Introdução
Em 30 de abril de 2019, foi editada a Medida Provisória n. 881, cuja eloquente epígrafe anunciava a instituição de uma “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. O ato anunciado no início do novo governo suscitou debates de toda a ordem sobre a conveniência, a correição ou a constitucionalidade de seus dispositivos.
Convertida na lei 13.874/2019, passados dois anos e uma pandemia global aparentemente em seu fim, convém apurar os efeitos das mudanças na jurisprudência sobre litígios contratuais, neste período. Esse é o objetivo deste artigo1.
- Lei de liberdade econômica e contratos: histórico, propósitos e visão da doutrina
Na origem, a Medida Provisória n. 881, posteriormente convertida em lei, alterou o Código Civil em quatro pontos no que concerne à regulação dos contratos2. A pretexto de garantir maior contenção do Poder Judiciário ao interpretar ou executar contratos privados, as alterações pretenderam atribuir maior eficácia àquilo que foi, efetivamente, contratado entre as partes.
Àquela altura, um segmento da doutrina entendia que, de fato, era necessário estabelecer áreas de proteção quanto a intervenção do Poder Judiciário na interpretação e enforcement dos contratos. Em sentido contrário, outro grupo de autores não considerava a expansão do Poder Judiciário sobre os contratos um problema3.
Estas correntes foram vetores importantes no âmbito da discussão legislativa da medida provisória. Deste enfrentamento emergiu o texto final da Lei n. 13.874/2019 que, quanto à teoria geral dos contratos, modificou o Código Civil nos seguintes pontos: (i) incluiu o §1º no art. 113, instituindo novos parâmetros de interpretação dos contratos4; (ii) o art. 421 foi aprimorado para estipular a função social como um limite à autonomia das partes, e não um pressuposto5; (iii) foram mantidos os princípios de intervenção mínima e revisão excepcional do contrato, já previstos desde a medida provisória6; e, por fim (iv) foi também reconhecida a maior autonomia dos negócios civis e empresariais, inclusive para definir parâmetros de revisão e resolução7.
Colocando-se de lado as posições manifestadas pela doutrina, as alterações demonstram que, democraticamente, o Congresso Nacional tomou um lado no debate sobre a relação do Poder Judiciário com os contratos privados. À toda luz, o Poder Legislativo brasileiro pretendeu ampliar o grau de liberdade contratual das partes que se sujeitam à ordem jurídica nacional.
Sob este pressuposto, é necessário avaliar se, de fato, juízes e tribunais têm considerado o novo texto dos artigos 113, 421 e 421-A como barras de contenção em postulações que pretendam obter do Poder Judiciário intervenção em contratos firmados entre particulares.
- Balanço da jurisprudência, dois anos depois: alguns achados
Em setembro de 2021, as mudanças implementadas pela Lei de Liberdade Econômica no Código Civil completaram dois anos. Este período, tomado isoladamente, é ainda bastante incipiente para examinar que efeitos as alterações podem ter gerado na jurisprudência sobre litígios contratuais.
Mesmo com esta ressalva, a ocasião permite examinar se, após as alterações introduzidas, juízes tendem a ser mais deferentes para o que foi contratado entre as partes. Além disso, no contexto da pandemia global de Covid-19, é possível avaliar de que modo a Lei de Liberdade Econômica repercutiu na solução que o Poder Judiciário deu para as diversas questões surgidas em relações tão díspares como locações, contratos de fornecimento, compra e venda de imóveis e contratos de prestação de serviço em geral.
2.1. Ambiente de negócios
Como visto, o objetivo deliberado da medida provisória posteriormente convertida na Lei de Liberdade Econômica foi a melhoria do ambiente de negócios no Brasil. Partiu-se de uma premissa: o Brasil é um país hostil à livre-iniciativa em razão da dificuldade para abrir e fechar empresas, obter aprovações públicas, recolher tributos e, do ponto de vista dos contratos, vê-los reconhecidos pelo Poder Judiciário nos termos exatos ajustados pelas partes. Esta constatação tinha como principal apoio a posição do país no ranking divulgado pela Heritage Foundation8.
