No Brasil, segundo o Mapa de Empresas divulgado pelo Governo Federal, no último quadrimestre de 2022, 92,32% das sociedades empresárias brasileiras respondem pelo tipo societário limitado, o que faz com que as avenças empresariais ocorram, quase que de forma unânime, através dos contratos sociais, constituindo este importante objeto de análise.
Enquanto sociedades limitadas, as empresas brasileiras são norteadas pelo estruturante elemento da affectio societatis, o que faz com que as relações familiares dos sócios gerem repercussões diretas na esfera empresarial. Em razão de tal elemento, o cônjuge/companheiro meeiro e herdeiros, em regra, não ingressam na empresa, quando do divórcio/dissolução da união estável, ou da morte do sócio, concretizando o brocado latim socci non socici esteo.
Com isso, possuindo tais pessoas direito ao valor econômico das quotas empresariais, nasce o conflito entre a preservação da empresa, com fundamento em sua função social, já que para o pagamento do valor a que fazem jus os impedidos de entrarem na sociedade, pode ocorrer um desinvestimento na empresa (dissolução parcial da sociedade empresarial); e o direito da livre associação em adição ao direito de propriedade, de tais membros impedidos.
Neste contexto, quando o evento ocorrido compreende a morte de um dos sócios, o art. 1.028 do Código Civil, não gera dúvidas quanto à possibilidade imediata de dissolução parcial da empresa, assim como a data base para a apuração dos haveres: o momento em que ocorreu a abertura da sucessão.
Portanto, nesta situação, a controvérsia remanesce quanto ao critério de apuração dos haveres e o modo de seu pagamento, instabilidades que afetam de sobremaneira a empresa, já que no silêncio do contrato social, aplicam-se as regras do Código Civil, onde o método de apuração será o Balanço de Determinação, conforme dispositivo no artigo 606 do Código de Processo Civil, posição ratificada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do Recurso Especial 1.877.331/SP1, no qual há referência a julgados bastante antigos, demonstrado ser esta a posição consolidada do Colendo Tribunal; garantida a escolha de método diverso, desde que esta seja de forma expressa, conforme decisão proferida no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.334.975/SP2.
Ocorre que, nem sempre tal método de fato reflete o real valor econômico da sociedade empresária, especialmente para os negócios que pouco possuem ativos imobilizados, a exemplo das sociedades de tecnologia e sociedades de advogados.
Além de tal incongruência, ausente disposição em sentido diverso no contrato social, nos termos do art. 1.031, §2º do Código Civil, os haveres apurados devem ser pagos em dinheiro, dentro do prazo de 90 dias.
Trazendo tais instabilidades a concreta realidade brasileira, tem-se que, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – 98,83% das sociedades empresárias verdes e amarelas são micro e pequenas empresas, o que significa ínfima possibilidade de previsão diversa em seus contratos sociais, fato que, combinado com a ausência de grande número de sócios em tais sociedades, leva à quebra da empresa, as quais, somadas, respondem pela geração de 30% do Produto Interno Bruto Brasileiro e 50% da mão de obra no país, dimensionando desta forma o impacto de tais instabilidades.
Tal situação se agrava ainda mais, quando o evento ocorrido se encontra no divórcio ou na dissolução da união estável de um dos sócios. Neste caso, além das instabilidades acima relatadas, há sérias e importantes controvérsias quanto a possibilidade de dissolução parcial imediata da empresa para pagamento da meação do ex-cônjuge/companheiro, a natureza do pagamento dos lucros que devem ocorrer até a dissolução total da empresa, a própria data de apuração dos haveres, além da possibilidade de opor a estas pessoas impedidas de entrarem na sociedade empresária, as avenças constantes no próprio contrato social.
Deste modo, os deletérios efeitos das instabilidades se multiplicam de sobremaneira quando o rompimento da relação de conjugalidade do sócio ocorre durante a vida dos consortes.
Neste sentido, quanto a possibilidade de dissolução parcial imediata da sociedade empresária em caso de divórcio/dissolução de união estável do sócio, para pagamento do valor econômico das quotas societárias correspondente a meação, a interpretação do art. 1.027 do Código Civil, tem sido no sentido de que não é possível tal dissolução, cabendo ao meeiro impedido o recebimento de lucros proporcionais da referida sociedade, até que esta seja dissolvida integralmente.
