- Da ausência de regime legal do cartão de crédito no Brasil
De acordo com o último censo de 2022 divulgado pelo IBGE, a população total, no Brasil, atingiu a marca de 203 milhões de habitantes. Segundo os registros do Banco Central, existiam, emitidos e válidos, no último trimestre de 2022, um total de 208 milhões de cartões de crédito vinculados aos bancos brasileiros.1 Assim, em princípio, todo habitante do país é possuidor de um cartão de crédito, apesar de que só podem ser contratantes desses instrumentos de crédito pessoas maiores e capazes. Estamos diante, portanto, de um fenômeno que deve ser considerado como geral ou quase universal na sociedade brasileira: salvo raras exceções, todo cidadão capaz é contratante de cartão de crédito, hoje instalado no próprio aparelho celular.
Apesar da destacada relevância do cartão de crédito como um dos mais utilizados e importantes instrumentos de pagamento e de assunção de obrigações creditícias na civilização contemporânea, substituindo o dinheiro e os ancestrais títulos de crédito cartulares, em papel, até hoje o cartão de crédito, o novo dinheiro plástico, não foi objeto ou merecedor de regulação legal específica no direito brasileiro. Não existe nenhuma lei tipificando e disciplinando as operações físicas e eletrônicas, na internet, com cartões de crédito, com exceção da recente lei 14.181/21, que alterou o Código de Defesa do Consumidor.
Em qualquer país desenvolvido no mundo, as operações com cartões de crédito e débito são reguladas por lei. Na União Europeia, diversas diretivas do Parlamento e do Conselho estabelecem normas específicas para a regulação dos meios de pagamento com o uso de cartão de crédito (Diretiva 2007/64/CE, Diretiva 2008/48/CE, Diretiva 2011/83/EU e Regulamento (UE) 2015/751 do Parlamento Europeu). No direito contratual europeu, operação com cartão de crédito é a “operação de pagamento baseada em cartão cujo montante é debitado total ou parcialmente ao ordenante em data mensal específica previamente acordada, de acordo com uma facilidade de crédito preestabelecida, com ou sem juros”.2 A partir dessa definição, diversas regras amplas e detalhadas disciplinam os procedimentos e as obrigações das empresas operadoras e administradoras de cartões de crédito na sua relação com as empresas e com os consumidores e clientes dos bancos emissores.
Na legislação portuguesa, o cartão de crédito é operação financeira representada por um contrato de crédito, “pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante” (Decreto-lei 133/09).3 A regulação de Portugal dispõe sobre outras questões relevantes nas relações de crédito, como o fornecimento de informações pré-contratuais, assistência ao consumidor, dever de avaliar a solvabilidade do devedor, requisitos do contrato de crédito, renegociação do contrato, direito de livre revogação pelo consumidor, ultrapassagem de crédito, taxa anual de encargos efetiva global (TAEG) e proibição de aplicação de juros elevados, sob pena de usura.
Nos Estados Unidos da América, herdeiro fiel da tradição do capitalismo liberal de Adam Smith, as operações com cartão de crédito encontram-se reguladas, de modo específico e detalhado, no “Credit Card Accountability Responsibility and Disclosure Act of 2009”. Dentre as normas de proteção dos titulares de cartões de crédito, a lei americana obriga os bancos e empresas operadoras de cartões de crédito, no caso de aumento na taxa de juros aplicada, “fornecer aviso por escrito de aumento na taxa percentual anual, no prazo de 45 dias antes da data efetiva do aumento”.4
No Brasil, ao contrário, não existe obrigação de comunicação prévia ao titular de cartão quanto ao aumento das taxas anuais nos juros praticados, apesar desses juros serem os mais elevados do mundo, da ordem de 14,5% ao mês ou 447% ao ano, segundo o último dado constante dos registros do Banco Central.5 Não obstante tal exagero na fixação variável dos juros nas operações com cartões de crédito, a jurisprudência dominante não considera essas taxas abusivas, a partir do entendimento consolidado na Súmula 283 do Superior Tribunal de Justiça: “As empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura”.
Existem em tramitação no Congresso Nacional não apenas dezenas, mas centenas de projetos de lei, todos com a finalidade de regular as operações com cartões de crédito. Desde 1975, quando aqui se iniciava a utilização dos primeiros cartões de crédito, sob as bandeiras Diners e Credicard, o Instituto dos Advogados do Brasil, com a relatoria do jurista J.M. Othon Sidou, elaborou proposta de projeto de lei para a regulamentação dessas operações em nosso país. Em sua exposição de motivos, justificava a importância de proteção dos consumidores, advertindo que “já é tempo de dar-se um ponto final no crédito de confiança que as autoridades monetárias abriram às empresas responsáveis pelos cartões de crédito”, diante da “conhecida instabilidade no atinente aos cartões de crédito no Brasil”, e em face da necessidade de “proteger as empresas, aliviando-lhes dos custos e diminuindo-lhes os riscos, sempre às custas dos usuários”.6
Atualmente, segundo o próprio Banco Central do Brasil, a regulamentação dos cartões de crédito “se mostra importante em um contexto de uso crescente dos meios de pagamentos eletrônicos no país”.7 Todavia, tal regulação é estritamente infralegal, estando hoje em vigor a Resolução BCB 96/21, em que as operações com cartões de crédito encontram-se abrangidas nas disposições relativas à abertura, manutenção e encerramento de contas de pagamento bancárias. Nessa resolução, o cartão de crédito é denominado, tecnicamente, como “conta de pagamento pós-paga”, sendo aquela “destinada à execução de transações de pagamento que independem do aporte prévio de recursos” (Resolução BCB 96/2021, art. 3º, II). Ou seja, a disciplina do cartão de crédito no Brasil resume-se à relação entre o banco emissor e o cliente titular do cartão, não envolvendo a sistemática e os procedimentos da rede credenciada de fornecedores e da utilização do cartão de crédito nessa rede, tanto em operações físicas como eletrônicas. Esse regulamento, portanto, limita-se a estabelecer requisitos de informação a serem prestadas nos demonstrativos e faturas das contas de pagamento pós-paga e a definir critérios para a fixação dos limites de crédito do titular.
Essa regulação do cartão de crédito como mera conta de pagamento pós-paga, alinha-se com os conceitos e disposições da lei 12.865/13, que estabelece normas de funcionamento do Sistema de Pagamentos Brasileiro – SPB, em que o cartão de crédito é classificado como “instrumento de pagamento”, o qual significa, restritamente, “dispositivo ou conjunto de procedimentos acordado entre o usuário final e seu prestador de serviço de pagamento utilizado para iniciar uma transação de pagamento” (art. 6º, V).
- Natureza jurídica do cartão de crédito
A doutrina brasileira, salvo raras exceções, como Nelson Abrão, Fran Martins e Waldirio Bulgarelli, não se aprofundou em estudos sobre a sistemática e procedimentos adotados nas operações com cartões de crédito. Nos manuais e cursos de direito empresarial da atualidade, as operações com cartões de crédito sequer são referidas, apesar de sua relevância nos dias de hoje, em especial nas compras on-line na internet.
No conceito clássico de Patrick Chebrier, “cartão de crédito é o documento de identificação que individualiza o beneficiário de um serviço e garante que seu portador disponha de um crédito aberto pelo emissor”.8 A sua natureza seria, assim, mais próxima dos títulos de crédito. Fran Martins segue o mesmo entendimento e define o cartão de crédito como “documento de identificação do portador e ao mesmo tempo instrumento de pagamento em relação ao fornecedor”.9
Na realidade, o cartão de crédito abrange e compreende várias relações jurídicas, representadas, do modo bem assinalado por Nelson Abrão, como um feixe de contratos entre (i) o banco emissor e o titular; (ii) entre o emissor e o fornecedor; e (iii) entre o titular do cartão e o fornecedor.10 Nessa evolução descritiva, diante do aumento da complexidade de suas operações, o cartão de crédito assume nítida natureza contratual, como espécie de contrato financeiro ou bancário, mas que tem por utilidade principal servir como meio de pagamento na rede de fornecedores de produtos e serviços credenciada pelas principais empresas internacionais de serviços financeiros, das bandeiras Visa, Mastercard, Elo e American Express.
Para Waldirio Bulgarelli, o cartão de crédito representa “operação polifacética”, ou seja, compreende um negócio jurídico com várias facetas, integrado por “vários contratos que se desdobram entre os componentes do negócio, e unifica-se pela finalidade proposta: permitir que o consumidor adquira, de imediato, em determinados estabelecimentos, os bens e serviços que necessita”.11 Na opinião de Gerson Carlos Branco “o cartão de crédito constitui “típica relação contratual de massa, que substitui os padrões tradicionais da compra e venda por prestação de serviços no processo de aquisição de bens de consumo”.12 Podemos assim concluir, com esteio na lição de Eduardo Salomão Neto, que tal relação jurídica “resulta de um contrato, frequentemente de adesão, e seus principais elementos são a obrigação do emissor de manter-se filiado a sistema de cartão que possua rede de fornecedores credenciados e reembolsá-los de despesas feitas pelos usuários”.13
No contrato de adesão celebrado com instituição financeira, o titular do cartão de crédito está vinculado aos direitos e obrigações estipulados unilateralmente pelo emissor, o banco operador e credor. Todavia, como o usuário final e titular do cartão enquadra-se no conceito de consumidor, como assim definido pelo art. 2º da lei 8.078/90, aplica-se a toda e qualquer operação com cartão de crédito o enunciado da súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
- Riscos nas operações com cartão de crédito e responsabilidade objetiva do banco emissor
Na ausência de regulamentação legal aplicável às operações com cartão de crédito, a jurisprudência dos nossos tribunais vem assumindo, de modo impróprio, a função legislativa de definir o conceito, conteúdo e efeitos desse contrato atípico. Sem embargo, demonstra-se totalmente incompreensível e injustificável que não exista regulação em uma das modalidades contratuais, como o cartão de crédito, que mais demandam contestações, controvérsias e litígios nos órgãos de proteção de consumidor, na condição de líder absoluta, com 26,4% das reclamações formalizadas na Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça.14 Também no Poder Judiciário, o número de ações envolvendo bancos operadores de cartões de crédito predominam nas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça.15
Ocupando esse hiato normativo, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 479 da sua jurisprudência, ao estabelecer que, na análise de casos de fraude, “[a]s instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”. Na análise prática dos riscos gerados pelas operações com cartão de crédito, especialmente através da internet, Ênio Zuliani observou, com propriedade, que o cliente que teve o seu cartão de crédito clonado por um hacker que realizou compras fraudulentas, esse correntista “não poderá sofrer o desfalque da liberação dos créditos e que surgem no extrato de sua fatura”. Isso porque “o cliente não utilizou o cartão para compras ou pagamentos, tendo sido vítima de um criminoso que, com sua habilidade, fraudou o sistema de segurança bancário e deu golpes”. O banco responderá objetivamente, na forma da súmula 479, por ser esse caso típico de fortuito interno, ou seja, decorrente da própria atividade que cabia ao banco evitar”.16
Com anos de atraso, a lei 14.181/21, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, regulou, em boa hora, regime protetivo de prevenção e resolução do sério problema do superendividamento que hoje atinge, segundo levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) cerca de 40% da população, no expressivo número de mais de 60 milhões de brasileiros, a grande maioria em virtude de dívidas de cartão de crédito.17 As operações com cartão de crédito passaram a ser reconhecidas e consideradas, por força dessa nova lei, como negócio jurídico conexo, coligado ou interdependente do contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e com os contratos acessórios de crédito garantidores do financiamento bancário (art. 54-F).
Mais importante: a lei 14.181/21 proíbe o banco emissor do cartão de crédito de realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com o cartão, enquanto não for solucionada a controvérsia, cabendo ao titular notificar a administradora do cartão com antecedência de 10 dias do vencimento da fatura, vedada a repetição da cobrança na fatura seguinte (art. 54-G, I).
