Desconsideração Da Personalidade Jurídica E Função Social Do Contrato
No último dia 30 de abril de 2019, foi assinada, pelo Presidente da República, a Medida Provisória n. 881, que “institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras providências”. Em apertada síntese, trata-se do que já se denomina “MP da Liberdade Econômica”.
Não se pode negar que a Medida Provisória traz propostas importantes para a sociedade brasileira, como a facilitação de práticas e a redução de burocracias para o estabelecimento de negócios no País, das mais diversas naturezas de cunho privado, premissas que defendo há tempos. Tanto isso é verdade que fiz sugestões à assessoria do Senado Federal para os projetos de lei oriundos da Comissão Mista da Desburocratização, atualmente em trâmite no Congresso Nacional (PL n. 9.494/2018, PL n. 9.495/2018, PL n. 9.496/2018, PL n. 9.497/2018, PL n. 9.498/2018, PL n. 9.499/2018, PL n. 9.500/2018, PL n. 9.501/2018, PL n. 9.502/2018, PL n. 9.503/2018, PL n. 9.504/2018, PL n. 9.505/2018, PL n. 9.506/2018, PL n. 9.507/2018 e PL n. 9.508/2018).
Também entendo como louvável a expressa presunção de boa-fé do particular em suas negociações, como se retira do art. 2º da MP, segundo o qual “são princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória: (…). II – a presunção de boa-fé do particular”. No mesmo sentido, merece destaque o seu art. 3º, inc. V, que, ao consagrar a declaração de direitos de liberdade econômica, assegura como direito de toda pessoa, natural ou jurídica, essencial para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica. Confirma-se, portanto e expressamente, a antiga máxima segundo a qual a boa-fé se presume, enquanto a má-fé se prova, o que já era reconhecido pelas páginas da doutrina civilista e pelos Tribunais Brasileiros.
Porém, não obstante tais previsões, penso que a Medida Provisória apresenta sérios problemas técnicos no trato das categorias civis e nas propostas de alterações do Código Civil de 2002, como constam do seu art. 7º, razão pela qual trago aqui as minhas primeiras impressões sobre o texto e faço algumas propostas de aprimoramento, para o debate que ocorrerá no Congresso Nacional.
Não se pode negar que também é de causar grande estranheza o fato de se alterar dispositivos da codificação privada sem que exista qualquer urgência nessas modificações, nos termos do que exige o art. 62 da Constituição da República. Como se verá, muitas das alterações propostas já tinham os seus teores reconhecidos pela doutrina e jurisprudência, razão pela qual o trâmite das modificações poderia seguir o roteiro normal das casas legislativas. Por isso, é possível sustentar a inconstitucionalidade da MP, por vício desde a sua origem.
Esclareço que não analisarei a fundo, nestes primeiros e breves artigos, questões de cunho ideológico, sendo apenas pertinente pontuar que as sugestões feitas para o Código Civil de 2002 são muito distantes dos princípios orientadores de sua elaboração, que, segundo Miguel Reale, foram: a) a eticidade, com a valorização da “ética da situação” e da boa-fé, notadamente a de natureza objetiva, valorizada apenas nas últimas previsões que transcrevi; b) a socialidade, pelo reconhecimento da função social dos institutos civis, o que inclui a empresa, o contrato e a propriedade; e c) a operabilidade, pela facilitação dos institutos privados e pela busca da concretude, por meio de um sistema aberto, de conceitos legais indeterminados e cláusulas gerais. Voltarei ao tema mais à frente.
Procurarei, portanto, fazer tal abordagem com a análise comparativa dos textos propostos e os atuais, por meio de tabelas com destaques, seguidas das minhas anotações e comentários. Neste primeiro texto, veremos como a MP tratou da desconsideração da personalidade jurídica e da função social do contrato.
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL
Como primeira alteração destacada, nota-se que a lei passaria a possibilitar a desconsideração da personalidade jurídica tão somente quanto ao sócio ou administrador que, direta ou indiretamente, for beneficiado pelo abuso, o que há tempos defendo, para que o instituto não seja utilizado de forma desproporcional e desmedida, atingindo pessoa natural que não tenha praticado o ato tido como abusivo.
Os parágrafos propostos sugerem critérios para o preenchimento dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica prevista para as relações civis em geral, consagradora da chamada teoria maior da desconsideração, quais sejam o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Vale lembrar, contudo, que tais requisitos não são cumulativos, mas alternativos para que a categoria seja aplicada, quebrando-se a autonomia da pessoa jurídica perante seus sócios e administradores e responsabilizando-se os últimos por dívidas da primeira.
Quanto ao desvio de finalidade, a norma passaria a estabelecer como requisito o elemento doloso ou intencional na prática da lesão ao direito de outrem ou de atos ilícitos, para que o instituto seja aplicado. Com o devido respeito, penso que tal previsão representa um claro retrocesso que traz grandes entraves para a incidência da categoria. Primeiro e fundamentalmente, por distanciar-se da teoria objetiva do abuso de direito, tratado pelo art. 187 do Código Civil, sem qualquer menção ao elemento subjetivo do dolo ou da culpa. A propósito da objetivação da categoria, por toda a doutrina, cite-se o Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. Adota-se, na MP, um modelo subjetivo e agravado, uma vez que só o dolo e não a simples culpa gera a configuração desse primeiro elemento da desconsideração. Ademais, o elemento doloso para a aplicação da desconsideração é exigido pela jurisprudência superior consolidada apenas para os casos de encerramento irregular das atividades, devendo permanecer restrito apenas a essa situação (STJ, EREsp. 1.306.553/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014). Por isso, a minha sugestão para o novo texto é que se retire a expressão “dolosa”, passando a prever que “para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”.
Sobre a confusão patrimonial, são parâmetros propostos pela MP para que fique caracterizada a ausência de separação de fato entre os patrimônios da pessoa jurídica e de seus membros: a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; b) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e c) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. Sobre a primeira previsão, sugiro que seja retirada a palavra “repetitivo”, pois a confusão patrimonial pode estar configurada por um único cumprimento obrigacional da pessoa jurídica em relação aos seus membros, pois, por um ato isolado, é possível realizar um total esvaziamento patrimonial com o intuito de prejudicar credores. Com relação às demais propostas, têm a minha concordância, apesar de que o termo “insignificante” pode gerar dúvidas. Em complemento, penso que seria interessante acrescentar alguma previsão ampla a respeito da “promiscuidade de fundos” (“comingling of funds“), para o devido enquadramento no caso concreto de outras hipótese de confusão patrimonial não prevista na MP.
Sobre o § 3º do art. 50 proposto pela Medida Provisória, seria interessante adaptá-lo ao art. 133, § 2º do Código de Processo Civil de 2015, que, ao tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, estabelece que “aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica”. A redação que consta da MP, ao prever que “o disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica”, pode trazer a falsa impressão de que não se trata da desconsideração inversa, sendo a última categorização consolidada pela doutrina e jurisprudência, e positivada por lei anterior, razão pela qual deve ser utilizada a expressão destacada para que não pairem dúvidas teóricas e práticas.
Quanto ao § 4º do art. 50, tem a minha concordância no seu mérito, ao prever que “a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”. Na verdade, trata-se de conteúdo que já era retirado do Enunciado n. 406, aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando estiverem presentes os pressupostos do art. 50 do Código Civil e houver prejuízo para os credores até o limite transferido entre as sociedades”. Não se pode negar que a norma proposta traz uma obviedade, qual seja a necessidade de se observar os requisitos legais para a desconsideração da personalidade jurídica aplicada entre empresas que mantêm alguma ligação, especialmente quanto a fraudes praticadas para prejudicar seus credores. Todavia, a sua grande vantagem é de positivar a possibilidade de ampliação de responsabilidades de uma pessoa jurídica a outra, o que configura a desconsideração econômica, indireta ou a sucessão entre empresas para as obrigações existentes no âmbito civil.