Sob este aspecto, aparentemente há um conflito entre a preservação da empresa, no viés do cumprimento de sua função social, e o direito à livre associação do ex-cônjuge/companheiro, assim como seu direito de propriedade, pois, à primeira vista, parece que estes ficam acorrentados a empresa do ex-consorte, até que esta seja extinta, data completamente imprevisível, já que as pessoas jurídicas são ficção jurídica que objetivam a perpetuidade.
Neste contexto, parte da doutrina e da jurisprudência entende que tais lucros serão pagos até a dissolução integral da empresa, momento em que o ex-cônjuge/companheiro receberá o valor econômico das quotas a que faz jus, a exemplo do Recurso Especial 1.537.107/PR3, que inclusive determina que a data de apuração dos haveres é a da própria partilha, e não da separação de fato.
No entanto, verificando a questão sob as lentes do direito de família, observa-se que, de acordo com o art. 1.571 do Código Civil, lido conforme entendimento majoritário de que não há mais no ordenamento jurídico brasileiro separação judicial, a comunicabilidade promovida pelo regime de bens encerra-se com a separação de fato, posição ratificada na Decisão Monocrática proferida no Agravo em Recurso Especial 1.499.914/SC.4
Portanto, no momento da separação de fato encerra-se a participação do ex-cônjuge/companheiro na sociedade empresária que possui meação, passando este a ocupar a posição de credor particular do sócio que era seu consorte, e por isso, a ser aplicado o regime jurídico disposto pelo art. 1.026 do Código Civil, o que faz com que os lucros que serão pagos em seu favor tenham o condão de amortização do valor econômico de direito daquele que se divorciou ou dissolveu a união estável com um dos sócios.
Insta consignar que, além de tal posicionamento estar de acordo com o regime jurídico aplicável nas relações de família, sob a ótica dos regimes de bens que geram comunicabilidades, este acaba sendo um entendimento mais protetivo àqueles que possuem valores a receber da sociedade, já que não ficam expostos ao risco do negócio operado pelo ex-consorte, assim como mais justo ao ex-parceiro que permanece na sociedade empresária, já que após a separação de fato não há mais esforço comum na construção do patrimônio.
Por fim, ainda há controvérsia quanto a possibilidade de aplicar as avenças constantes no contrato social, quando existentes, quanto a apuração de haveres e forma de pagamento destes, ao ex-cônjuge/companheiro não sócio direito da sociedade empresária, assim como em relação a possibilidade de fiscalização e pedido de prestação de contas da empresa, por estes.
Neste sentido, a jurisprudência não apresenta coerência, uma vez que por um lado, admite a fiscalização e o pedido de prestação de contas pelo ex-cônjuge/companheiro meeiro não sócio da empresa, a exemplo do Recurso Especial 1.924.301/SP5, mas por outro, entende pela impossibilidade de oposição das avenças constantes no contrato social a estes, já que terceiro, como reconhece o Recurso Especial 1.531.288/RS6.
Tais instabilidades afeitas ao universo empresarial alcançam patamar extremamente crítico, quando somadas as incertezas derivadas do direito de família e das sucessões.
No que diz respeito ao âmbito da família, a maior gravidade encontra-se no instituto da união estável, já que enquanto ato-fato jurídico, tal interpretação também objeto de controvérsia, mas de entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência, a exemplo do Recurso Especial 1.761.881/MS7; não resta necessário que os envolvidos queiram estar em união estável, mas que apenas sejam perfeitos os requisitos constantes no art. 1.723 do Código Civil, onde o ânimo de constituir família é aferido pela sociedade, e não por aqueles que estão efetivamente se relacionando.
Com isto, não se sabe ao certo se está se vivendo uma relação de conjugalidade, ou apenas um namoro, já que a diferenciação entre tais relações é bastante tênue: intenção imediata ou futura de constituir família?
Não bastasse tal incerteza, a interpretação atual da doutrina e da jurisprudência impossibilita a mitigação dos efeitos patrimoniais gerados pelo “efeito surpresa” da relação de conjugalidade, ao vedar a retroatividade do regime de bens a ser pactuado entre os companheiros, a exemplo do Recurso Especial 1.383.624/MG8.