Além de descrever e tipificar a excludente de responsabilidade do titular do cartão de crédito no caso de fraude praticada mediante ardil, clonagem ou uso indevido do cartão, a nova lei consagrou, em definitivo, o entendimento jurisprudencial atributivo de responsabilidade objetiva da instituição financeira emissora do cartão de crédito pelas fraudes praticadas com o uso não autorizado do instrumento de pagamento por terceiros. Ao considerar o titular do cartão de crédito como consumidor, a jurisprudência dominante do STJ, na lição do Ministro Luís Felipe Salomão, consolidou o entendimento de que “[o] código consumerista introduziu novidade no ordenamento jurídico brasileiro, ao adotar a concepção objetiva do abuso do direito, que se traduz em uma cláusula geral de proteção da lealdade e da confiança nas relações jurídicas, prescindindo da verificação da intenção do agente – dolo ou culpa – para caracterização de uma conduta como abusiva (…) Não há que se perquirir sobre a existência de dolo ou culpa do fornecedor, mas, objetivamente, verificar se o engano/equívoco/erro na cobrança era ou não justificável”.18
Em conclusão, a lei 14.181/21, ao estabelecer mecanismo protetivo em favor do titular do cartão de crédito diante de ações fraudulentas, especialmente as praticadas on-line, na internet, consagrou e positivou as teses dominantes no Superior Tribunal de Justiça, de atribuição e assunção do risco objetivo pelos bancos emissores e instituições financeiras. Isso porque essas organizações são dotadas de maior e da mais especializada condição para prevenir e coibir, com seus recursos tecnológicos, acessos indevidos aos sistemas informatizados depositários dos dados dos cartões de crédito por ela administrados. Ocorrendo o vazamento dessas informações ou sua captura por terceiros não autorizados, devem as instituições financeiras emissoras responder e assumir, objetiva e integralmente, os riscos e prejuízos incidentes.
1 Banco Central do Brasil. Estatísticas do Sistema de Pagamentos Brasileiro. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estatisticas/spbadendos; Acesso em 05 jul 2023.
2 EUROLEX. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX: 32015R0751&from=CS; Acesso em 06 Jul 2023.
3 PORTUGAL. Decreto-Lei 133/2009. Disponível em: https://www.bportugal.pt/legislacao/ decreto-lei-no-1332009-de-2-de-junho; Acesso em 06 Jul 2023.
4 USA. 123 Statute 1734 Public Law 111-24-May 22, 2009 Public Law 111-24 111th Congress. Disponível em: https://uscode.house.gov/statutes/pl/111/24.pdf; Acesso em 06 Jul 2023.
5 Banco Central do Brasil. Estatísticas. Taxas de Juros. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/ estatisticas/txjuros. Acesso em 06 Jul 2023.
6 BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis. 10ª edição. São Paulo: Atlas, 1998, p. 659.
7 Banco Central do Brasil. BC aprimora normas para os cartões de crédito. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/546/noticia; Acesso em 06 Jul 2023.
8 CHABRIER, Patrick Grayll. Les cartes de crédit. Paris: Librairies Techniques, 1968, p. 108.
9 MARTINS, Fran. Cartões de crédito: Natureza Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 75-76.
10 ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 152-154.
11 BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis, cit., p. 671.
12 BRANCO, Gerson Carlos. O sistema contratual do cartão de crédito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 59.
13 SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 317-318.
14 Governo Federal. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional do Consumidor. Boletim Consumidor 2022, p. 7.
15 Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Relatório Justiça em números 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf; Acesso em 07 Jul 2023.
16 ZULIANI. Ênio Santarelli. Responsabilidade dos bancos diante da súmula 479 do STJ. Revista Eletrônica Migalhas. Disponível em: www.migalhas.com.br/depeso/161926/responsabilidade-dos-bancos-diante-da-sumula-479-do-stj; Acesso em 07 Jul 2023.
17 Senado Federal. Tribuna do Consumidor: superendividamento dos brasileiros. Disponível em https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2023/03/02/tribuna-do-consumidor-superendividamento-dos-brasileiros; Acesso em 07 Jul 2023.
18 STJ. Corte Especial. EAREsp 600.663/RS. Relator para acórdão Herman Benjamin. DJe 30/03/2021.
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