Colocada de lado a retórica política, passados mais de dois anos desde a edição da Lei de Liberdade Econômica, não é possível relacionar as alterações promovidas no Código Civil à melhoria da posição brasileira no ranking.
Embora de modo geral a pontuação do país tenha melhorado entre 2019 e 2021 (um avanço de 51,9 para 53,4), isto ocorreu a despeito da estagnação, na prática, durante o período de vigência da Lei de Liberdade Econômica, da componente que mede a liberdade de fazer negócios (business freedom): em 2019 este índice media 57,9 e em 2021 obteve nota 58. A estagnação, ainda que seja certo que o índice não mede apenas aspectos legais a respeito dos contratos, contraria a perspectiva dos técnicos do governo, que a partir de estudos estatísticos, previam que “o Brasil subiria mais de 100 posições no ranking de liberdade econômica da Heritage Foundation em relação à posição de 2019”.
Neste contexto, os dados obtidos na jurisprudência mostram que não se encontra em curso, até esta data, nenhuma tendência de mudança consistente na visão dos tribunais pesquisados, quanto a liberdade contratual. É certo que uma conclusão definitiva demandaria avaliar a jurisprudência do período anterior à Lei de Liberdade Econômica; sem prejuízo disso, a ausência de virada em casos emblemáticos ou de precedentes relevantes que tenham destacado a mudança da legislação brasileira quanto a regulação dos contratos, permite dizer que, até então, as alterações do Código Civil não foram relevantes para a melhoria do ambiente de negócios.
É ilustrativo deste ponto a ausência, até esta data, de precedentes formados sob o regime dos recursos repetitivos (art. 1.036, Código de Processo Civil – CPC) ou do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976, CPC) que tenham tomado como base os dispositivos alterados ou implementados pela Lei de Liberdade Econômica. Do mesmo modo, os novos dispositivos não permitiram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) rever posições anteriores em teses firmadas relativas a litígios contratuais.
Sem prejuízo de uma conclusão distinta no futuro, estes elementos sugerem que a melhoria do ambiente de negócios não parece relacionar-se de modo decisivo com a visão que o Poder Judiciário brasileiro tem a respeito da liberdade contratual. A se ter em conta que as mudanças trazidas pela Lei de Liberdade Econômica ainda não causaram impacto relevante, é possível sustentar que, antes da legislação e ao contrário do que ela presumiu, não havia necessariamente uma postura hostil à livre-iniciativa por parte de juízes em geral, ao menos ao ponto de ser razão determinante para um ambiente de negócios ruim.
2.2. Função social do contrato
A literatura sobre a função social do contrato no Brasil é ampla e tem tratado, desde a edição do Código Civil, em 2002, sobre inúmeros aspectos deste princípio. Não é objetivo deste artigo retomar estes trabalhos, mas apenas indicar se as decisões e acórdãos pesquisados apontam para alguma mudança na sua construção jurisprudencial.
Tradicionalmente, a função social dos contratos é referida como um princípio9 ou cláusula geral10 antagonista da autonomia contratual11. Sob esta diretriz, é usual que a função social seja utilizada como fundamento para relativizar os efeitos daquilo que foi contratado entre as partes, temperando a interpretação literal do contrato ou alguma consequência decorrente de seu texto que possa parecer, de modo geral, abusiva ou injusta (função social interna)12.
Esta tradição tem se refletido na jurisprudência brasileira sobre o tema, sendo bastante conhecidos grupos de casos que se valem da função social para, por exemplo, coibir abusos na interpretação de cláusulas de contrato de plano de saúde e contratos bancários13.
Sendo este o panorama geral, e que à toda vista buscou ser modificado pela Lei de Liberdade Econômica, nos acórdãos levantados não foram identificados julgados que referissem diretamente alguma mudança nesta postura. A alteração do texto do art. 421 não foi suficiente, nos últimos dois anos, para mudar a compreensão existente na jurisprudência brasileira de que a função social pode ser utilizada como limitadora de efeitos jurídicos previstos em contratos, em casos concretos onde sejam identificadas interpretações abusivas ou limitadoras do exercício de direitos.
A ausência de elementos que apontem para uma virada na jurisprudência que aplica a função social dos contratos é um achado especialmente interessante. Isto porque, quanto ao art. 421, o texto introduzido pela Lei de Liberdade Econômica impôs uma mudança substancial e objeto de discussão clássica no âmbito da doutrina. Ao dispor, no texto anterior, que a liberdade de contratar deveria ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato, o art. 421 parecia abraçar a tese de que o Poder Judiciário estava autorizado não apenas a corrigir abusos (função social como limitação da liberdade contratual), como também a condicionar a validade do contrato ao preenchimento de interesses sociais ou coletivos (função social como pressuposto para o reconhecimento da liberdade contratual).
O texto alterado pela Lei de Liberdade Econômica restringiu o âmbito de aplicação da função social do contrato, adotando agora apenas a concepção da função social como limite negativo – acolhendo corretamente crítica antiga, especialmente de Antônio Junqueira de Azevedo. Ainda assim, ao menos no período abrangido pela pesquisa, não foi possível verificar referências a esta mudança na jurisprudência, nem casos relevantes em que foi postulado algum tipo de intervenção do Poder Judiciário no curso de uma controvérsia contratual e a conclusão tenha sido negativa por força da nova redação14.
Estas circunstâncias, portanto, sugerem que a mudança do caput do art. 421 também não guarda relação com o grau de intervenção do Poder Judiciário nos contratos. Embora se tenha operado uma mudança relevante em seu texto, não se sentiu até então impacto relevante na jurisprudência. É possível inferir, portanto, que juízes e tribunais brasileiros não adotam uma postura a priori contra a vontade das partes, ao contrário do que o legislador presumiu.
Aparentemente, existindo na legislação inúmeros mecanismos de controle da validade das disposições contratuais, o uso que juízes tem dado à função social é excepcional. O levantamento da jurisprudência sugere que o art. 421 não é a raiz de uma suposta cultura de intervenção sobre os contratos, diferente do que o legislador supôs.
2.3. Interpretação e integração do contrato
O §1º acrescido ao art. 113, Código Civil, na linha do quanto pretendido pela Lei de Liberdade Econômica, passou a estabelecer balizas de interpretação mais claras para os juízes com o fim de extrair aquela que melhor traduza o resultado do consenso entre as partes.
Vê-se que esta diretriz já tem sido adotada por tribunais brasileiros. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, controvérsia em contrato firmado entre a Petrobrás e uma contratada foi dirimida a partir do exame sobre quem redigiu a cláusula controversa – valendo-se a turma julgadora do critério do inciso IV15. No Paraná, de igual modo, o Tribunal de Justiça ao se deparar com um contrato confuso e mal redigido não deu a ele interpretação arbitrária, mas sim buscou avaliar qual seria a solução da controvérsia a partir da racionalidade econômica do negócio (inciso V)16. O Tribunal de Justiça de São Paulo, da mesma forma, ao interpretar uma transação extrajudicial que não chegou a ser assinada entre as partes, teve em conta o comportamento das partes após a sua celebração verbal (inciso I)17.
2.4. Pandemia
As mais comuns referências à Lei de Liberdade Econômica, no contexto de litígios contratuais, foram encontradas em casos relacionados à pandemia de Covid-19.
Nos acórdãos levantados, as partes de um contrato pretendiam obter a sua revisão por força dos efeitos da Covid-19. Os casos abrangem um conjunto bastante heterogêneo de contratos, a exemplo de locação, prestação de serviços educacionais e mútuo bancário.
Nestes casos, ao acionar o parágrafo único do art. 421 e o 421-A, a jurisprudência fixou um marco importante para não realizar revisões pura e simples de contratos. Ao atentar-se para a restrição do espaço em que o juiz pode mudar o consenso obtido pelas partes ao constituir um contrato, operada por força da Lei de Liberdade Econômica, as decisões levantadas criaram parâmetros importantes para o uso da pandemia de Covid-19 como fundamento para a revisão de contratos18.
Quanto a este ponto, as alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica na regulação dos contratos não parecer ter introduzido uma norma nova e completamente desconhecida ou ignorada por juízes e tribunais. Em verdade, ao mencionar a presunção de simetria entre as partes, o dispositivo novo funciona quase como um lembrete às Cortes, como um farol necessário para que seja sempre ponderado, mesmo no curso de uma pandemia, se as peculiaridades de cada relação contratual admitem ou não a revisão.
Ou seja, a pandemia, isoladamente, não é fundamento de revisão contratual. Os julgados levantados mostram a maturidade da jurisprudência brasileira, de modo geral, no enfrentamento da Covid-19. Ponderou-se que, de saída, as relações contratuais civis e empresariais são simétricas e não sujeitas a modificação imposta pelo Poder Judiciário; eventos extraordinários, contudo, excepcionalmente e sempre à luz dos efeitos concretos nas relações, podem permitir a revisão decorrente de onerosidade excessiva.
Ainda que esta lógica não tenha sido inaugurada pela Lei de Liberdade Econômica, a existência de norma expressa neste sentido parece ter colaborado para a obtenção de decisões mais ponderadas a respeito dos efeitos da pandemia de Covid-19 sobre os contratos. Dada a profusão de julgados sobre o tema que se valeram do parágrafo único do art. 421 e o 421-A, pode-se intuir que, sem estes dispositivos, a jurisprudência teria menos amarras para revisar contratos que não necessariamente demonstraram desequilíbrio e onerosidade aptos a permitir a intervenção corretiva do Poder Judiciário.
Conclusão
Embora mais criticada do que celebrada, seja pela técnica aplicada ou mesmo pelos propósitos declarados, as alterações realizadas pela Lei de Liberdade Econômica no Código Civil, na disciplina dos contratos, tiveram efeitos positivos.
As modificações, mesmo não introduzindo elementos desconhecidos da jurisprudência brasileira, tem permitido aprofundar a diferença de regime jurídico entre contratos de consumo, contratos civis e contratos empresariais. Nos dois últimos, o recurso à função social do contrato ou a interpretações que subvertam a racionalidade econômica dos contratantes deve ser restringida, conforme já se defendia antes mesmo da Lei de Liberdade Econômica, agora com força de lei. Decisões que aplicam o art. 113, §1º, 421 e 421-A revelam maturidade da jurisprudência brasileira quanto a este ponto.
Entretanto, a existência dos dispositivos não impôs, até aqui, nenhuma mudança radical de compreensão sobre os limites da atividade do juiz sobre os contratos privados. Isto sugere que as alterações apenas reforçaram e criaram novos fundamentos para uma visão que já existia, à exceção talvez dos parâmetros de revisão e integração previstos no art. 113, §1º, que agora restringem interpretações dissociadas da racionalidade econômica dos contratos.
Por outro lado, os dados também sugerem que função social dos contratos ou a regulação dos contratos no Código Civil não guarda relação relevante com o ambiente de negócios no país. Neste período de pouco mais de dois anos, não foi possível identificar ainda melhoria relevante em rankings internacionais que medem este desempenho.
Assim, a intervenção combatida pela Lei de Liberdade Econômica aparenta ser um típico moinho de vento, nos termos combatidos pelo herói clássico Dom Quixote: não foi possível identificar uma predisposição hostil à vontade das partes, nem uma mudança relevante nos casos em que o Poder Judiciário invalida cláusulas reputadas ilegais.
Quando isto ocorre, não se trata de arbitrariedade ou aplicação indiscriminada do texto legal. A existência de muito mais casos de controle da validade de contratos no âmbito, por exemplo, do Código de Defesa do Consumidor, mostra que a origem desta postura não está no Código Civil, mas na legislação que corretamente protege hipossuficientes nestes casos. As mudanças implementadas pela Lei de Liberdade Econômica não alteraram até aqui, e certamente não alterarão, estas hipóteses, o que mostra que este propósito do legislador soa inócuo.
1 Em razão do espaço limitado, deixa-se de indicar aqui as referências de cada um dos acórdãos objeto deste levantamento. Os acórdãos selecionados são representativos de grupos de casos com características semelhantes. A pesquisa foi realizada pelo buscador Jusbrasil a partir da busca individual pelas referências aos artigos 113, caput e §1º, 421, caput e parágrafo único, e 421-A. Adotou-se como recorte a publicação dos acórdãos a partir do dia 20 de setembro de 2019, data da publicação da lei.
2 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.
Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente.
Parágrafo único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida.
Art. 480-A. Nas relações interempresariais, é licito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual.” (NR)
Art. 480-B. Nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida.
3 Eduardo Tomasevicius considerou a restrição à função social inócua, já que “raramente aplicada em contratos empresariais” – principal âmbito de aplicação da liberdade econômica. A restrição à revisão dos contratos, por sua vez, desconsidera que “não são facilmente aceitas as revisões contratuais entre partes iguais, de modo que a MP 881 só ratifica o que se pratica nos tribunais brasileiros” (TOMASEVICIUS FIHO, Eduardo. MP da “liberdade econômica”: o que fizeram com o Direito Civil?. Escrevendo ainda a quente, cinco dias após a publicação da medida provisória, Rodrigo Xavier Leonardo e Otávio Luís Rodrigues Júnior mostraram-se cautelosamente otimistas. Para os autores, a MP n. 881 destinou-se a “diminuir o caráter intervencionista de algumas regras e princípios de Direito Civil”. Se o propósito foi positivo, contudo, a técnica utilizada foi censurada pelos autores, na medida em que a redação original do art. 421 perdia a oportunidade de extinguir a submissão da liberdade de contratar (e não da liberdade contratual, ou seja, de definir o conteúdo do contrato) à função social. Além disso, a tentativa de proibir a revisão externa às partes soou-lhes inusitada, dado o uso de uma cláusula aberta para restringir outra cláusula aberta, impedindo até mesmo, no limite, o Poder Legislativo de estabelecer regras legais sobre contratos (LEONARDO, Rodrigo Xavier; RODRIGUES JÚNIOR, Otávio. A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil (parte 1).Gustavo Tepedino, por seu turno, manifestou impressão mais crítica. Em editorial da Revista Brasileira de Direito Civil, embora tenha reconhecido uma aparente boa vontade da comunidade jurídica com o texto da MP n. 881, ao fim, segundo o autor, ela se mostrou “atécnica, confusa e ociosa”. Do ponto de vista da teoria geral dos contratos, as mudanças introduzidas foram consideradas tautológicas por se valerem de cláusulas abertas, sem a fixação de parâmetros objetivos para tratar de temas como interpretação e revisão dos contratos, ou dos contratos de adesão[3] (TEPEDINO, Gustavo. A MP da Liberdade Econômica e o Direito Civil. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 20, n. 2, p. 11-13, 2019). Paulo Lôbo, por fim, em posição mais radical, considerou inúmeras alterações inconstitucionais. Para o autor, a pretensão a uma intervenção mínima nas relações contratuais viola “o princípio jurídico fundamental (…) dos ‘valores sociais da livre-iniciativa’ (art. 1º, inc. IV da Constituição). Segue-se daí que as alterações que buscam restringir a função social ou a intervenção do Poder Judiciário em contratos seriam inválidas, posto que colidentes “com os princípios constitucionais regentes da atividade econômica”[3] (LÔBO, Paulo. Inconstitucionalidades da MP da “liberdade econômica” e o Direito Civil.).
4 Art. 113. (…)
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
5 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
6 Art. 421. (…)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
7 Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
8 O ranking considera “a qualidade do ambiente legal, a eficiência regulatória, além do tamanho do governo e o grau de abertura comercial capaz de aferir a relação entre legislação, respeito aos negócios privados e postura do Poder Judiciário”, conforme consta da nota informativa emitida pelo Ministério da Economia:
9 Como exemplo desta compreensão, confira-se o enunciado 360 aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”. Neste mesmo sentido, também considerando a função social como princípio: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475” (enunciado 361, IV Jornada de Direito Civil).
10 Considerando a função social dos contratos não como princípio, mas sim como cláusula geral, confira-se: enunciado 21, I Jornada de Direito Civil: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”; enunciado 22, I Jornada de Direito Civil: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.
11 Embora esta não seja a concepção do autor, ela pode ser encontrada em: NALIN, Paulo. Princípios do direito contratual: função social, boa-fé objetiva, equilíbrio, justiça contratual, igualdade. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 136-137.
12 GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 129-131.
13 A título ilustrativo: “AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL ( CPC/2015 ). DIREITO CIVIL. PLANO DE SAÚDE. MEDICAMENTO ANTINEOPLÁSICO PALBOCICLIBE (IBRANCE). RECUSA DE COBERTURA. ALEGAÇÃO DE NÃO ENQUATRAMENTO NA DIRETRIZ DE COBERTURA DA ANS. CARÁTER EXEMPLIFICATIVO DO ROL DE PROCEDIMENTOS E DIRETRIZES DA ANS. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DA TERCEIRA TURMA. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE. 1. Controvérsia pertinente à obrigatoriedade de cobertura do medicamento antineoplásico PALBOCICLIBE (IBRANCE) a paciente acometida de câncer de mama metastático, tendo havido recusa da operadora sob o fundamento de ausência de enquadramento do caso nas diretrizes de utilização previstas no rol de procedimentos mínimos da ANS. 2. Caráter exemplificativo do rol de procedimentos da ANS, na linha da jurisprudência pacífica desta TURMA, firmada com base na função social do contrato de plano de saúde. 3. Caso concreto em que a paciente se encontra acometida de doença oncológica grave e progressiva, de modo que a recusa genérica de cobertura (sem instauração de junta médica nos termos da RN ANS 424/2017) deixou a paciente padecendo à própria sorte no tratamento da doença, desatendendo assim à função social do contrato, segundo a linha de entendimento desta Turma. 4. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.” (STJ, AgInt no REsp 1911407/SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 18/05/2021); “AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CONTRATO. EMPRÉSTIMO BANCÁRIO. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO E EM CONTA-CORRENTE. HIPÓTESES DISTINTAS. LIMITAÇÃO AO PERCENTUAL DE 30%. VIOLAÇÃO À DIGNIDADE. COMPROMETIMENTO DO SUSTENTO DO DEVEDOR. INEXISTÊNCIA. REVISÃO. REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Segundo orientação jurisprudencial vigente no Superior Tribunal de Justiça, em observância aos princípios da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana, o adimplemento de obrigação assumida em contrato de mútuo bancário na modalidade de consignação em pagamento está limitada ao percentual de 30%. (…). 4. Agravo interno desprovido. (STJ, AgInt no REsp 1812927 DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 14/10/2019).
14 Três casos podem ser destacados. No primeiro, a recorrente postulou a revisão de um contrato de empréstimo firmado junto a um banco, sustentando que as cláusulas se tornaram abusivas em razão da pandemia. A turma considerou que “a hipótese fática é regida pelo artigo 421 do Código Civil que foi recentemente modificado pela Lei 13.874/19, denominada Lei da Liberdade Econômica, que estabeleceu o princípio da intervenção mínima nos contratos com o intuito de reforçar a força vinculante dos pactos (pacta sunt servanda)”. O recurso não foi provido (TJES, RI 131211820208080545, rel. Juiz de Direito Wesley Sandro Campana Dos Santos, 3ª Turma Recursal, j. 24 de Agosto de 2021). Em outro exemplo, foi postulado a revisão do valor das mensalidades do curso de medicina. Mesmo se tratando de relação de consumo, a turma julgadora entendeu que a princípio “a Liberdade Contratual e Autonomia da Vontade são fundamentos do negócio jurídico contratual e o Poder Judiciário só pode intervir em situações em que se verifique efetiva disparidade e desequilíbrio entre as partes, o que, por obvio, não se configura em tão pequeno espaço de tempo. A lei de Liberdade econômica alterou a redação do parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, que passou a dispor que nas relações contratuais privadas, prevalecerão o Princípio da Intervenção Mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. O recurso não foi provido (TJRJ, Agravo de instrumento n. 0051180-21.2021.8.19.0000, rel. Des. Fernando Cerqueira Chagas, 11ª Câmara Cível, j. 09/12/2021). Por fim, o