Como última mudança constante da MP a respeito da desconsideração, quanto ao § 5º do art. 50, nota-se, mais uma vez, uma valorização do elemento subjetivo para a desconsideração, ao prever que não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. Como bem anota Pablo Stolze Gagliano em comentários ao texto, “aqui, o desvio de finalidade – um dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica segundo o art. 50 – recebeu um segundo golpe (o primeiro decorreu da exigência do ‘dolo’ para a sua configuração, conforme o § 1º já analisado acima). Ao dispor que não constitui desvio de finalidade a ‘alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica’, o legislador dificultou sobremaneira o seu reconhecimento: aquele que ‘expande’ a finalidade da atividade exercida – como pretende a primeira parte da norma – pode não desviar, mas aquele que ‘altera’ a própria finalidade original da atividade econômica da pessoa jurídica, muito provavelmente, desvia-se do seu propósito” (GAGLIANO, Pablo Stolze. A medida provisória da “liberdade econômica” e a desconsideração da personalidade jurídica (Art. 50, CC): primeiras impressões. Disponível em <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 2 de maio de 2019).
Na linha das palavras transcritas, a exemplo do que ocorre com a menção anterior ao dolo, a última previsão também deve receber a especial atenção do Congresso Nacional, até porque o abuso da personalidade jurídica é algo corriqueiro no Brasil, com o objetivo de prejudicar credores. A par dessa realidade, a MP pode se virar contra os novos empreendedores que procurou valorizar, eis que pequenos e médios empresários poderão ter dificuldades em receber os seus créditos, notadamente frente a empresas maiores que fizeram uso da pessoa jurídica para não arcar com seus compromissos.
Acrescento, do ponto de vista prático, as dificuldades que serão enfrentadas para a incidência da desconsideração da personalidade jurídica – notadamente na sua modalidade inversa – no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, para os quais têm aplicação o art. 50 do Código Civil. Lembro que o elemento subjetivo foi afastado em demandas relativas a esses ramos jurídicos nos últimos anos e a Medida Provisória traz de volta a necessidade de sua análise para a desconsideração.
Como última nota, quanto às fundações, que podem ser também desconsideradas, o simples desvio de seus fins nobres, constantes do art. 62, parágrafo único do Código Civil, já bastaria para que o instituto seja aplicado. Sendo assim, e por tudo isso, penso que a última previsão, quanto à alteração da finalidade da pessoa jurídica, deve ser devidamente analisada e ponderada pelos deputados e senadores e, se for o caso, excluída do texto.
MODIFICAÇÕES DO ART. 421 DO CÓDIGO CIVIL: A RELATIVIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Com o fito de concretizar a “Liberdade Econômica” que a fundamenta, a MP 881 pretende modificar o art. 421 do Código Civil, consagrador do princípio da função social dos contratos. O tema foi objeto de minha dissertação de mestrado defendida na PUCSP, sob orientação da Professora Maria Helena Diniz, em 2003. O trabalho foi lançado como livro pela Editora Método, em duas edições, em 2005 e 2007. Mais recentemente, escrevi novamente sobre o tema, em coautoria com Alexandre Gomide, em obra lançada em homenagem ao Ministro Luiz Edson Fachin (Transformações no direito privado nos 30 anos da constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2018). Em suma, trata-se de assunto que tenho estudado há mais de quinze anos.
Sobre o princípio em questão, Miguel Reale, responsável por inserir o dispositivo na codificação privada, pondera que “o que o imperativo da ‘função social do contrato’ estatui é que este não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à outra parte ou a terceiros” (Função social do contrato. In: História do código civil. São Paulo: RT, 2005. p. 267). Na sequência, o jurista cita a vedação do abuso de direito, constante do art. 187 da codificação, e que também traz como norma a finalidade social dos institutos privados como parâmetro para a configuração do ilícito.
Ainda segundo ele, não se justificaria o temor então existente a respeito do princípio, no sentido de que haveria a eliminação da autonomia privada e da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda): “a atribuição de função social ao contrato não vem impedir que as pessoas naturais ou jurídicas livremente o concluam, tendo em vista a realização dos mais diversos valores. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, mas representa um dos seus primordiais de afirmação e desenvolvimento” (p. 268). E arrematava, demonstrando a solução de equilíbrio que foi dada pela codificação de 2002: “na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916; ou dá preferência a valores coletivos, promovendo a ‘socialização do contrato’; ou, então, assume uma posição intermediária, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras e cláusulas abertas propícias a soluções equitativas e concretas. Não há dúvida de que foi essa terceira opção a preferida pelo legislador do Código Civil de 2002” (Função social do contrato. In: História do código civil. São Paulo: RT, 2005. p. 268).
Com o devido respeito, o texto da Medida Provisória parece ter ressuscitado antigos fantasmas de temor a respeito da função social do contrato, no momento em que o princípio encontrou certa estabilidade de aplicação, seja pela doutrina ou pela jurisprudência. No âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, são encontrados mais de cem julgados sobre o princípio, sem que qualquer um deles tenha eliminado o pacta sunt servanda. Como se retira de um dos últimos acórdãos superiores, “conquanto não se possa ignorar a força obrigatória das disposições na fase de execução contratual, há de ser ela mitigada pelos paradigmas da boa-fé objetiva e da função social do contrato” (STJ, REsp. 1.443.135/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2018, DJe 30/04/2018). Geralmente, tem-se utilizado o princípio em casos de abusos contratuais, na linha das palavras de Miguel Reale antes transcritas.
A MP também parece voltar ao espírito individualista, que inspirou o Código Civil de 1916, tido por muitos civilistas como superado e que foi substituído por um modelo mais intervencionista, do Código Civil de 2002. E, na realidade contratual brasileira, não se pode negar a sua vital importância, ao lado da boa-fé objetiva para mitigar – e não eliminar – a autonomia privada e a força obrigatória, mormente em casos de desequilíbrios e abusividades praticados por um dos contratantes perante o outro. Lembro, aqui, de uma antiga lição que me foi transmitida pela Professor Álvaro Villaça Azevedo nas Arcadas: o contrato não pode ser utilizado como instrumento de massacre contratual de uma parte contra a outra.
Como é notório, a doutrina civilista acabou por atribuir ao princípio da função social do contrato uma dupla eficácia. Há, assim, uma eficácia interna entre as partes contratantes (Enunciado n. 360 da IV Jornada de Direito Civil), como também uma eficácia externa, para além das partes contratantes, possibilitando que o contrato gere efeitos perante terceiros (Enunciado n. 21 da I Jornada de Direito Civil). Nas duas aplicações, muito além de ser utilizada como concretizador da dignidade humana nas relações contratuais – o que é alvo de críticas por alguns –, a função social do contrato constitui um reforço da conservação negocial, assegurando trocas úteis e justas (Enunciado n. 22 da I Jornada de Direito Civil).
Aplicada isoladamente, sem apoio em qualquer outro comando legal, a função social do contrato fundamenta a possibilidade de resolução do contrato por desaparecimento de sua causa, pela frustração de sua finalidade (Enunciado n. 166 da III Jornada de Direito Civil). Apoiada no art. 413 do Código Civil, a função social do contrato tem sido utilizada para reduzir a cláusula penal, quando esta for exagerada e geradora de enriquecimento sem causa: “a redução da cláusula penal preserva a função social do contrato na medida em que afasta o desequilíbrio contratual e seu uso como instrumento de enriquecimento sem causa” (STJ, REsp 1.212.159/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/06/2012). Ou, mais recentemente, conforme acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, “no atual Código Civil, o abrandamento do valor da cláusula penal em caso de adimplemento parcial é norma cogente e de ordem pública, consistindo em dever do juiz e direito do devedor a aplicação dos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico entre as prestações, os quais convivem harmonicamente com a autonomia da vontade e o princípio pacta sunt servanda” (STJ, REsp 1.641.131/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 16/02/2017, DJe 23/02/2017).
Partindo-se para a redação proposta pela MP, o novo parágrafo único do art. 421 traz o que me parece outra obviedade, ao prever o caráter excepcional da revisão contratual dos contratos civis. Ora, não obstante a exigência dos requisitos tradicionais para a sua incidência, constantes dos arts. 317 e 478 da codificação, sabe-se que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe outros pressupostos para a revisão contratual, na linha do que vinha exigindo a jurisprudência do STJ, quais sejam a verossimilhança das alegações, a determinação das obrigações contratuais controversas e incontroversas e o depósito referente às últimas, sob pena de inépcia da petição inicial (art. 330, §§ 2º e 3º). Na minha leitura, a revisão contratual de um contrato civil já se situa há tempos no campo da excepcionalidade.
Por seu turno, quanto ao caráter excepcional do intervencionismo do julgador, de nada adianta colocar um único comando no Código Civil de 2002, quando vários outros dispositivos trazem conclusão em contrário, caso do seu art. 113 – que determina a necessidade de interpretação do contrato de acordo com a boa-fé objetiva e as regras de tráfego; do art. 187 – que veda o abuso de direito, trazendo a função de controle e reativa da boa-fé objetiva e da própria função social do contrato; do art. 413 – que consagra a redução equitativa da cláusula penal; do art. 416 – que limita o valor da cláusula penal à obrigação principal; do art. 422 – que estabelece a boa-fé objetiva como princípio aplicado a todas as fases do contrato; dos arts. 423 e 424 – que protegem o aderente contratual como vulnerável da relação jurídica, impondo-se uma interpretação contratual que lhe é favorável e a nulidade de cláusulas de renúncia prévia a direito inerente ao negócio; do art. 473, parágrafo único – que estabelece a continuidade do contrato diante de investimentos consideráveis realizados pelo contratante; e do art. 2.035, parágrafo único – que consagra a função social do contrato como princípio de ordem pública; sem prejuízo de muitos outros comandos.
Para que fosse possível a consagração do princípio da intervenção mínima do Estado como regramento contratual determinante, e na linha do que propõe a MP, seria necessário revogar todos esses dispositivos, que formam a espinha dorsal da codificação de 2002 a respeito dos contratos. Na verdade, um novo Código Civil deveria ser elaborado no momento em que a Lei Geral Privada vigente está próxima de encontrar sua maturação teórica e prática. Isso somente geraria mais incertezas, inseguranças, imprevisibilidades e dúvidas no meio contratual brasileiro, em um momento em que existe certa tradição a respeito dessa norma. Não se pode negar também – eis que esse é um argumento muito importante na atualidade e que inspirou a própria MP – um grande aumento de custos diante do surgimento de um novo cenário jurídico contratual no Brasil, aplicável às relações privadas.
Tudo isso também vale quanto à submissão da função social do contrato à “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, constante do art. 3º da MP. Em resumo, são assegurados ali dez direitos, a saber: a) desenvolver, para sustento próprio ou de sua família, atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de atos públicos de liberação da atividade econômica; b) produzir, empregar e gerar renda, assegurada a liberdade para desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, observadas as normas ambientais, as restrições do Direito Privado, incluídas as relativas à propriedade e à legislação trabalhista; c) não ter restringida, por qualquer autoridade, sua liberdade de definir o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda no mercado não regulado, ressalvadas as situações de emergência ou de calamidade pública, quando assim declarada pela autoridade competente; d) receber tratamento isonômico de órgãos e de entidades da administração pública quanto ao exercício de atos de liberação da atividade econômica, hipótese em que o ato de liberação estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas análogas anteriores, observado o disposto em regulamento; e) gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia de sua vontade, exceto se houver expressa disposição legal em contrário; f) desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos estabelecidos em regulamento, que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta, os procedimentos, o momento e as condições dos efeitos; g) implementar, testar e oferecer, gratuitamente ou não, um novo produto ou serviço para um grupo privado e restrito de pessoas maiores e capazes, que se valerá exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, após livre e claro consentimento, sem requerimento ou ato público de liberação da atividade econômica, exceto em hipóteses de segurança nacional, de segurança pública ou sanitária ou de saúde pública, respeitada a legislação vigente, inclusive no que diz respeito à propriedade intelectual; h) ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato; i) ter a garantia de que, nas solicitações de atos públicos de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto na própria Medida Provisória, apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo, o particular receberá imediatamente um prazo expresso que estipulará o tempo máximo para a devida análise de seu pedido e que, transcorrido o prazo fixado, na hipótese de silêncio da autoridade competente, importará em aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas na lei; e j) arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público.
