas de incomunicabilidade, além de a própria jurisprudência reconhecer outros bens particulares no regime da comunhão universal de bens, como o valor recebido a título de seguro de vida5.

 Nesse sentido, temos apoio no professor Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Rio de Janeiro: Forense, 2020).

Igualmente, o professor Hamid Charaf Bdine acena no mesmo sentido quando ele admite compra e venda de bens particulares entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens (Jr. BDINE JR., Hamid. Charaf. Art. 499. In: PELUSO, Cesar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri/SP: Manole, 2012).

Sobre esse caso especificamente, o STJ não se manifestou e, por isso, a questão ainda está em aberto nessa Corte.

Em segundo lugar, no tocante aos bens comuns, temos por devida a doação, com cláusula de incomunicabilidade, por parte de um cônjuge de modo a tornar a coisa doada um bem particular do outro consorte (art. 1.668, I, CC6). De fato, o regime da comunhão universal comporta bens particulares, de modo que está implícita a possibilidade de os consortes transformarem bens comuns em particulares por meio da cláusula de incomunicabilidade inserida em uma doação.

Entendimento contrário levaria ao absurdo de os consortes terem de doar um bem a um terceiro que, em seguida, doaria apenas a um dos consortes com cláusula de incomunicabilidade com base no art. 1.668, I, do CC, o que seria um despropósito. Interpretações não podem nos levar ao absurdo, como milenar regra de direito.

Além do mais, nada impediria que, por testamento, um consorte deixasse a sua parte sobre um bem comum ao outro, de maneira que seria um contrassenso entender que o Código Civil teria vedado que, em vida, um consorte já tornasse desde logo um bem como como bem particular do outro por meio da cláusula de inalienabilidade.

De mais a mais, a jurisprudência tende a fortalecer a possibilidade de, mesmo no regime da comunhão universal, um dos consortes ter bens particulares, a exemplo do seu direito de salvar, para si, metade do bem comum que foi penhorado por dívida contraída pelo outro sem proveito do casal7.

Não se deve contrariar essa tendência, ainda mais por meio de uma interpretação restritiva que cria embaraços à autonomia da vontade num contexto em que inexiste norma expressamente proibindo a doação com cláusula de incomunicabilidade entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens.

Por fim, o próprio art. 499 do CC, ao permitir compra e venda entre cônjuges quanto aos bens excluídos da comunhão (sem excluir expressamente o regime da comunhão universal), demonstra o prestígio do legislador à gestão dos bens particulares em qualquer regime de bens, mesmo no da comunhão universal.

 O STJ não chegou a enfrentar diretamente um caso concreto envolvendo doação com cláusula de incomunicabilidade entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal. Por isso, o tema ainda está em aberto na jurisprudência no STJ.

Em suma, defendemos que, fora desses dois casos acima (bens particulares e cláusula de inalienabilidade), como a doação é comunicável no regime da comunhão universal, a doação seria nula, nos termos da jurisprudência do STJ8.

*Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT e em outras instituições em SP, GO e DF. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/parecerista. Ex-advogado da União. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB). Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro


1 Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.

2 O caso envolvia a nulidade de cessão gratuita de quotas de pessoa jurídica ao cônjuge casado no regime da comunhão universal. Não havia cláusula de incomunicabilidade.

3 A hipótese consistia na nulidade de doação de bens à esposa casada no regime da comunhão universal. Não havia cláusula de incomunicabilidade.

4 Cabe uma ressalva: o regime de bens pode ser alterado mediante autorização judicial no regime do CC/2002. O excerto é este (fls. 11/14 do voto da Relatora no julgamento do REsp 1787027/RS):

Os cônjuges são senhores pro indiviso dos bens comunicados. Nenhum dos dois os tem e possui por si; dão-se caracteristicamente, os fatos jurídicos da composse e do condomínio. Porém, composse e condomínio mais íntimos e, ao mesmo tempo, mais independentes do que a composse e o condomínio ordinários: os cônjuges não podem alienar ou gravar as suas partes (metades ideias), nem a composse dos bens comunicáveis permite o exercício sobre uma das partes dos bens, nem mesmo a separação. Trata-se de absoluta indivisão de bens presentes e futuros. Daí a impossibilidade das doações entre cônjuges quando o regime entre eles é o da comunhão universal:

a) Se um cônjuge doasse ao outro determinado bem, esse passaria a ser, novamente, bem comum, uma vez que no regime da comunhão universal, todos os adquiridos se comunicam. Já era o argumento de Melo Freire e Almeida e Sousa, que invocaram Groeneweg, Stryk e Bohmer. “Com efeito”, dizia Almeida e Sousa, “nas nações em que é costumo, como no nosso reino, de se comunicarem entre os cônjuges, em falta de outro contrato, todos os bens, dizem os doutos nacionais que cessa este título pela mesma razão de outra vez se comunicarem os bens, que mutuamente se doam”.

A impossibilidade é de ordem lógica.

b) Se a doação se fizesse com cláusula de incomunicabilidade, é certo que tais bens seriam incomunicáveis, porque assim mesmo dispõe o Código Civil (art. 263, II); mas essa condição de incomunicabilidade não seria lícita aos cônjuges: importaria permitirem-se-lhes alterações no regime de bens estabelecidos, que é, ex postestate legis, irrevogável (art. 230). As doações entre cônjuges são, portanto, impossíveis, lógica e juridicamente, se vigora o regime de comunhão universal. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito de família. Vol. II. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 363/364).

5 STJ, REsp 631.475/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJ 8/2/2008.

6 “Art. 1.668. São excluídos da comunhão:

I – os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;”

7 “A jurisprudência desta Corte consolidou entendimento de que os bens indivisíveis, de propriedade comum dos cônjuges casados no regime de comunhão de bens, podem ser levados à hasta pública na execução, desde que reservado ao cônjuge meeiro do executado a metade do preço obtido” (STJ, AgInt no AREsp 1127248/PE, 1º Turma, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 06/12/2017).

8 A título de lembrança, recordamos que a doação entre cônjuges implica antecipação de herança e, por isso, tem de ser colacionada em futura sucessão, salvo se tiver havido cláusula expressa de dispensa de colação. Sobre o tema, reportamo-nos a este outro artigo nosso que trata da dispensa de colação pós-doação (OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. Escritura pública de dispensa de colação pós-doação. Disponível aqui. Publicado em 12 de agosto de 2020).

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.
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