Quanto ao casamento, e neste contexto também a união estável após a declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, pelo Recurso Extraordinário 878.694/MG9, a celeuma advém dos direitos sucessórios do cônjuge/companheiro em descompasso com os anseios sociais.
Isto ocorre porque, embora os tempos atuais sejam de plena dissolubilidade do casamento, e haja fugacidade das relações na líquida sociedade liquida de Zygmunt Bauman, o Código Civil de 2022 rumou em sentido contrário, auferindo direitos sucessórios permanentes aos cônjuges, e agora também aos companheiros, através da criação do direito concorrencial deste com descendentes e ascendentes , conforme dispõe o art. 1.829 do Código Civil, assim como conferiu ao cônjuge (quanto ao companheiro pendem importantes controvérsias doutrinárias) o status de herdeiro necessário, a luz do art. 1.845 do referido diploma legal, quando no Código Civil anterior, quando estes não possuíam tal posição, mas somente faziam jus ao usufruto vidual e ao direito de habitação, nos termos do art. 1.611, parágrafos primeiro e segundo, do Código Civil de 1916, direitos estes apenas temporários.
Somada a esta inconsistência entre os anseios sociais e as normas sucessórias, tem-se hoje entendimento majoritário da doutrina (outra questão de intensa controvérsia), de que não é possível a renúncia antecipada dos atuais direitos sucessórios conferidos ao cônjuge/companheiro, a exemplo do Recurso especial 1.142.945/RJ10, quanto à renúncia concorrencial, e do Recurso Especial 1.433.650/GO11, quanto a herança propriamente dita. Com isto os indesejáveis direitos sucessórios tornam-se uma realidade inafastável.
Frente a este cenário, o mercado, de forma caótica e desordenada, buscou suas próprias saídas, estas concentradas no movimento de pejotização das relações de família, sítio onde ocorre a migração de um ambiente de forte incidência do princípio da solidariedade, base das normas de ordem pública de família e sucessões, para um ambiente de prevalência da autonomia privada, qual seja, o ambiente societário.
Com isto, ao migrarem para o ambiente empresarial, as regras a vigerem para a família em questão passam a ser as constantes no contrato social, o qual pode organizar com muito mais elasticidade de menos controles aquilo que atenda a vontade dos envolvidos, que deixam de ser família e passam a serem sócios, com a presunção de uma relação de paridade, o que não ocorre com as relações familiares, que são, em grande maioria, ainda relações desiguais, demandando por isso tutela dos vulneráveis nela existente.
Além da pejotização das relações de família fragilizar a tutela dos vulneráveis, tal prática promove solo fértil para a perpetração de fraudes, pois através de manobras financeiras e negociais é possível esvaziar o balanço de uma empresa, promovendo inclusive a migração da lucratividade para empresa cujos sócios são as pessoas que o autor da herança deseja beneficiar, ao arrepio da reserva da legitima, e com isto facilmente violar meações e direitos hereditários.
Trazendo tal realidade para a perspectiva de gênero, nos termos da Recomendação 128 do Conselho Nacional de Justiça, emitida em 15 de fevereiro de 2022, tem-se que a pejotização das relações de família incrementam a vulnerabilidade de gênero, já que na sociedade brasileira a mulher ainda é o membro mais vulnerável, posto que ainda vivemos sob a égide sexista dos séculos anteriores, presentes, ainda que de modo escamoteado, no microssistema nacional. Tal realidade é perceptível de modo claro quando se verificam os dados aferidos pelo IBGE no ano de 202112.
Segundo tais dados, no mercado de trabalho, recorte diretamente relacionado a pejotização das relações de família, do exército de pessoas desempregadas, 53,72% são do gênero feminino, percentual que em números absolutos corresponde a quase oito milhões de mulheres.
Quando a ótica de análise diz respeito as pessoas efetivamente ocupadas no Brasil, tal ocupação sob o prisma das atividades informais, são exercidas por 50,59% de pessoas do gênero feminino, nicho onde o rendimento médio do trabalho informal corresponde a menos que a metade do obtido pelo exercício de atividades de modo formal.
