Contratualização na conjugalidade e a (im)possibilidade da dispensa dos alimentos

Tem sido lugar comum, com ênfase na referência aos escritos de Bauman1, a percepção de que as relações humanas progridem em flexibilidade, volatilidade e insegurança. Proliferam os relacionamentos efêmeros e em rede, via internet, quando comparados aos vínculos duradouros, presenciais e tradicionais.

Relações viram mercadorias, usualmente substituídas por modelos mais novos. Não se buscam ajustes; apenas substituições. Ao que parece, a geração fast food criou o fast love. Há uma modernidade líquida, atrelada a um amor, igualmente, líquido2.

A percepção da finitude da conjugalidade, aliado a uma cultura materialista, desemboca na busca de planejamentos familiares, visionando abrandar os efeitos de uma eventual dissolução afetiva.

Consortes, por vezes, não mais desejam uma conjugalidade standart, com regime de bens generalista, desprovido de direcionamentos pessoais e sem eficiente normatização aplicável a situações limite de dissolução afetiva.

Em uma leitura contratualizada, a customização conjugal afasta a equivocada moldura da conjugalidade como um negócio jurídico completamente vinculativo, de regras predeterminadas, assemelhado a um contrato por adesão. Conjugalidade não deve ser significada como camisa unissex e de tamanho único. Consortes querem adequar as suas necessidades nos enlaces conjugais.

Sem dúvidas, dentre os temas afetos a este cenário de customização conjugal, tem sido corriqueiro o debate sobre a (im)possibilidade de dispensa recíproca aos alimentos, devidamente clausulada em um pacto antenupcial ou em um contrato de convivência. Seria esta conduta juridicamente viável?

Nas pegadas dos artigos 1.566, III, e 1.724, ambos do Código Civil, há, dentre os deveres do casamento e da união estável, a noção de mútua assistência.

Historicamente o dever de mútua assistência remete ao mutuum adiutorium do direito canônico, sendo de altíssimo valor ético e dialogando com o elemento espiritual do vínculo da conjugalidade. Seu conteúdo diz respeito a ajudas e cuidados mútuos, com compartilhamento de alegrias, dores, adversidades, enfermidades…3.

A leitura da mútua assistência leva a verificação de seu aspecto material – de manutenção comum – e moral – de apoio recíproco. Trata-se de dever que se projeta para após o fim do vínculo conjugal e, por isso, não se confunde com o mero sustento do lar conjugal, o qual finda com o término do relacionamento4.

Traduz a mútua assistência, no seu aspecto material, não apenas obrigações de fazer, mas também o dever de socorro materializado na obrigação alimentar5. Já no viés moral, remete a reciprocidade de apoio moral, psicológico e espiritual.

Por ser uma decorrência da vida em comum, e dialogar com a subsistência, doutrina e jurisprudência entendem pela impossibilidade de dispensa antecipada da mútua assistência. Assim, tem-se como inviável a cláusula que, em pacto antenupcial ou em contrato de convivência, antecipadamente dispense a mútua assistência, com prévia renúncia aos alimentos.

O pensamento em questão, aponta Yussef Said Cahali6, decorre não apenas da análise dos deveres da conjugalidade, mas sim do próprio artigo 1.707 do Código Civil, que apoiado na tradição do artigo 404 do Código Civil anterior, firma a irrenunciabilidade do direito aos alimentos. Inviável, portanto, a renúncia aos alimentos futuros a que se faça jus, sendo apenas possível a renúncia ao exercício do direito de cobrança dos alimentos devidos e não prestados. 

A conclusão em tela decorre, inclusive, da percepção de que a fixação dos alimentos demanda análise da necessidade do credor no momento do pleito, não sendo possível renúncia prévia. Os princípios da dignidade humana e da proteção à família são imperativos e não poderiam ser afastados pela autonomia privada, notadamente de forma antecipada.

Além disso, alimentos remete a tema com viés também publicista, não condizente com uma mera leitura egoística-patrimonial, demandando do operador do direito enfoque de verdadeiro interesse público familiar. Justo por isso, arremata Yussef Said Cahali7, o direito de alimentos não por ser objeto de transação ou renúncia.

A simples cláusula de dispensa da mútua assistência, com renúncia antecipada aos alimentos, é nula, por constituir, a um só tempo, fraude a lei imperativa e ter objeto ilícito8.

Como bem obtempera Francisco José Cahali9, os alimentos são estipulados no Código Civil como questão de ordem pública. Inviável cláusula que tenha por escopo renunciar aos alimentos, a qual será ilícita e não produzirá efeitos. Igualmente entendem pela nulidade desta cláusula Flávio Tartuce10, Carlos Roberto Gonçalves11, Conrado Paulino da Rosa12, Maria Helena Diniz13, Francisco Cláudio Almeida Santos14 e tantos outros doutrinadores.

Não é outra a linha seguida pelo Superior Tribunal de Justiça:

Irrenunciabilidade, na constância do vínculo familiar, dos alimentos devidos. Tendo os conviventes estabelecido, no início da união estável, por escritura pública, a dispensa à assistência material mútua, a superveniência de moléstia grave na constância do relacionamento, reduzindo a capacidade laboral e comprometendo, ainda que temporariamente, a situação financeira de um deles, autoriza a fixação de alimentos após a dissolução da união.

REsp 1.178.233-RJ, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 9.12.14. 4ª T.

D’outra giro, indaga-se se ao revés de renúncia antecipada, poderiam os cônjuges fixar o montante da eventual pensão no momento da dissolução afetiva, bem como a possível transitoriedade dos alimentos. Seria viável?

A conduta não é inédita no cenário internacional, já tendo sido alvo de notícias da imprensa.

No pacto pré-nupcial entre a celebridade Khloé Kardashian e o jogador de basquete Lamar Odom, restou clausulada, para a hipótese de divórcio, que ele pagaria à ela uma pensão de 25 (vinte e cinco) mil dólares e uma mesada de 5 (cinco) mil para compras e mais 1 (hum) mil para tratamentos estéticos15.

E no Brasil, seria possível?

Neste caso, como é intuitivo, não estar-se-á a falar em renúncia aos alimentos, mas sim em sua fixação prévia e eventual transitoriedade. Trata-se de conduta viável no ordenamento jurídico nacional.

Como coloca Yussef Said Cahali16, embora a consagrada indisponibilidade do direito aos alimentos devidos por lei, tem-se por válidas as convenções estipuladas entre as partes, com o escopo de fixação da pensão, seja presente ou futura, e relacionada ao modo de sua prestação. 

Justo por isto, nada impede que se regule sobre o valor da prestação alimentar, negociando o seu aspecto patrimonial17, e/ou a sua duração no tempo, em vista do seu caráter transitório. A tese, registra-se, já fora acolhida pelo Tribunal de Justiça Gaúcho e Catarinense:

APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL NÃO CONFIGURADA. CASAMENTO POSTERIOR. PACTO ANTENUPCIAL QUE ADOTOU O REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS. ALIMENTOS. ESCRITURA PÚBLICA COM DISPOSIÇÃO ACERCA DE ALIMENTOS TEMPORÁRIOS À MULHER. HIGIDEZ DA DISPOSIÇÃO. ALIMENTOS AO FILHO. VALOR SUFICIENTE AO SUSTENTO DA CRIANÇA. DIFERENCIADAS POSSIBILIDADES DO GENITOR.

[…]

3. ALIMENTOS À MULHER. Pretende a autora que sejam estabelecidos alimentos em seu benefício tomando-se percentual de todas as rendas percebidas pelo varão, sem caráter de transitoriedade. Não há causa para o acolhimento de seu pedido, porquanto na referida escritura pública de pacto antenupcial os litigantes deliberaram que haveria o pagamento de pensão alimentícia para ela no valor de cinco salários mínimos por período não superior a cinco anos. Nada há nos autos para retirar da cláusula sua validade e eficácia, pois o documento foi firmado por pessoas maiores, capazes e no pleno exercício de sua autonomia de vontade, tratando de direito disponível. Tampouco prospera a alegação de nulidade por afronta à disposição absoluta de lei, qual seja o art. 1.694 do CCB. (Apelação Cível Nº 70054895271, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 01/08/2013)

TJ-RS – AC: 70054895271 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 01/08/2013, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 05/08/2013. Grifos.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL E PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA DE ALIMENTOS. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE CONCEDEU ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM FAVOR DA AUTORA. RECURSO DO RÉU. PLEITO DE MINORAÇÃO DA VERBA. QUANTIA DISPOSTA EM CONTRATO. PARTICULAR DE UNIÃO ESTÁVEL.  POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE E NECESSIDADE DA ALIMENTADA EVIDENCIADAS. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

TJSC, Agravo de Instrumento n. 0031788-33.2016.8.24.0000, de Itajaí, Rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, j. 17.1.2016. Grifos.

Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça, na Jurisprudência em Teses número 65, item 14, aduz que “os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por prazo determinado, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira”.

Do explicitado parece-nos que o pacto antenupcial e o contrato de convivência não podem dispensar os alimentos, com renúncia prévia, sob pena de nulidade da respectiva cláusula ou convenção. Entretanto, nada impede que haja regramento em relação ao quantum obrigacional e/ou transitoriedade, esta, inclusive, atrelada ao tempo de relacionamento, como bem coloca Luciana Faísca Nahas18.

Fabiana Domingues Cardoso19, na mesma linha, sufraga a possibilidade dos nubentes ajustarem parâmetros básicos para fixação dos alimentos em eventual rompimento conjugal, a exemplo de quantia mínima até a fixação judicial.

A premissa ganha cada vez mais adeptos, a exemplo de Conrado Paulino da Rosa20, e insere-se dentro dos limites da autonomia, que respeita a questão de ordem pública – caráter irrenunciável dos alimentos – e transaciona apenas sobre o seu aspecto patrimonial – valor e transitoriedade.

Por fim, recorda-se que no tema alimentos sempre será viável eventual ação revisional, inclusive para debater sobre o montante e/ou transitoriedade previamente fixada no pacto antenupcial ou no contrato de convivência. Isto, porém, não retirará a importância do regramento, o qual servirá como farol na eventual dissolução afetiva.


REFERÊNCIAS

1 BAUMAN, Z. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

2 BAUMAN, Z. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

3 GOMES, Orlando. Direito de Família. 14a Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 140.

4 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 147.  

5 Concordamos, no particular, com Pablo Stolze Gagliano e Rodolgo Pamplona Filho. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família. V. 6. 8 ed. Saraiva: São Paulo, 2018, p. 305. Discorda deste premissa Orlando Gomes, quem distinguem o dever de assistência do de socorro. Este, segundo o autor, materializa-se no dever de prestar alimentos e remete a um aspecto da eficácia econômica do casamento. GOMES, Orlando. Direito de Família. 14a Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 141.

6 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 51.

7 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 33-34.  

8 Na forma do artigo 166 do Código Civil.

9 CAHALI, Francisco José. Contrato de Convivência na União Estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 75.

10 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Direito de Família. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 169.

11 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 445.

12 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 7a Ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 246.

13 DINIZ, Maria Helena de. Curso de Direito Civil Brasileiro. V. v. 29a Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173.

14 SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. O pacto antenupcial e a autonomia privada. In: FERREIRA BASTOS, Eliene; SOUSA, Asiel Henrique de (Coords.). Família e jurisdição.Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 207.

15 Disponível aqui. Acesso em 09.12.2021.

16 CAHALI, Yusef Said. Dos Alimentos. 7a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 92.

17 NAHAS, Luciana Faísca. Pacto Antenupcial. O que pode e o que não pode constar? In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. DIAS, Maria Berenice (Coord.). Famílias e Sucessões: Polêmicas. Tendências e Inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 227.

18 NAHAS, Luciana Faísca. Pacto Antenupcial. O que pode e o que não pode constar? In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. DIAS, Maria Berenice (Coord.). Famílias e Sucessões: Polêmicas. Tendências e Inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018, p. 243. 

19 CARDOSO, Fabiana Domingues. Regime de Bens e Pacto Antenupcial.  Rio de Janeiro: Método/Gen, 2010, p. 168.

20 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 7a Ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 245.

Artigo também disponível no site do Migalhas. Acesse-o clicando aqui.

luciano.figueiredo
Advogado. Sócio do Luciano Figueiredo Advogados Associados. Doutor em Direito Civil (PUC-SP). Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Especialista em Direito do Estado (UFBA). Graduado em Direito (UNIFACS). Membro Fundador do IBDCont. Membro do IBDFAM. Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e do Complexo de Ensino Renato Saraiva. Professor Convidado de outros Cursos Jurídicos e Especializações. Palestrante. Autor de Artigos Científicos e Livros Jurídicos.
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