Equilíbrio contratual: Dever ou faculdade de renegociar o contrato?

Neste breve estudo, pretende-se perquirir se o princípio do equilíbrio contratual é uma norma jurídica absoluta, que não comporta relativização, ou se é possível mitigá-lo em relação a algumas categorias contratuais.

Um primeiro ponto a destacar é de que vivemos hoje numa sociedade pós-industrial – complexa, plural, globalizada, massificada – largamente desigual e com múltiplos interesses assimétricos.

A judicialização é um fenômeno crescente e, ao que parece, sem fim, carreando ao judiciário demandas dos mais variados matizes, engendradas via pretensões individuais e, primacialmente, coletivas, todas elas caracterizadas por um mesmo pano de fundo, isto é, uma mesma ‘causa de pedir’, que são as notórias desigualdades fáticas e/ou jurídicas presentes na realidade brasileira.

Nesse contexto, não é desarrazoado afirmar que o justiça brasileira de há muito presta serviços a quatro grandes ‘clientes’, seus principais usuários — o próprio poder público; os bancos; as telefônicas e as operadores de plano de saúde – os quais relutam em agir de forma cooperada e solidária, inclusive em respeito à jurisprudência dominante, posto que, ainda que os tribunais já tenham declarado que determinado cláusula contratual é abusiva, tais fornecedores continuam a praticá-las, fomentando, assim, a litigiosidade.

Na vida contemporânea, o contrato não é apenas um poderoso instrumento de circulação de riqueza na economia capitalista, mas também visa a efetivar os valores constitucionais, mediante o adequado sopesamento dos interesses contratados.

O contrato, enquanto uma obrigação por excelência, deve ser compreendido como um processo dinâmico, complexo, de cooperação e confiança, a exigir das partes uma série de atividades em prol do fim colimado, de modo que seu cumprimento ocorra de maneira mais satisfatória para o credor e menos onerosa para o devedor (COUTO E SILVA, Clóvis V. do, 2018).

Em verdade, muito mais do que dissera Enzo Roppo (2009, p. 11) – “o contrato é a veste jurídico-formal de operações econômicas” – na atualidade observa-se sua expansão para outros ramos do direito privado e do direito público, regrando até interesses existenciais e não patrimoniais, como, por exemplo, em sede de direito família (pactos de união estável); em sede de direito das sucessões (pactos de planejamento sucessório); em sede de direito administrativo (convênios ou termos de cooperação); em sede de direito penal (acordos de leniência e delação premiada) e, por fim, em sede de direito processual (negócios jurídicos processuais), num fenômeno denominado de ‘pancontratualismo’ ou ‘contratualização’ das relações sociais (SCHREIBER, Anderson, 2018).

Numa sociedade consumista, desigual e globalizada, contratualiza-se ‘tudo ou quase tudo’, o que gera uma litigiosidade exponencial, na qual são postos em disputa interesses conflitantes e assimétricos, reciprocamente amparados em princípios colidentes, como, por exemplo, o princípio do equilíbrio contratual e o princípio do pacta sunt servanda; o princípio da segurança jurídica e o princípio da revisão dos contratos; o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia privada, dentre outros.

Ocorre que, em razão dessa ingente litigância contratual, exige-se que o judiciário fique atento à correta aplicação dos princípios contratuais, mediante um fundamentado juízo de discricionariedade, a fim de não descambar para um juízo de arbitrariedade – decisionista, sentimental ou ideológico.

Para tanto, convém elucidar a distinta classificação dos contratos.

Diferentemente da teoria contratual clássica, típica do Estado Liberal, fundada nos dogmas do voluntarismo e abstencionismo, atrelada à dicotomia direito público/direito privado (summa divisio), com o advento do Estado Social, a partir da primeira metade do século XX, uma nova teoria contratual se impõe, decorrente do dirigismo contratual (publicístico e privado), haja vista que o contrato passa a ter uma finalidade social como instrumento de política econômica, com a adoção de normas imperativas ou cogentes, materializado por uma contratação padronizada e estandardizada do seu conteúdo.