Tal perspectiva desfavorável de repete quanto as atividades formais exercidas por mulheres, onde constata-se que 55,58% destas estão alocadas em subocupações, ou seja, mais da metade das vagas a atividade a ser desenvolvida está abaixo de sua capacidade laboral.
Migrando a análise dos dados para a espécie de atividade desenvolvida, na triangulação empregado, empregado doméstico e empregador, a intensa desigualdade de gênero torna-se ainda mais nítida.
O labor na posição de empregado representa a maioria das relações de trabalho no Brasil, respondendo por 53% da mão de obra ocupada. Dentro deste cenário, quanto aos empregos formais, 60,15% são ocupados por homens, o que relega as mulheres somente 39,85% dos empregos com proteção das leis trabalhistas e maior estabilidade.
Tal perspectiva torna-se ainda mais grave, quando se verifica o trabalho doméstico. Embora tal relação de trabalho corresponda apenas a 6% das pessoas ocupadas, dentro deste nicho, 92% dos trabalhadores são do gênero feminino e 93% destas exercem suas funções de modo informal.
De modo coerente, no vértice oposto, quando o parâmetro de análise passa a ser o empregador, 72,19% destes são homens, o que faz com que somente 27,81% das mulheres ocupem esta posição. Note-se que, além de tais números demonstrarem por si só a intensidade da desigualdade de gênero no mercado de trabalho, a ampla maioria masculina na posição de empregador muito diz sobre o agravamento de tal desigualdade de gênero promovida pela pejotização das relações de família, já que tais sociedades empresárias são nitidamente de empregadores.
Por fim, o último parâmetro que faz com que não pendam dúvidas quanto à ampla desigualdade de gênero no mercado de trabalho, diz respeito aos rendimentos médios auferidos pelas pessoas ocupadas no Brasil.
De modo geral, os indicadores sociais levantados pelo IBGE em 2021, apontam que as mulheres recebem, em média, 30% menos que os homens. Tal diferença aumenta, quanto maior for o cargo ocupado, alcançando 61,64% para os cargos de gerência e diretoria, números estes que mais uma vez guardam forte relação com o movimento de pejotização em análise.
Deste modo, restam correlacionadas as instabilidades advindas da dinâmica empresarial, que somadas com derivadas das relações de família e sucessões, levam ao caótico e desordenado movimento de pejotização das relações de família que tem sido observado de modo empiricamente, hoje em escala crescente; com fundamento em contratos sociais, já que a maioria das sociedades empresárias brasileiras são limitadas, desencadeando o aumento da desigualdade de gênero, pois ao pejotizar as relações de família ocorre o incremento da vulnerabilidade pelo fato de que no ambiente empresarial prevalece a autonomia privada e presume-se que as relações são paritárias, não havendo a necessária proteção aos membros vulneráveis, hoje, em virtude de herança histórica e de injustiças instituídas não debeladas, ainda a mulher.
1 STJ, Recurso Especial 1.877.331/SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 13/4/21, DJE. 14/3/21
2 STJ, AgInt no AREsp 1.334.975/SP, Quarta Turma, Relator Ministro Luiz Felipe Salomão, julgado em 19/4/21, DJe. 26/4/21
3 STJ, REsp 1.537.107/PR, Terceira Turma, Reatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 17/11/16, DJe. 25/11/16
4 STJ, Decisão monocrática no AREsp 1.499.914/SC, proferida pelo Ministro Marcos Buzzi em 18/8/19
5 STJ, REsp 1.924.501/SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 26/4/22, DJe. 28/4/22
6 STJ, REsp 1.531.288/RS, Terceira Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellize, julgado em 24/11/15, DJe. 17/12/15.
7 STJ. REsp 1.761.887/MS, Quarta Turma. Relator Ministro Luiz Felipe Salomão, julgado em 6/8/19.
8 STJ, REsp 1.383.624/MG, Terceira Turma, Relator Ministro Moura Ribeiro, julgado em 2/6/15
9 STF. RE 878.694, Tribunal Pleno. Relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 10/5/17
10 STJ, Resp 1.142.945/RJ, Terceira Turma, Relator Ministro Ricardo Villas Boas Cuerva, julgado em 7/10/14
11 STJ, Resp 1.433.650/GO, Quarta Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 19/11/19
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