O de seguros privados no Brasil vive importantes mudanças que precisam ser conhecidas e estudadas porque o setor tem se mostrado cada vez mais relevante para a sociedade.
O setor de seguros privados como todos os setores que administram recursos de terceiros, sempre foi cauteloso em relação a mudanças ou inovações, mas, nos últimos anos, a força das novas tecnologias em todas as áreas e, mais recentemente, a intensa digitalização da vida que a pandemia provocou, estimularam os órgãos reguladores e fiscalizadores do setor de seguros a ampliar as possibilidades de atuação, com o objetivo de tornar a atividade de seguros mais diversificada e, em consequência, capaz de incluir maior número de contratantes.
Seguro é um instrumento de equilíbrio social. Quando os riscos se materializam e geram danos é muito melhor que pessoas naturais ou jurídicas tenham cobertura de seguro por meio da qual possam diminuir o impacto econômico, refazer seus negócios, retomar suas vidas. Basta pensarmos em seguros de incêndio, de vida, de saúde, acidentes pessoais e, facilmente, poderemos compreender a relevância social desse instrumento. A inclusão de maior número de pessoas que possam contratar seguros é recomendável para todas as sociedades e, é o que acontece nos países de economia central.
Se as mudanças regulatórias forem efetivas para a inclusão de maior número de pessoas – naturais e jurídicas – entre os contratantes de seguro e, principalmente, se essas mudanças propiciarem produtos de seguro mais flexíveis, com maior concorrência, menor preço final ao contratante e, maior facilidade para a compreensão dos instrumentos de contratação, a regulação terá atingido um estado bastante avançado, em condições de colocar o país entre aqueles em que os seguros respondem por um percentual expressivo no Produto Interno Bruto – PIB.
De 2019 para cá várias mudanças regulatórias importantes ocorreram no setor de seguros privados, entre elas duas que merecem especial destaque: o modelo regulatório sandbox que permitiu o ingresso no mercado de empresas de menor porte, as insurtechs, que são as startups de seguro; e, mais recentemente, as regras para implantação do sistema de open insurance.
O open insurance é o tema de nossas reflexões neste trabalho.
1.Open Finance, Open Banking e Open Insurance
Open finance é a denominação que vem sendo aplicada ao sistema que reúne open banking e open insurance. As bases legais desse sistema estão na Lei de Liberdade Econômica e na regulação do Banco Central e, para o open insurance, especificamente, nas regras do Conselho Nacional de Seguros Privados e da Superintendência de Seguros Privados.
Há integração entre os objetivos dos reguladores de bancos e seguros para estimular a concorrência entre os agentes econômicos, ampliar as possibilidades de acesso ao mercado às pessoas conhecidas como desbancarizadas e, tornar os contratantes mais livres para contratar com quem lhes ofereça as melhores perspectivas. Em outras palavras, o objetivo é atribuir maior poder aos contratantes para que façam escolhas e com isso estimular a concorrência na criação de produtos customizados às necessidades específicas dos contratantes.
O que tornou possível o sistema open finance foi a popularização de smartphones, telefones celulares com cada vez maior capacidade computacional. O aumento de velocidade da rede mundial de computadores e a viabilidade de transmissão de maior quantidade de dados em tempo real, também contribuíram significativamente para que os telefones celulares pudessem incluir inúmeras outras funções além da original, em especial por meio de programas chamados de aplicativos e que podem realizar infindáveis tarefas.
O Brasil ainda possui quantidade expressiva da população totalmente desbancarizada, sem acesso formal a instituições bancárias ou financeiras, porém, tem uma quantidade significativa da população que possui telefones celulares. Em junho de 2020, pesquisa realizada pela FGV1 apontou que o Brasil tem 424 milhões de dispositivos digitais em uso, sendo 234 milhões de telefones celulares inteligentes (smartphones). A média é de 1,6 dispositivos portáteis por habitante e a população brasileira em 2020 estava estimada em 212,6 milhões de pessoas segundo dados do Banco Mundial.2
Outro aspecto importante da realidade brasileira é que os dados bancários de uma pessoa pertencem ao banco e não a ela própria, o que dificulta muito a migração de uma instituição para outra. O open banking se torna, então, uma medida para colocar o usuário no centro do poder de decisão, permitindo que ele partilhe seus dados como quiser e com quem quiser, de forma a obter em troca melhores condições de negociação nos diferentes produtos bancários e de seguro.