As classificações clássica e moderna do contrato coexistem, valendo-se destacar que a classificação tradicional (bilateral/unilateral; oneroso/gratuito; comutativo/aleatório; consensual/real; solene/não solene, etc), própria do século XX, adota uma importante distinção entre contrato paritário e de adesão, que continua sendo utilizada pela classificação moderna do contrato, diante da sua notória relevância prática e dogmática.

Já à luz da moderna classificação contratual, uma primeira distinção a ser feita reporta-se à natureza jurídica dos contratos em voga na atualidade, isto é — o contrato civil, o de consumo e o empresarial — posto que, a partir dela, chega-se a uma compreensão mais aclarada sobre o largo espectro do contrato.

Melhor exemplificando: há contrato civil se na relação jurídica estiverem presentes leigos ou civis, em condições de igualdade jurídico-formal (partes iguais) e que não visem a obtenção de lucro por habitualidade ou profissão; há contrato empresarial se na relação jurídica envolver empresários, isto é, se as empresas celebrantes desenvolvam atividade empresarial movida pela busca do lucro (FORGIONI, Paula A., 2019); e, por fim, há contrato de consumo se as partes contratantes são ‘desiguais’, quer dizer, são sujeitos da relação de consumo (ratione personae), ou seja, fornecedor e consumidor (arts. 2º, 3º, 17 e 29 CDC) ou se tiver por objeto produtos ou serviços (ratione materiae) (arts. 4º e 5º CDC), independente da área do Direito em que a relação de consumo venha ocorrer, bem como irrelevante se a relação jurídica é contratual ou extracontratual.

Ainda sob o âmbito dessa tríplice distinção – contratos civil, empresarial e de consumo – a moderna classificação contratual se desdobra em outras espécies contratuais, na esteira da legalidade civil-constitucional, como, por exemplo, as cláusulas contratuais gerais ou condições gerais dos contratos; o contrato relacional; o contrato cativo de longa duração; o contrato conexo ou rede contratual; o contrato eletrônico; o contrato sob o paradigma da essencialidade e, por último, o contrato empresarial e o contrato existencial, com a ressalva de que todas essas novéis espécies são consideradas contratos de consumo, salvo os contratos civis e empresariais.

Contudo, a despeito dessa variada gama de espécies contratuais, afora, ainda, as categorias contratuais atípicas, próprias do século XXI, entende-se que a melhor dicotomia classificatória a ser acolhida é a do jurista Antonio Junqueira de Azevedo (2010), pertinente à distinção entre contrato empresarial e contrato existencial, por ser mais abrangente e racional, na medida que resume em apenas duas categorias o universo da contratualística moderna.

De fato, percebe-se que a distinção proposta evidencia as disparidades (fática e jurídica) dos contratantes modernos, uma vez que alberga argumentos que se digladiam e que são reciprocamente fundados na principiologia constitucional, sendo que o contrato empresarial reflete os anseios do mundo empresarial e o contrato existencial se volta à proteção das pessoas físicas economicamente desafortunadas. Em essência, o que se observa é a existência de posições correlatas e antagônicas, ou seja, uma notória assimetria contratual, em que de um lado há uma clara posição de poder (econômico, técnico, jurídico, informativo) e, de outro, uma posição típica de vulnerabilidade.

Objetivamente, o presente estudo adota a referida classificação – contrato empresarial e contrato existencial – por ser considerada a mais consentânea com a sociedade pós-moderna do século XXI, a despeito da convivência com a dicotomia do século passado (contrato paritário e contrato de adesão).

Assim, em relação ao primeiro (contrato empresarial), entende-se aquele celebrado entre empresários, pessoas físicas ou jurídicas, ou, ainda, entre um empresário e um não-empresário que, contudo, naquele contrato visa obter lucro, ressaltando-se que no contrato empresarial “ambas [ou todas] as partes têm no lucro o escopo de sua atividade” (FORGIONI, Paula A., 2019, p. 33). Dito contrato também é denominado contrato de lucro ou profissional, destacando-se, entre seus caracteres: o risco empresarial, o profissionalismo, o dever de diligência, de organização, a rivalidade e a concorrência (LUPION, Ricardo, 2011).

Já em relação ao segundo (contrato existencial), é aquele firmado entre pessoas não empresárias ou, como é frequente, em que somente uma parte é não-empresária, desde que não pretenda transferir, com intuito de lucro, os efeitos do contrato a terceiros (AZEVEDO, Antonio Junqueira de, 2010). Efetivamente, todo contrato existencial é um contato de consumo, como, por exemplo, todas as novéis espécies antes referidas, haja vista que têm por objeto bens ou serviços destinados à subsistência da pessoa humana, isto é, que integram o seu patrimônio mínimo existencial (alimentação, moradia, educação, saúde, dentre outros).

Basicamente, a distinção mais precisa entre eles se reporta à intenção ou não do lucro das partes do contrato, assim resumida: nos contratos empresariais todas as partes teriam a intenção de lucro e, nos contratos existenciais, apenas uma das partes não teria intenção de lucro (EROLES, Pedro, 2018).

Anote-se, ademais, que a citada dicotomia logrou inconteste êxito, na medida em que foi acolhida pelo legislador, pelo menos parcialmente, quando positivou expressamente o contrato empresarial na recente Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19).

À luz da referida lei (art. 7º), no contrato empresarial a interferência estatal (judicial) deve ser mínima (art. 421 § único CC), sendo permitida a sua revisão de maneira excepcional e limitada (art. 421-A, III CC), além de ser possível a resolução (extinção) (art. 421-A I CC), desde que, em ambas as hipóteses, estejam em conformidade com as regras contratuais contratadas (pacta sunt servanda), enfatizando, assim, um dos princípios basilares do ordenamento pátrio, o da segurança jurídica.

Dessarte, o contrato empresarial é presumido como paritário e simétrico (art. 421-A CC), pois as partes se acham no mesmo patamar jurídico-formal (contratantes ‘iguais’),  caracterizado pela prevalência do princípio da irretratabilidade das convenções (pacta sunt servanda) e também reforçado pelo novel subprincípio da intervenção mínima (art. 421 § único CC), além do que somente revisável ou resolúvel em situações especiais.

Diferentemente, o contrato existencial não foi positivado pela Lei da Liberdade Econômica, razão por que toda a compreensão acerca do contrato empresarial é inaplicável ao contrato existencial, uma vez que aquele é tido como paritário e, este, é eminentemente de adesão, sendo um contrato de consumo por excelência.

Melhor explicando: por ‘interpretação inversa’ ao novel princípio da intervenção mínima no contrato (art. 421 § único CC), no contrato existencial entende-se que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual), também em ‘diálogo das fontes’ com a principiologia consumerista, valendo-se destacar a Teoria da Onerosidade Excessiva prevista no CDC (art. 6º V), que adota a revisão como única hipótese possível em prol da manutenção do contrato, sendo o direito à revisão uma prerrogativa de ambos (consumidor e fornecedor), também em conformidade com o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil.

No que pertinente ao ponto fulcral deste estudo – o equilíbrio do contrato – registre-se que dentre os três princípios sociais do contrato, o Código Civil previu expressamente o princípio da boa fé objetiva (arts. 113, 187 e 422) e o princípio da função social do contrato (art. 421), fazendo alusão apenas implícita ao princípio do equilíbrio contratual, mediante os institutos do estado de perigo (art. 156,) da lesão (art. 157) e da resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480), sendo considerado, portanto, o menos estudado na doutrina e o menos referido na jurisprudência.

Anote-se, inclusive, que o princípio do equilíbrio do contrato ou da equivalência material é tido como de alcance dogmático reduzido, uma vez que classificado não como um princípio autônomo em si, mas tão apenas um subprincípio dos dois demais princípios sociais do contrato (função social e boa-fé objetiva), a despeito de – ao fim — buscar o equilíbrio entre as prestações contratadas e evitar “o abuso do poder econômico e a tirania – já anacrônica – do vetusto pacta sunt servanda.” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo, 2014, p. 97-98).

De qualquer sorte, relevante observar que, independente de ser catalogado como princípio ou subprincípio, a sua importância normativa é crescente e induvidosa, mormente porque o contrato, na contemporaneidade, não pode servir de instrumento para ruína econômica de qualquer dos contratantes.

Conceitualmente, diz-se que o princípio do equilíbrio contratual visa à justiça contratual, à justiça material, no sentido de efetivar a livre iniciativa (o lucro) em consonância com os valores constitucionais, além de aplicável a todo e qualquer contrato, a fim de evitar o desequilíbrio excessivo do contrato.

Induvidoso que o princípio do equilíbrio contratual tem como fim reequilibrar o contrato, mormente sob o ângulo econômico, atinente aos sacrifícios (ônus) e benefícios a cargo das partes, considerando que o contrato é um processo dinâmico, complexo, cooperado e solidário, pelo qual se exige das partes uma série de condutas atinentes às suas legítimas expectativas, a fim de alcançar o seu adimplemento (COUTO E SILVA, Clovis V. do, 2018).

Contudo, diferentemente do que defende a majoritária doutrina (SCHREIBER, Anderson, 2018), no sentido da preferência pelo dever de renegociar o contrato em geral, o presente estudo sustenta que não há um dever de renegociar amplo e irrestrito aplicável a qualquer espécie contratual.

Re vera, entende-se ser perfeitamente lícita uma cláusula contratual que limita ou exclua a tutela do equilíbrio contratual, inclusive transferindo os riscos decorrentes do caso fortuito e força maior, desde quando se trate de um contrato empresarial, mantendo-se incólume o princípio do pacta sunt servanda, valendo-se frisar que tal cláusula é até desnecessária, à vista do disposto na própria Lei da Liberdade Econômica – que, de forma clara, prevê que a revisão/renegociação é apenas excepcional e limitada. No contrato empresarial, pois, a regra é não renegociar, em atenção à segurança jurídica.

A outro giro, em sendo caso de um contrato existencial, há um dever de renegociar prima facie, por interpretação contrária/inversa ao disposto no art. 421 § único CC, uma vez que a interferência judicial deve ocorrer com maior intensidade, em respeito aos princípios sociais do contrato (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual), para fins de tutelar a dignidade da pessoa humana/igualdade/solidariedade, cujo contratante é a parte vulnerável, na acepção técnica, fática, jurídica ou informacional. No contrato existencial, pois, a regra é o dever de renegociar, em atenção à principiologia civil/consumerista.

Ad summam, entende-se que para a correta solução do caso concreto (justiça contratual), com base num juízo de discricionariedade e não de arbitrariedade, uma primeira medida prática é a identificação da natureza jurídica do contrato em litígio – se empresarial ou existencial – posto que, a partir disso, advirão conclusões jurídicas diversas, assim resumidas: que há uma faculdade de renegociar o contrato empresarial e que há um dever de renegociar o contrato existencial!

__ 

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos de pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p.185-186.

.__________. São Paulo: Saraiva, p. 186.

COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2018, p. 21-22.

___._. São Paulo: FGV, 2018, p. 33.

EROLES, Pedro. Boa-fé objetiva nos contratos: especificação normativa, cogência e dispositividade. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 125.

FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 27.

_.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos – teoria geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v. 4.

LUPION, Ricardo. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2011, p. 139-154.

ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009.

SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 15.

._. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 275-524.

IBDCONT
Artigos criados 46

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo