A pandemia da covid-19: uma nova reviravolta nos distratos?

Texto de autoria de Luciana Pedroso Xavier e Adroaldo Agner Rosa Neto

A trágica pandemia da covid-19 tem afetado a normalidade da vida cotidiana, de modo que o direito positivo, pensado em termos gerais e abstratos, precisa ser adaptado às especificidades do momento excepcional. Em razão disso, são alvissareiras as contribuições que a doutrina vem dando, quer seja auxiliando o Legislador na construção de regramento emergencial, notadamente o PL 1.179/20201; quer seja em seu papel típico, orientando a aplicação e interpretação do Direito. Neste último aspecto, digno de nota é o locus oferecido pelo Migalhas, que desponta como meio privilegiado de reflexões acerca dos impactos da covid-19 no mundo jurídico.

No cenário que se desenha, o âmbito dos contratos certamente é um dos mais sensíveis. A íntima relação entre a atividade econômica e o direito contratual exige respostas deste último à desaceleração da primeira pelas medidas de isolamento social. Setores inteiros, como o varejo tradicional, serviços educacionais, entretenimento, turismo, moda, estão sofrendo quedas de faturamento superiores a 50% desde os dias iniciais da crise, segundo o Sebrae2. Ainda que não tenha sido totalmente paralisado, o setor da construção civil não escapa à regra.

Assim, a temática dos contratos imobiliários mostra-se como terreno fértil às disputas entre os contratantes, mais uma vez. Sim, mais uma vez, pois é certo que esse já é um dado histórico entre nós. A importância social da questão habitacional3, para além do assento constitucional4, implicou na intervenção legislativa e judicial no ritmo dos influxos do mercado5. São exemplos as Leis de Incorporação Imobiliária (lei 4.591/1964), Parcelamento do Solo Urbano (lei 6.776/1979), Sistema Financeiro de Habitação (lei 8.004/1990) e o art. 1.225, inciso VII, do CC/02, que ordinariamente demandam a atuação dos Tribunais em larga escala, a ponto de ensejarem a utilização de técnicas de uniformização da jurisprudência.

Lembrem-se, de um lado, da súmula 621 do Supremo Tribunal Federal6 (antes da alteração de competência implementada pela Constituição de 1988), impedindo embargos de terceiro fundado em promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis. E, de outro, as Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, como as de n.o 767, 848-9 (com orientação diametralmente oposta à do STF10), 23911, 30812 e 54313.

Citem-se, ainda, os julgamentos do STJ pelo rito dos repetitivos. Ganharam destaque as teses firmadas (i) sobre os requisitos de validade da transferência ao promitente-comprador do pagamento de comissão de corretagem; (ii) sobre a impossibilidade de cobrança do serviço de assistência técnico-imobiliária (taxa SATI); (iii) sobre o prazo prescricional para exercício da pretensão de restituição de valores pagos a título de comissão de corretagem e taxa SATI (todos no Tema 938); (iv) sobre a legitimidade passiva da incorporadora para responder pela restituição da comissão de corretagem e da taxa SATI (Tema 939); (v) sobre a impossibilidade de cumulação entre a cláusula penal moratória e indenização por lucros cessantes (Tema 970); e (vi) sobre a inversão da cláusula penal (Tema 971).

Episódio recente dessa série histórica é a chamada “Lei do Distrato” (lei 13.786/2018). Ainda que passível de críticas sob o ponto de vista técnico14, como a confusão no manejo dos conceitos e a criação de uma “mora à brasileira”, na feliz expressão de Otavio Luiz Rodrigues Jr.15, trata-se de diploma extremamente relevante. Isso porque tem por intuito delimitar os efeitos da desistência do compromisso de compra e venda – que, apesar de irretratável nos termos da Lei de Incorporação Imobiliária (art. 32, §2º) é amplamente desfeito na prática -, o que acarretava ônus excessivo às construtoras e incorporadoras. Ao que parece, já no primeiro ano de vigência, a Lei do Distrato logrou êxito em seu objetivo, diminuindo em 30% o número de desistências em relação ao ano de sua promulgação16.

Conforme o regramento ali estabelecido, nos contratos firmados sob sua égide, o adquirente que exerce o poder de desligamento está sujeito a um duplo regime de restituição. Caso a incorporação possua patrimônio de afetação, a restituição limitar-se-á a 50% dos valores pagos e poderá ser feita pelo incorporador em até trinta dias após a expedição do certificado de vistoria e de conclusão de obras, o “habite-se” (art. 67-A, §5º, lei 4.591/1964). Se não houver patrimônio de afetação, o pagamento do adquirente, deduzidas a pena convencional e as despesas, será feito em parcela única, em até cento e oitenta dias do desfazimento contratual (art. 67-A, §6º, lei 4.591/1964). Note-se que o primeiro regime não deixa o adquirente saber, ao certo, quando irá receber o montante a que faz jus, uma vez que a expedição do “habite-se” exige o término das obras, o que pode ser bastante demorado. O segundo, por sua vez, deixa o adquirente à mercê da solidez da incorporadora – algo delicado no atual panorama econômico -, ainda que possa receber a restituição em prazo certo.

Importante frisar que a Lei prevê a possibilidade de desligamento do adquirente sem a retenção de qualquer valor. Isso poderá ocorrer caso o comprador-retirante encontrar adquirente substituto que o sub-rogue nos direitos e obrigações originalmente assumidos. É requisito da substituição a anuência do incorporador, a capacidade financeira e a aprovação dos cadastros do novo adquirente (art. 67-A, §9º, lei 4.591/1964). Todavia, tendo em vista as circunstâncias hodiernas, a tendência é que o permissivo tenha pouca aplicabilidade.

Antes da lei 13.786/2018, os Tribunais arbitravam a retenção, prevista nas chamadas cláusulas de decaimento, entre 10% e 30% do montante pago pelo adquirente, restituído, geralmente, em uma única parcela17. A existência patrimônio de afetação não era aquilatada para o arbitramento do percentual a ser devolvido. Desse modo, é evidente a diferença de valores entre a práxis judiciária até então vista e a nova opção do legislador.

Ocorre que, no contexto atual, a conjunção entre as incertezas econômicas, risco de desemprego e o regime mais gravoso de restituição que a Lei do Distrato instituiu – se comparado com experiência jurisprudencial anterior – pode reavivar os debates judiciais que o Legislador procurou pacificar, enquanto forem sentidos os impactos da pandemia.

A completa liberação do adquirente da retenção prevista em Lei não parece tecnicamente possível, considerando tanto as possibilidades do CC/02 quanto do CDC. Como indicou José Fernando Simão neste mesmo espaço, apesar de grave, a pandemia é passageira e não configura caso fortuito/força maior (art. 393 do CC/02) em obrigações cujo objeto é prestação de dar, salvo raras hipóteses. A conclusão foi extraída das lições de Pontes de Miranda: “[s]e é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá […]”18.

Porém, a redução do montante a ser retido, especialmente nos contratos envolvendo empreendimentos com patrimônio de afetação, que chega a 50% do total pago, pode em tese ser acolhida pelo Judiciário. O fundamento para essa pretensão estaria na complementariedade entre os arts. 6º, inciso V, e 51, §1º, inciso III, do CDC e o art. 413 do CC/02. A interação entre o CDC e o CC/02 nos casos envolvendo compromissos de compra e venda é mecanismo já reconhecido pela doutrina. Em trabalho basilar sobre a matéria, Flávio Tartuce pondera que “[p]ara solucionar os problemas atuais existentes sobre o tema, é preciso conciliar as citadas normas especiais com os dispositivos do Código Civil […] a utilização dessa premissa teórica ganha importância pelo fato de ser o compromisso de compra e venda, muitas vezes e até como regra, uma relação jurídica de consumo”19.

Assim, verificados os elementos do suporte fático das normas citadas, notadamente (i) a excessiva onerosidade, tendo em vista a (ii) natureza e finalidade do negócio, em razão de (iii) fatos supervenientes, é possível reduzir-se o percentual a ser retido. É certo, igualmente, que essa análise deverá ser feita caso a caso e nem todos aqueles adquirentes que se desligarem dos compromissos de compra e venda no período em que vivemos logrará a redução. Daí a necessidade de zelo, tanto por parte do advogado que ajuíza a demanda, quanto por parte do juiz, que deverá apontar na fundamentação, discriminadamente, cada um dos requisitos na demanda em apreço caso decida revisar o valor da retenção.

Por evidente, a intervenção judicial no contrato é muito pouco desejável. Mesmo no estado delicado em que nos encontramos, isso iria na contramão das mudanças recentes trazidas pela “Lei da Liberdade Econômica” (lei 13.874/2019) que, apesar de não isenta de críticas, reflete os anseios de nosso tempo no sentido de reforçar a obrigatoriedade contratual. A busca pela manutenção dos pactos deve sempre ser o norte de qualquer solução. Além disso, é preciso encontrar uma forma de equilibrar os interesses dos contratantes que atenda a excepcionalidade das circunstâncias e respeite a obrigatoriedade dos contratos.

Qual seria esse meio termo?

O caminho que se recomenda é que o consumidor adquirente e a incorporadora aproveitem a estipulação da própria Lei do Distrato e negociem os termos da resolução (art. 67-A, §13, lei 4.591/1964). A presença dos advogados das partes é absolutamente essencial para orientá-las. Em tempos de incerteza, é melhor um acordo bem assistido do que uma demanda cujo resultado é incerto.

