O “contrato” de trust e a MP 1.171/23

No dia 30 de abril de 2023, o marasmo dominical que antecedia o feriado do Dia do Trabalho foi interrompido pela publicação repentina da Medida Provisória 1.171/2023, a qual promoveu alterações substanciais no regime de tributação da renda auferida pelas pessoas físicas residentes no Brasil que possuem aplicações financeiras, entidades controladas e trust no exterior. O tema possui evidente importância e reflexos práticos, mas é certo que a discussão ganha contornos ainda mais sensíveis levando em conta que no contexto político contemporâneo de polarização ideológica, muitos brasileiros, temerosos com o panorama eleitoral, optaram por mitigar riscos financeiros investindo parte de seus recursos em países estrangeiros1.

É curioso notar que a maior parte da repercussão midiática da referida MP se limitou a comentar um aspecto: a elevação da faixa de isenção do Imposto de Renda das Pessoas Físicas a partir de 1º de maio de 2023, que passou de R$ 1.903,98 para R$ 2.112,002.

O valor da faixa de isenção não era reajustado desde 2015. A partir deste aumento, em 2023 a previsão é a de que o governo deixe de arrecadar R$ 3,2 bilhões, segundo estimativas do Ministério da Fazenda3. Naturalmente, o Estado não poderia simplesmente renunciar a tal numerário e foi necessário encontrar uma saída para recompor a receita. A solução criativa encontrada foi a de compensar tais perdas com o aumento da taxação de pessoas físicas residentes no Brasil que optam por investimentos em países estrangeiros.

As razões pelas quais uma pessoa decide enviar e manter recursos em outros países são diversas. Há quem busque maior rentabilidade, enquanto outros intencionam salvaguardar o patrimônio de riscos, diversificar a carteira de investimentos ou realizar planejamento tributário/sucessório mais refinado. Também, tem se tornado cada vez mais frequente o caso de famílias com um ou mais membros residindo em outros países (família internacionalizada). Nesse mesmo sentido, tem aumentado o contingente de pessoas que são residentes no Brasil, mas que prestam serviço em home office para empresas internacionais e recebem seus salários/pagamentos em contas bancárias registradas em outros países. Não é demais ressaltar que – desde que respeitadas as regras fiscais brasileiras – é absolutamente lícito enviar e manter dinheiro no exterior. Com o regime estabelecido pela MP n.º 1.171/2023, tais opções financeiras devem ser estudadas com maior cautela, exigindo reflexão e cálculos para verificar se a operação compensa.

No que concerne ao trust4, ele é tratado de forma específica no Capítulo IV, arts. 7º ao 9º da MP. A contemplação expressa no texto da MP por si só é algo digno de registro, uma vez que até então não havia um ato normativo que o definisse e o regulasse de modo abrangente. É bem verdade que a Instrução Normativa n.º 1.627/2016 da Receita Federal já havia estabelecido algumas orientações para a tributação de trusts, bem como a Solução de Consulta COSIT n.º 41/2020. Contudo, ambas não apresentam o grau de detalhamento presente na MP. Diante deste quase ineditismo, é evidente que o texto da MP ainda exige certos aprimoramentos, sobretudo diante da dificuldade inerente de compreensão do que é um trust, uma vez que ele não se confunde com nenhum outro instituto do direito brasileiro e é aberto conceitualmente em sua essência, podendo desempenhar diversas funções e assumindo diversas estruturas5.

Começando pelo final, no art. 9º é apresentada uma definição de trust. Neste ponto, pode-se pensar num aprimoramento do dispositivo, pois o instituto do trust é conceituado como “figura contratual”, quando, em realidade, em certas modalidades de instituição de trust, trata-se de negócio jurídico. Pode parecer preciosismo, mas esta imprecisão conceitual e categórica pode contribuir para  confusões perniciosas sobre quem são os sujeitos presentes em um trust e seus respectivos papéis6.

E, acerca das “partes” que compõem um trust, percebe-se que a MP claramente se inspirou na Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento (ainda que o Brasil não seja signatário) e dela tomou emprestada a noção de que um trust se caracteriza quando há uma relação jurídica estabelecida entre um instituidor (settlor), um administrador (trustee) e um beneficiário. Contudo, a Convenção captou melhor a real natureza jurídica do trust, deixando claro que ele pode ser criado por ato inter vivos ou causa mortis7. Além disso, partindo da premissa de que o trust é uma “concha hospitaleira”8, ao invés de o conceituar, tarefa que seria inexequível, a Convenção corretamente enumera as características nucleares de trust, principiando pela mais importante: que os bens objeto do trust configuram um patrimônio separado do patrimônio pessoal do trustee. Infelizmente, a MP não positivou esta relevante qualidade dos trusts. Além disso, não oferece distinção entre os trusts revogáveis e irrevogáveis. No caso dos últimos, o instituidor perde o controle sobre os bens e direitos objeto do trust, de modo que torná-lo responsável pela declaração e pelo recolhimento de tributos é inadequado, demonstrando falta de compreensão sobre como o instituto realmente funciona.

Uma opção acertada da MP foi a de empregar o termo “trust” em língua inglesa. Por mais que possa parecer um anglicismo, a tentativa de traduzir esse peculiar instituto poderia dificultar o entendimento sobre seu âmbito de aplicação. Não raro, o instituto é traduzido por expressões equivocadas, tais como “fundo fiduciário”, “truste”, sendo preferível o termo no original.

Por mais que legalmente ainda não seja prevista a criação de trusts no Brasil, há registros de negócios celebrados com esta finalidade (vide Recurso Especial n.º 1.438.142-SP, de relatoria do saudoso Min. Paulo de Tarso Sanseverino) e vários projetos de lei objetivaram a sua inclusão no ordenamento jurídico pátrio9. Outrossim, há institutos como o dos fundos patrimoniais previstos pela lei 13.800/2019, os quais têm por objetivo arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público. Eles configuram uma aproximação do direito brasileiro com os trusts, uma vez que são fruto do “transplante jurídico” dos trusts conhecidos como endowment funds.

No art. 8º, §1º, a MP determina que caso o titular de um trust já tenha o apresentado na sua declaração de IR, a partir de agora deverá informar os bens e direitos contemplados por tal trust e qual foi o seu custo de aquisição. Ora, ainda que o trust seja um ente não personificado, tal exigência denota uma desconsideração de seu modo de funcionamento, enquanto arranjo patrimonial10. Outrossim, o art. 2º da MP elevou consideravelmente as alíquotas aplicáveis, alterando sensivelmente a obrigação tributária dos contribuintes que se encaixam nesta hipótese.

É bem verdade que o trust pode ser usado para fins ilícitos e que isso deve ser energicamente reprimido em nosso país. Porém, não se pode ceder a este tipo de argumento retórico para sufocar o instituto. A verdade é que qualquer instituto jurídico pode ser anteparo para fins ilegais, até mesmo figuras seculares e comuns, como um contrato de doação. Assim, casos isolados e excepcionais que possam configurar fraude devem ser tratados com todo o rigor.

Ainda que sejam recomendados aprimoramentos, a MP tem um grande mérito: é mais um ato normativo que reconhece e regulamenta a existência dos trusts. Ao tratar do instituto, a MP o reconhece como modelo de utilização global, inclusive por brasileiros aqui residentes, e torna mais evidentes quais são as regras do jogo. Espera-se que o regramento mais minucioso sobre os trusts oferecido pela MP (que possivelmente será convertida em Lei) possa contribuir para um olhar menos pejorativo aos trusts e mais aberto para suas potencialidades, de modo que em breve possa ser definitivamente incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro.


1 Ver aqui. Acesso em: 30/05/2023.

2 Conforme o §2º do art. 14, é possível ainda deduzir R$ 528,00, de modo que o valor de isenção passa a ser R$ 2.640,00, que atualmente corresponde a 2 salários mínimos.

3 Com a medida, o governo projeta, ainda, redução de arrecadação de R$ 5,88 bilhões em 2024 e de R$ 6,27 bilhões em 2025. Disponível aqui. Acesso em 30/05/2023.

4 Importante esclarecer que não existe um modelo único de trust, mas sim diversos. Sendo assim, o mais correto seria utilizar o termo no plural, isto é “os trusts“. Contudo, para fins de maior clareza na redação do texto e para que ele esteja em harmonia com a opção utilizada na MP n.º 1.171/2023, será utilizada neste artigo também a expressão no singular.

5 O trust surgiu no contexto histórico peculiar da Inglaterra do século XI, após a conquista normanda. Este ponto foi tratado com mais profundidade em: XAVIER, Luciana Pedroso. Os trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 31 e seguintes.

6 Acerca da categoria do Negócio Jurídico, adota-se a perspectiva de Marcos Bernardes de Mello (Teoria do fato jurídico – plano da existência. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 245).

7 Art. 2º da Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento.

8 Sagaz expressão utilizada por Camille Jauffret-Spinosi ao se referir ao trust e à dificuldade em defini-lo: La Convention de la Haye relative à la loi applicable au trust et à sa reconnaissance (1er juillet 1985). Journal du Droit International, n.1, p. 23, 25, 1987.

9 Vide, por exemplo, a tramitação no Senado do Projeto de Lei n.º 4.758/2020, que prevê a regulamentação do “Contrato de Fidúcia”. Ainda que o nome seja diverso, há grande semelhança com a relação jurídica estabelecida por um trust. Além disso, tramita na Câmara dos Deputados o PLP n.º 145/2022, que dispo~e sobre a lei aplica’vel ao trust, sua efica’cia e seu tratamento tributário no Brasil.

10 Em vez de declarar a existência do trust, é preciso apontar todos os bens, aplicações, pessoas jurídicas, imóveis, etc. que são por ele “controlados”. Há a opção ao contribuinte, prevista no capítulo V da MP, de atualizar o valor dos bens e direitos no exterior que constaram na sua declaração de IR para o valor de mercado em 31 de dezembro de 2022, de modo que será tributado apenas em 10% a diferença em relação ao custo de aquisição. A depender da situação, esta possibilidade pode ser bem vantajosa, pois em certos casos pode ser aplicada alíquota de 22,5%.

Este artigo também foi publicado no Migalhas. É possível acessá-lo clicando aqui.

Luciana Pedroso Xavier
Professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora e Mestre em Direito pela UFPR. Advogada sócia da P.X Advogados.
Artigos criados 1

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo