No debate jurídico brasileiro já há alguns bons anos quando se trata de planos de saúde ou operadoras de saúde suplementar, a tendência é pela demonização do setor, com críticas fundadas e infundadas e, não raro, desprovidas de alicerce em dados que fundamentem os argumentos.
É comum que os críticos deem destaque aos altos índices de judicialização do setor ou, de reclamações perante os órgãos de defesa do consumidor, sem analisar com profundidade e objetividade sempre necessárias, os aspectos técnicos que envolvem esse complexo setor.
Neste exato momento, o tema que está sendo tratado sem o imprescindível cuidado técnico-jurídico é o dos aumentos que foram suspensos em razão da pandemia e que agora, a partir de janeiro de 2021, começarão a ser aplicados pelas operadoras.
O primeiro aspecto técnico a ser considerado diz respeito às operadoras. Do que estamos falando quando nos referimos a operadoras de saúde? Rapidamente mencionamos as 4 ou 5 operadoras de saúde que se encontram no topo do ranking, sem recordar que segundo dados da Sala de Situação1 da Agência Nacional de Saúde Suplementar existem 737 operadoras de saúde suplementar em todo o país, espalhadas pelos 27 estados federativos e Distrito Federal e que atendem a números variados de beneficiários.
Assim, qualquer medida adotada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS deverá ser aplicada igualmente a todas as 737 operadoras de saúde em atividade no setor desde aquelas que ocupam o topo do ranking, até aquelas que ocupam os últimos lugares em número de beneficiários e, consequentemente, em valores de faturamento.
Outro aspecto importante e que tem sido reiteradamente argumentado é que no ano passado, em razão da pandemia da Covid-19, foram suspensos os atendimentos eletivos e, por isso, as operadoras de saúde teriam tido menor volume de atendimentos e, consequentemente, de despesas.
Não foi isso o que ocorreu! A Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, em 25 de março de 2020, alterou o sistema de prazos para atendimento previstos na Resolução Normativa n.º 259, de forma que com prazos um pouco mais dilatados (de 7 dias para 14 dias para realização de consulta médica, por exemplo), pudessem ser praticadas medidas preventivas de contaminação da Covid-19. Foram suspensos os prazos para internação eletiva e para utilização de hospital-dia.
A ANS manteve a obrigatoriedade de atendimento para casos em que os tratamentos não podiam ser interrompidos ou adiados por colocarem em risco a vida do paciente: atendimentos relacionados ao pré-natal, parto e puerpério; doentes crônicos; tratamentos continuados; revisões pós-operatórias; diagnóstico e terapias em oncologia, psiquiatria e aqueles tratamentos cuja não realização ou interrupção colocaria em risco o paciente, conforme declaração do médico assistente (atestado). Também ficaram mantidos os prazos para atendimentos de urgência e emergência.
Essa medida durou apenas até a data de 09 de junho de 20202 quando a ANS determinou o retorno dos prazos e dos atendimentos eletivos, até porque os hospitais que prestavam serviços para o setor de saúde suplementar já haviam se organizado adequadamente para permitir o atendimento em segurança para os beneficiários, sem contato com as alas isoladas para atendimento de contaminados ou suspeitos de contaminação por Covid-19.
Assim, é exagero afirmar que as operadoras de saúde deixaram de atender durante o período da Covid-19. Ao contrário, continuaram atendendo com prazos dilatados para alguns casos, com prazos iguais para outras situações, atenderam regularmente as urgências e emergências e, desde o primeiro momento atenderam os casos de infecção pelo coronavírus com todos os protocolos determinados, o que incluiu realização de exame para constatação da infecção, ventilação mecânica, intubação, medicação, internação prolongada em unidades de terapia intensiva, entre outros.
É incorreto, ainda, afirmar que as operadoras atenderam menor número de casos em 2020. Houve o represamento em decorrência do compreensível temor da população e da flexibilização de prazos, porém a partir de meados do ano com a diminuição dos índices de contaminação e óbito decorrentes da Covid-19, o percentual de atendimentos voltou a subir.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS divulgou dados sobre atendimentos das operadoras de saúde em 18 de dezembro.3 Com esses dados demonstrou que:
- Taxa Mensal de Ocupação de Leitos – Comum e UTI4 – teve redução de agosto a dezembro de 2020 e se manteve em média com 65% de ocupação.
- Exames de Tomografia Computadorizada de Tórax tiveram aumento de até 202% em julho de 2020 comparado com fevereiro do mesmo ano.
- Os índices de sinistralidade caíram para 62% em junho de 2020 e alcançaram o patamar de 79% em novembro de 2020.
Em agosto de 2020 a Agência Nacional de Saúde Suplementar suspendeu os reajustes de mensalidade dos beneficiários que deveriam ser aplicados de setembro a dezembro para todas as modalidades de planos de saúde.5 O reajuste será aplicado a partir de janeiro de 2021, embora já existam vozes contrárias a essa retomada alicerçados em argumentos jurídicos os mais variados, porém, quase sempre carentes de argumentos técnicos imprescindíveis para a correta análise do problema.
É preciso recordar dois aspectos técnicos essenciais para a discussão jurídica dos contratos de planos de saúde: (i) como se dá a formação do fundo mutual; e, (ii) a cadeia de suprimentos da qual dependem as operadoras de saúde.
O fundo mutual é formado com parte dos valores das mensalidades pagas pelos usuários; a outra parte, é destinada ao pagamento de despesas administrativas, de distribuição e para remuneração do capital investido (lucro). Em poucas palavras: uma parte do valor da mensalidade é destinado às despesas assistenciais cujos valores pertencem exclusivamente aos beneficiários; e, outra parte é destinada às operadoras. A parcela destinada ao fundo mutual atende rigorosamente a cálculos atuariais e é fiscalizada pela ANS; a parcela destinada às operadoras atende aos princípios constitucionais da ordem econômica.
Determinar que não sejam aplicados índices de reajuste para o ano de 2021 é ferir de morte os fundos mutuais e, decretar graves dificuldades de sobrevivência para operadoras de menor porte que se encontram localizadas em todas as regiões do país, atendem milhões de pessoas e, não terão como buscar subsídios para a continuidade de suas atividades.
Perdem os consumidores duas vezes: a primeira, porque os fundos mutuais poderão ficar sem os recursos necessários para custear as despesas assistenciais (exames, consultas, internações, terapias etc.); e, perdem uma vez mais se operadoras de menor porte forem impactadas a ponto de cessarem suas atividades.
Outro aspecto técnico relevante é a cadeia de fornecimento de suprimentos que o setor de saúde suplementar utiliza obrigatoriamente e, que sem dúvida, é uma das mais complexas de todo o setor produtivo.
Todas as operadoras de saúde suplementar – seguradoras, medicina de grupo, autogestão e cooperativas -, contratam a compra de produtos e serviços de fornecedores.
Essa contratação inclui desde os insumos mais simples e baratos – gases, soro fisiológico, alimentos -, até os insumos mais complexos – equipamentos de milhões de reais para exames de imagem, medicamentos de uso exclusivo em hospitais, quimioterápicos etc. -, muitas vezes disponibilizados por um único fornecedor, por exemplo, o laboratório farmacêutico que detém por lei a exclusividade de fabricação e distribuição de um determinado quimioterápico.
Nenhuma operadora de saúde suplementar, mesmo aquelas ditas verticalizadas que possuem médicos e hospitais contratados para seu uso exclusivo, conseguem fabricar/produzir todos os insumos necessários para suas atividades. Precisam necessariamente comprar produtos e serviços que se sujeitam impiedosamente à lei da oferta e da procura que se não está escrita em nenhum código ou lei, também nunca será derrogada enquanto vivermos sob o regime capitalista. As negociações de preço variam em conformidade com a necessidade de utilização, assim as operadoras de maior porte podem pagar menos que as de menor porte, isso sem computar as naturais dificuldades de logística em um país de larga extensão territorial como o Brasil, que também impactam decisivamente no preço final.
Mutualismo e cadeia de suprimentos complexa são fatores essenciais para o equilíbrio das operadoras de saúde suplementar no Brasil e ambos, são custeados pelo valor das mensalidades pagas pelos beneficiários.
As regras de reajuste dos planos de saúde podem ser aprimoradas e é necessário que esse debate seja feito de forma técnica e séria pela sociedade brasileira, com a contribuição dos juristas que estudam essa modalidade de contrato. A sociedade brasileira exige cada vez maior governança e transparência das empresas em todos os setores econômicos, em especial aqueles que atuam em áreas sensíveis como a saúde e a educação.
A atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS pode ser mais decisiva para a melhoria das relações entre beneficiários e operadoras. Sem se converter em órgão de defesa do consumidor individual o que as agências regulatórias não são, pode e deve a ANS aprimorar as relações nesse setor de forma a garantir o equilíbrio e a proteção dos vulneráveis de forma coletiva.
O consumidor tem vários e importantes canais para esclarecer dúvidas sobre os índices de reajuste ou, exigir seus direitos e deve utilizá-los sempre. Pode utilizar o Serviço de Atendimento ao Cliente – SAC, obrigatório para setores regulados como a saúde suplementar; pode utilizar as Ouvidorias, obrigatórias por força de decisão da ANS; pode utilizar a plataforma digital consumidor.gov da Secretaria Nacional de Direito do Consumidor – SENACON, com índice histórico de resolução de conflitos bastante positivo; pode utilizar a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que tem o sistema de Notificação Preliminar de Intermediação – NIP por meio do qual o beneficiário noticia o problema e pede resposta para a operadora, tendo a agência como intermediária; pode utilizar os Procons e o judiciário.
Mas acreditar que as operadoras de saúde suplementar no Brasil possam ficar sem a aplicação de reajustes referentes ao período 2019/2020, que deveriam ter sido aplicados de setembro a dezembro e foram suspensos e que isso não trará consequências para os consumidores, é caminhar ao largo da realidade e da técnica. E isso não é papel do Direito!
1 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021.
2 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021.
3 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021.
4 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021.
5 Disponível aqui. Acesso em 17 de janeiro de 2021.