Tribunal de Justiça do Paraná teve a oportunidade de examinar caso em que se pretendia a revisão do valor de uma cláusula penal ajustada em contrato entre dois particulares. A turma julgadora considerou que “a intervenção jurisdicional em contratos entre particulares deve ser excepcional e se limitar aos casos de flagrante abusividade, sob pena de indevido cerceamento da autonomia das vontades privadas pelo Estado-Juiz. A intervenção do poder judiciário nos contratos particulares deve ser absolutamente extraordinária, notadamente considerando as inovações legais introduzidas pela Lei 13.874/19, a chamada Lei da Liberdade Econômica”. Por força disso, considerou-se não ser possível revisar a multa prevista no negócio porque “embargante e embargada firmaram um contrato de fornecimento e comodato com garantia fidejussória, no qual havia nítidas vantagens a ambas as partes, isto é, não há se falar em sobreposição de uma parte ou em subjugação da outra.” (TJPR, Apelação n. 0021236-04.2011.8.16.0001, rel. Juiz Convocado Ruy Alves Henriques Filho, 17ª Câmara Cível, j. 28/06/21)
15 TJRJ, Apelação n. 0006632-89.2019.8.19.0028, rel. Des. Celso Silva Filho, 23ª Câmara Cível, j. 13/07/2021: “Importante notar que as cláusulas contratuais foram redigidas pela PETROBRÁS – PETRÓLEO BRASILEIRO S.A., não havendo menção à remuneração parcial ou por diária, quando das medições de serviços ONSHORE. A interpretação dos negócios jurídicos deve ser a mais benéfica à parte que não redigiu as cláusulas, de acordo com a Lei n. 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que trouxe parâmetros interpretativos ao princípio da boa fé objetiva, de acordo com a norma contida no art. 113, § 1º, inciso IV, do Código Civil”. O Tribunal faz referência a doutrina de Flávio Tartuce que compara a regra criada pela LLE a dispositivos já existentes no CC relativos aos contratos por adesão. A regra de uma interpretação mais favorável ao aderente pode ser aplicada, de certa forma, aos negócios jurídicos paritários, desde que seja possível identificar que determinada cláusula do negócio foi imposta por uma das partes.
16 TJPR, Apelação 0014380-80.2019.8.16.0021, rel. Desª. Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes, 4ª Câmara Cível, j. 08/03/2021. No instrumento em questão não ficou claro se as partes estão firmando uma cessão de posse ou uma venda da propriedade do imóvel. Para interpretar o negócio, o Tribunal fez uso do inciso V para fazer uma interpretação do negócio jurídico “sob o prisma de qual seria a razoável negociação das partes, em virtude das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes”.
17 Apelação n. 1101879-63.2019.8.26.0100, rel. Desª. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara Cível, j. 26/02/2021: “Apelação. Ação de Cobrança cumulada com pedido de indenização por danos morais. Sentença de improcedência que não comporta reparos. Partes que celebraram acordo extrajudicial, devidamente orientadas por advogados, colocando fim à dívida. Conduta do autor, posteriormente ao negócio, que confirma a celebração e perfazimento deste. Inteligência do artigo 113, §º 1, inciso I, do Código Civil. Alegação de desistência posterior que viola a boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Sentença mantida. Recurso não provido”.
18 TJDF, Apelação n. 0716239-71.2020.8.07.0000, rel. Des. João Egmont, 2ª Turma Cível, j. 19/08/2020: o Tribunal faz referência ao artigo 421-A e 421 da LLE para afastar a possibilidade de intervenção judicial nos contratos de locação. Mesmo com a mora causada por medidas adotadas voltadas ao combate da COVID-19, o Tribunal entendeu que, caso interviesse nos contratos, estaria violando o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual estabelecidos pela LLE; TJPR, Agravo de instrumento n. 0045523-82.2021.8.16.0000, rel. Des. Hamilton Rafael Marins Schwartz, 4ª Câmara Cível, j. 28/11/2021: a Corte negou revisão de contrato de financiamento de veículo, postulado no contexto da pandemia, por entender que a interferência do judiciário deve ser mínima e que os contratos devem ser presumidos simétricos a partir da lógica criada pela Lei de Liberdade Econômica.