Em resposta à pergunta do título, a pandemia da covid-19, por ser passageira, não deve mudar radicalmente o quadro composto pela Lei do Distrato. Todavia, não se pode crer que os modelos de restituição por ela instituídos passem pela crise sem questionamentos. Daí a necessidade de diálogo entre os contratantes para que estabeleçam uma solução razoável para o desligamento contratual.

*Luciana Pedroso Xavier é professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFPR. Mestre e doutora em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Advogada. Sócia do PX Advogados.

**Adroaldo Agner Rosa Neto é mestrando em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Membro efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná. Advogado. Sócio do PX Advogados.


1 O Projeto contou com larga contribuição da doutrina. Dentre seus coordenadores técnicos está o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. Colaboraram, ainda, os Professores Rodrigo Xavier Leonardo, Fernando Campos Scaff, Paula Forgioni, Marcelo von Adamek, Francisco Satyro, José Manoel de Arruda Alvim Netto e Rafael Peteffi da Silva. Por fim, participaram também os advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias.

2 SEBRAE. Boletim de impactos da covid-19 nos pequenos negócios. 2ªed. S.l., 03 de abril de 2020, p. 03-09.

3 Gilberto Freyre resumiu o sonho da casa própria do brasileiro em trecho antológico de sua obra: “[t]er casa – casa própria – é ideal de quase todo brasileiro: mesmo que seja o que às vezes por modéstia se define como um mucambinho, visita bem acolhida: ‘a casa é sua’.” (FREYRE, Gilberto. Oh de casa! em torno da casa brasileira e de sua projeção sobre um tipo nacional de homem. Rio de Janeiro: Artenova, 1979, p. 26. Destacamos).

4 A CR/88 consagra um direito fundamental à moradia em seu art. 6º, caput.

5 A relação entre a legislação e os anseios do mercado na questão habitacional foi anotado pelo Prof. José Carlos Moreira Alves: MOREIRA ALVES, José Carlos. Panorama do direito civil brasileiro: das origens aos dias atuais. In: Revista da Faculdade da USP, v. 88, a. 1993, p. 222.

6 Súmula 621 do STF. Não enseja embargos de terceiro à penhora, a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis.

7 Súmula 76 do STJ. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

8 Súmula 84 do STJ. É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.

9 A súmula 84 rompe definitivamente com o paradigma jurisprudencial anterior e sedimenta o caminho para o direito real de aquisição, peculiar à nossa realidade jurídica, consagrado pelo CC/02, art. 1.225, inciso VII. Digna de registro é a participação da Faculdade de Direito da UFPR nessa quadra histórica. Em primeiro lugar, pelo clássico texto do Professor José Francisco Ferreira Muniz, “Embargos de terceiro à penhora (a questão da posse do promitente comprador)”, publicado em 1987 (in: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 24, 1987, p. 17-29). Em segundo lugar, pela atuação dos Professores Antônio Alves do Prado Filho e Joaquim Munhoz de Mello, como advogados do recorrente e do recorrido, respectivamente, no Recurso Especial 188 (REsp 188/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ Acórdão Ministro Bueno de Souza, Quarta Turma, julgado em 08/08/1989, DJ 31/10/1989, p. 16557) que fundamentou a Súmula 84.

10 O cotejo analítico entre essas Súmulas, feito pelo Prof. Arruda Alvim, aqui no Migalhas, revela a filosofia que as inspirava e demonstra a influência dos diversos momentos sociais na interpretação do tema pelos Pretórios.

11 Súmula 239 do STJ. O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

12 Súmula 308 do STJ. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.

13 Súmula 543 do STJ. Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

14 Seja consentido remeter o leitor para XAVIER, Luciana Pedroso; ROSA NETO, Adroaldo Agner. Comentários ao art. 67-A, Parágrafos 5º e 6º da lei 13.786/2018. In: VITALE, Olivar (coord). Lei dos Distratos. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, 2019, p. 183 e ss.

15 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Retrospectiva 2018: Leis, livros e efemérides do direito civil. Disponível em: . Acesso em 19/04/2020.

16 Segundo pesquisas, no terceiro trimestre do ano de 2016 ocorreu “distrato” em 46% (quarenta e seis por cento) das vendas de imóveis na planta. Em 2019, já na vigência da lei 13.786/2018, esse número caiu em mais de 30% (trinta por cento). Acesso em 14/4/2020.

17 Vide a súmula 2 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para aquisição.

18 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Parte Especial. Direito das obrigações: extinção das dívidas e obrigações. Dação em soluto. Confusão. Remissão de dívidas. Novação. Transação. Outros modos de extinção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 158 [coleção tratado de direito privado; t.25].

19 TARTUCE, Flávio. Do compromisso de compra e venda de imóvel. Questões polêmicas a partir da teoria do diálogo das fontes. In: Revista de Direito do Consumidor, n.º 93, mai./jun. 2014, p. 163-164.

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