A importância da contratualização dos negócios em rede no contexto da pandemia do Covid-19

Texto de autoria de Raif Daher Hardman de Figueiredo e Arnaldo Rizzardo Filho

A pandemia do Novo Coronavírus, com status mundial reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em 20 de março de 2020, causou impactos econômicos estrondosos na economia mundial e brasileira. De acordo com o IBGE, o Brasil encerrou o segundo semestre de 2020 com 7,8 milhões de postos de empregos formais aniquilados e com 1,3 milhões de empresas fechadas, sendo que 40% dessas empresas foram fechadas em razão da crise econômica gerada pela pandemia do covid-19. No mês de junho de 2020, em comparação a maio do mesmo ano, houve um aumento de mais de 80% nos pedidos de recuperação judicial e 28% dos pedidos de falência. Ainda não é possível prever a totalidade dos efeitos negativos decorrentes da pandemia.

A crise econômica atingiu todo mercado desde empresas locais até multinacionais com a redução generalizada da demanda. O impacto negativo é sentido com mais gravidade pelas empresas de micro e pequeno porte, seja pela menor reserva de caixa, seja pela maior dificuldade de acesso ao crédito. Desde o início da pandemia, o Estado-juiz tem sido instado a se manifestar sobre revisões contratuais, suspensão de pagamentos e redução de aluguéis comerciais, inclusive em shopping center.

Naturalmente, a crise econômica não poupou redes de franquias (ou outros negócios em rede), atingindo franqueadores e franqueados. Assim como o valor dos aluguéis nos contratos de locação, os royalties e as taxas de marketing nos contratos de franquia muitas vezes necessitam ser renegociados para não haver uma “quebradeira” geral da rede. Com efeito, a renegociação tem sido o mandamento da vez para atenuar os impactos da crise.

Ainda que o cenário seja desolador, há esperanças de que o pós-pandemia seja contemplado com o aumento do mercado de franquias. Isso porque parte considerável das pessoas atingidas pelo desemprego e pela dificuldade de recolocação no mercado formal de trabalho vê-se obrigada a iniciar de um negócio próprio para garantir seu sustento e de sua família.

E nessa esteira, aderir a uma rede de franquias significa maior segurança de ingressar em um negócio, em tese, testado e aprovado pelo consumidor, com amparo de um franqueador com largo know-how naquele mercado. Aliado a isso, tem-se a própria força da rede de franquias e da marca. As estatísticas apontam para uma menor mortalidade de empresas franqueadas nos primeiros cinco anos de atividade em relação às empresas que atuam individualmente.

A ciência da administração tem nos alertado que negócios em rede, como agências, distribuições, franquias, associações comerciais e redes atípicas (plataformas digitais, por exemplo) têm a tendência de aumentarem durante períodos de crise econômica.

Os negócios em rede são soluções intermediária entre a integração vertical (sociedade) e o livre mercado. Atores econômicos formam coletividades que operam de forma coordenada e cooperada, sem relação de sociedade, e sem competirem entre si (e é por isso que seus ambientes diferem do livre mercado). No caso das redes de franquia Subway e McDonald’s, são mais de 40.000 franqueados que a partir de contratos comerciais (contrato de franquia) aderem (contrato comercial “de adesão”) às respectivas redes através de contratos de “gaveta”. E o mesmo se dá com a plataforma Uber, por exemplo, onde mais de 1.000.000 motorista aderem à plataforma por contratos eletrônicos de “gaveta” (frise-se que recentemente o TST decisiu que a relação contratual da Uber com seus motoristas não é de emprego. Crê-se que a mesma decisão será tomada em relação à Rappi e à Loggi).

Neste artigo pretendemos chamar a atenção para a necessidade de contratualização e regulamentação dos negócios em rede. E, mais, pretendemos chamar a atenção para o fato de que o momento é oportuno, pelo menos por duas razões: (i) entrada em vigor da nova lei de franquia (lei 13.966/19) em 27 de março de 2020 e (ii) o momento é de planejar o pós-pandemia e organizar a casa.

Atualmente, os contratos em rede são interpretados com base no princípio da boa-fé objetiva ampliada, assim como se tem ocorrido com contratos cativos, contratos de longa duração e contratos relacionais. É bem verdade que em tais contratos a relação diuturna entre as partes é capaz de gerar deveres e obrigações entre as partes, conforme se depreende da conceituação de contratos de longa duração por Ricardo Lorenzetti em seu tratado dos contratos.

O comportamento das partes é mais importante do que aquilo que está ‘positivado no instrumento contratual. Não estamos questionando essa afirmação. Porém, parece-nos necessária o estabelecimento de regras estruturais para definir funções e papéis no bojo da rede, evitando conflitos entre os seus componentes.

Nessa trilha, é importante situar os contratos em rede como contratos híbridos. Ficam no meio do caminho entre o mercado (livre concorrência) e a empresa (hierarquia). Nos contratos em rede, várias empresas independentes se reúnem em prol de um objetivo comum. A rede, contudo, não pode ser “descordenada”. Precisa ter uma liderança, que pode ser exercida em conjunto por todos os seus membros ou isoladamente por um deles. No caso da franquia, a liderança é exercida pelo franqueador.

Ainda nesse contexto, é interessante observar que as relações no livre mercado são regulamentadas por contratos, mas na falta de previsão contratual, o Código Civil ou, ainda, a lei específica para os contratos nominados, encarrega-se de regulamentar os deveres e obrigações das partes ou suprir lacunas. No caso das relações hierárquicas, embora existam os atos constitutivos da empresa, há inúmeras previsões de regulamentação estrutural da empresa tanto no Código Civil quanto na lei das sociedades por ação e na legislação esparça.

O fenômeno da rede, embora seja econômico e não propriamente jurídico, carece de atenção do jurista porquanto é uma realidade crescente e potencial e efetivamente geradora de conflitos que desembocam na seara jurídica. No mundo dos fatos, vemos que as redes de franquias, e outras redes de empresas, raramente possuem uma regulamentação formal estrutural. Ou seja, raramente possuem um instrumento constitutivo com o estabelecimento de regras para convocação de reuniões ou assembleias, tomada de decisões e quórum de votação, regras sobre ingresso e retirada de membros, estabelecimento de normas, planejamento de estratégias de marketing, política de mercado internacional, divisão de responsabilidades, incorporação de novas tecnologias e regência da concorrência entre os membros da rede.

Defendemos, portanto, a necessidade de organização estrutural dos negócios em rede como forma preventiva de conflitos entre seus membros. No caso do contrato de franquia, a função diretiva e coordenadora é assumida pelo franqueador, que deve ser o responsável pela sistematização, formatação e organização da rede.

Dizemos que o momento é oportuno para a organização porque com a redução da carga operacional em razão do isolamento social decorrente da pandemia do novo coronavirus, embora com efeitos preponderantemente negativos, pode deixar os gestores/franqueadores com mais liberdade para organizar a estrutura da sua rede e se preparar para o período pós-pandemia, inclusive com a recepção de novo franqueados. A organização da rede além de prevenir conflitos internos, facilita criação de uma governança sustentável e aberta aos interessados.

Temos, ainda, a entrada em vigor da lei 13.966/19 em março deste ano, que gera a necessidade de atualização da Circular de Oferta de Franquia em razão da inclusão de novos requisitos mínimos no seu conteúdo. A própria necessidade de revisitação do instrumento de disclosure da franquia já seria um motivo para a criação de regras estruturais. Mas, tem mais. Não obstante a nova lei de franquia tenha, de fato, deixado a desejar no estabelecimento de regras para os contratos de franquia, acabou por incentivar a criação de regras estruturais, conforme se depreende, por exemplo, do art. 2º, XI, “c”, que determina que a franqueadora anuncie a existência ou não de “regras de concorrência territorial entre unidades próprias e franqueadas” e do art. 2º, XX, que determina a “indicação de existência de conselho ou associação de franqueados, com as atribuições, os poderes e os mecanismos de representação perante o franqueados, e detalhamento das competência para gestão e fiscalização da apliacação dos recursos de fundos existentes”.

Reiteramos, portanto, que a contratualização dos negócios em rede é imprescindível para a sua manutenção saudável no mercado, salientando que o momento vivido, embora tenha aspectos preponderantemente negativos para a economia, é apropriado para se pensar na (re)estruturação das redes de empresas. Finalmente, alertamos que, no contexto de rede, contratualizar significa muito mais que no contexto das contratações lineares (compra e venda e prestação de serviço). É a partir da contratualização que se faz a devida governaça do ente coletivo (a rede), segundo os parâmetros constitucionais do nosso país.

*Raif Daher Hardman de Figueiredo é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduado em Direito dos Contratos pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Associado do IBDCont. Advogado.

*Arnaldo Rizzardo Filho é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Advogado, professor e autor.

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