Em termos gerais, muitas das regras e orientações já poderiam ser utilizadas para fundamentar a função social do contrato. Tenho dúvidas se seria interessante colocar tais valores e direitos expressamente na lei, quando caberia à doutrina e à jurisprudência fixar tais critérios, que são voláteis e podem ser alterados de tempos em tempos, de acordo com as mudanças pelas quais passa a sociedade brasileira.
Entretanto, causa-me grande preocupação o previsto na letra h, constante do inciso VIII do art. 3º da MP, ao expressar que constitui direito consagrador da liberdade econômica a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, a afastar a alegação de normas de ordem pública por qualquer uma das partes. Primeiro, a norma não tem muito sentido, pois a própria função social do contrato é um preceito de ordem pública, conforme o antes citado art. 2.035, parágrafo único, do CC/2002.
Segundo e principalmente, sabe-se que muitos negócios empresariais são de adesão, com conteúdo imposto por uma das partes e sem margem de negociação e estipulação do conteúdo da avença. A grande maioria dos contratos civis enquadra-se nessas situações, inclusive alguns negócios empresariais, podendo ser citados, apenas para ilustrar, a locação imobiliária não residencial, a locação em “shopping center” ou em centros de compras (box), a representação comercial, a agência, a distribuição e a franquia. Ora, por esse comando que consta da MP, a parte mais fraca economicamente da relação contratual não poderá fazer uso de normas de ordem pública que lhe socorrem contra abusos contratuais praticados pelo outro negociante, caso dos antes citados arts. 113, 187, 413, 416, 423, 424 e 473, parágrafo único, sem prejuízo de muitos outros preceitos civis. Se o objetivo da MP foi tutelar o pequeno empresário, nesse ponto a projeção distancia-se muito dos seus objetivos, pois prevalecerão os interesses de grandes empresas perante os aderentes contratuais. Assim, sugiro a total retirada ou exclusão desse inciso VIII do art. 3º da MP.
Quanto à letra e, já elogiei a presunção de boa-fé do negociante. Todavia, a parte final da previsão, que reforça sobremaneira a autonomia da vontade, está distante dos principais ditames da codificação vigente, que, como é sabido, consagrou a autonomia privada, com certos limites que devem ser observados quanto à liberdade contratual. Cite-se, a esse propósito, o art. 425 do Código Civil, que possibilita a criação de contratos atípicos, desde que observados regras e preceitos de ordem pública da própria codificação. Por isso, recomendo que seja também retirada do texto final.
Como última nota, a MP perdeu a chance de reparar os dois equívocos técnicos que ainda constam do art. 421 do Código Civil, apontados por Antonio Junqueira de Azevedo, Álvaro Villaça de Azevedo e Giselda Hironaka, conforme o antigo projeto legislativo do próprio Deputado Ricardo Fiúza, responsável pela última versão da codificação privada, e com uma longa tramitação no Congresso Nacional.
O primeiro equívoco é a menção à liberdade de contratar – que tem relação com a parte com quem se contrata e o momento em que se negocia –, que não é limitada pela função social. No comando deveria constar a liberdade contratual, relativa ao conteúdo da avença, essa sim limitada pela função social que o contrato exerce. O segundo erro do preceito está na menção de ser a função social razão do contrato, quando essa é formada justamente pela autonomia privada. Com a redação correta, proposta pelos juristas citados, o dispositivo teria a seguinte redação: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Talvez seja o momento de resolver esses dois problemas, já que foi feita proposta de alteração do dispositivo.
Sendo essas minhas primeiras impressões sobre as alterações dos arts. 50 e 421 do Código Civil, no meu próximo texto analisarei outras mudanças trazidas pela Medida Provisória n. 811/2019.