O Banco Central afirma que o objetivo do open finance é incentivar inovações no setor financeiro, promover aumento da concorrência e também da eficiência do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro. Entre os resultados esperados está alocada a educação financeira ou, cidadania financeira, que consiste na ampliação da compreensão dos usuários sobre os diferentes produtos bancários e de seguro, de forma a facilitar escolhas mais adequadas às diferentes necessidades.
- Open Insurance
Em agosto, o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP aprovou a Resolução 415, de 2021, que define open insurance como compartilhamento padronizado de dados e serviços por meio de abertura e integração de sistemas no âmbito dos mercados de seguros, previdência complementar aberta e capitalização.
Também aprovou a Circular 635, de 2021, que dispõe sobre a regulamentação das diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP para implementação do Sistema de Seguros Aberto (Open Insurance).
Alguns conceitos importantes são definidos pela regulação:
a) Sociedade supervisionada: a sociedade seguradora, incluindo aquela participante exclusivamente de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), a entidade aberta de previdência complementar ou a sociedade de capitalização;
b) Sociedade transmissora de dados: sociedade supervisionada, participante do Open Insurance, ou sociedade iniciadora de serviço de seguro que compartilha com a sociedade receptora os dados de que trata esta Resolução;
c) Sociedade receptora de dados: sociedade supervisionada, participante do Open Insurance, ou sociedade iniciadora de serviço de seguro que apresenta solicitação de compartilhamento à sociedade transmissora para recepção dos dados de que trata esta Resolução;
d) Sociedade iniciadora de serviço de seguro: sociedade anônima, credenciada pela Susep como participante do Open Insurance, que provê serviço de agregação de dados, painéis de informação e controle (dashboards) ou, como representante do cliente, com consentimento dado por ele, presta serviços de iniciação de movimentação, sem deter em momento algum os recursos pagos pelo cliente, à exceção de eventual remuneração pelo serviço, ou por ele recebidos.
A sociedade iniciadora de serviço de seguro é a novidade mais marcante do novo sistema, porque não existe na atual estrutura de serviços de seguro em que a intermediação é realizada por corretores, agentes ou representantes de seguro. Os primeiros mais longevos e tradicionais na história da intermediação de seguros no Brasil; os agentes, diretamente ligados às seguradoras para as quais atuam; e, os representantes vinculados a varejistas e autorizados a distribuir apenas algumas modalidades de seguros.
As sociedades iniciadoras de serviços de seguro parecem se constituir em novo intermediário autorizado pela regulação para atuar especificamente na área de open insurance, com a função de orientar os clientes na organização e apresentação de dados para serem disponibilizados em ambiente seguro, na busca das melhores oportunidades de contratação para necessidades específicas.
Os objetivos do open insurance são definidos na regulação como:
a) ter o cliente como seu principal beneficiado;
b) tornar seguro, ágil, preciso e conveniente para os clientes o compartilhamento padronizado de dados, previsto na Lei Geral de Proteção de Dados e demais legislações que tratam do sigilo de operações financeiras, e serviços;
c) incentivar a inovação;
d) promover a cidadania financeira;
e) aumentar a eficiência dos mercados de seguros privados, de previdência complementar aberta e de capitalização;
f) promover a concorrência; e
g) ser interoperável com o Open Banking.
A regulação do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, definiu, ainda, os princípios do open insurance, que são:
a) transparência;
b) segurança e privacidade de dados e de informações compartilhados no âmbito do Open Insurance;
c) livres iniciativa e concorrência;
d) qualidade dos dados;
e) tratamento não discriminatório;
f) reciprocidade;
g) interoperabilidade; e
h) integração com o open banking.
Muitas perguntas estão sendo feitas entre os operadores de seguros privados em todo o país, tanto na área jurídica como nas áreas de distribuição de produtos (comercial), técnica-atuarial, financeira e de sistemas computacionais.
A primeira pergunta, sem dúvida, é: em quais outros países do mundo já se opera com open insurance no setor de seguros? A União Europeia está discutindo o assunto, mas ainda não implantou o sistema. E países como México, Austrália, Índia e Nova Zelândia já iniciaram operações semelhantes a esta aprovada no Brasil.
Quais os benefícios esperados para o cliente? A SUSEP explica em reiteradas manifestações na mídia e em redes sociais que a expectativa é a melhoria de qualidade dos serviços prestados aos clientes, principalmente para que seja possível precificar de forma mais adequada às necessidades de cada um, além de oferecer produtos diferenciados, mais adequados à diversidade da sociedade brasileira. Em poucas palavras, o compartilhamento autorizado de dados poderá oferecer maior acessibilidade a produtos de seguro, em especial para a parcela da população que ainda não contrata.
O corretor de seguros deixará de ser o principal intermediário na contratação de seguros? Não há resposta única para essa indagação, mas, em princípio, parece que o ingresso de novos contratantes de seguro possa representar oportunidade para os corretores, porque os preços, produtos e formas de contratação poderão ser facilitados, mas a correta compreensão da operação de seguros, dos direitos e deveres dos contratantes e dos seguradoras, dos riscos aos quais o contratante está efetivamente sujeito, tudo isso segue com alta carga de complexidade porque, realmente, compreender formação e administração de fundos mutuais a partir de riscos homogêneos nem sempre é tarefa das mais simples. Nesse aspecto, ou seja, como consultor e orientador dos contratantes os corretores de seguro continuarão a ter papel relevante, mas terão que se adaptar ao trabalho no mundo digital, em área de market place, que é o que se acredita que o open insurance será efetivamente na prática.
Em princípio, o open insurance parece estar destinado a seguros massificados, em especial os nichos que começaram a ser explorados pelas insurtechs, aprovadas para operar no modelo sandbox e que já são duas dezenas aprovadas em dois editais e em funcionamento. Não há impedimento para a atuação de seguradoras em área de não massificados, ou seja, os seguros de grandes riscos, mas o sistema parece estar mais adequado a seguros massificados e específicos, que serão a porta de entrada de novos contratantes.
Conclusão
As inovações tecnológicas atingiram todas as áreas econômicas e sociais. No setor de seguros privados não poderia ser diferente e as mudanças são muito bem-vindas, em especial se atingirem os objetivos desejados: maior flexibilidade na oferta de produtos pelos seguradores, com melhores preços e, principalmente, com a inclusão de novos contratantes.
Tudo isso deverá ser concretizado com absoluto respeito à proteção de dados dos consumidores, que só poderão ser partilhados com prévio e expresso consentimento e para a finalidade estritamente necessária, conforme prescrito pela Lei Geral de Proteção de Dados. Nesse sentido, as novas sociedades iniciadoras de serviços de seguro deverão ser fortemente acompanhadas pelo regulador de seguros e pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, para que seu trabalho não coloque em risco a proteção de dados dos consumidores.
Para os corretores de seguro há perspectivas positivas mas, como muitas outras categorias profissionais, inclusive os advogados, há necessidade de conhecer melhor e estudar de forma sistemática o ambiente digital, os negócios no mundo do compartilhamento digital e as especificidades que esse ambiente propõe.
A realidade é que a inserção de novos contratantes, em especial entre as camadas de baixa renda da população brasileira é uma necessidade, concretiza a sociedade mais justa pretendida pela Constituição Federal e, confere maior equilíbrio social para socorro em situações de danos que podem ser bastante negativas para aqueles que não possuem recursos econômicos para se defender.
A pandemia da COVID-19 nos ensinou que a mudança é a única certeza da sociedade em que vivemos. Que desta vez estejamos às voltas com boas mudanças, que tragam resultados positivos para a sociedade brasileira.
1 Estudo da FGV EASP. Disponível emhttps://portal.fgv.br/noticias/brasil-tem-424-milhoes-dispositivos-digitais-uso-revela-31a-pesquisa-anual-fgvcia. Acesso em 06 de novembro de 2021.
2 Indicadores de Desenvolvimento Mundial. Disponível em: https://datatopics.worldbank.org/world-development-indicators/. Acesso em 06 de novembro de 2021.
Artigo disponível no site do Migalhas: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/354423/open-insurance-para-o-setor-de-seguro-privado-reflexoes-preliminares