A virada do milênio nos surpreendeu com uma nova percepção de mundo trazida por uma geração que se mostra preocupada com o equilíbrio ecológico, a redução do consumo e a origem de sua comida e suas roupas. Desse ponto foi um pulo para a ressignificação da apropriação de bens nos moldes clássicos praticados e legitimados pelo Código Civil.
Morar em uma casa gigantesca onde um ou poucos usufruem de um espaço territorial que abarcaria várias famílias com conforto se mostrou inadequado e até egoísta. Trabalhar em escritórios enormes onde um único profissional ocupa o espaço de uma dezena de pessoas também pareceu ultrapassado.
Essa geração ressignifica a cada dia o acúmulo de bens, a propriedade privada e ausência de solidarismo, num total descumprimento da função social.
Com isso, cresceu a importância dos bens do espírito, como os bens comuns, e dos bens que geram negócios de acesso múltiplo a única coisa, como o coworking e o coliving. As empresas revisitaram os modelos de negócios e o compartilhamento se tornou a premissa básica das novas fortunas, como facebook, ifood, uber, airbnb.
A tecnologia veio arrematar esse novo cenário se mostrando como meio possível para a realização dessa nova forma de experienciar o mundo. E a vida passou a ser vivida em grande medida por meio digital. É na “rede” que encontramos alimento, trabalho, amigos, romance, entretenimento.
É natural que nela também encontremos um lugar apropriado para experienciar nossa relação com a propriedade, incluindo sua movimentação através dos contratos.
A troca da propriedade pela experiência do uso traz um impacto significativo na titularidade de bens, transformando uma sociedade de proprietários em uma sociedade de usuários. Como consequência, a posse ganha um protagonismo que nunca teve, abrindo espaço para o direito de acesso que nele encontra similaridade, mas que já se mostra autônomo em seus efeitos.
Tudo isso faz nascer a pergunta: é o fim da propriedade exclusiva? Deixaremos definitivamente a propriedade em sua estrutura clássica da exclusividade? Em um futuro próximo teremos poucos proprietários e muitos usuários?
Para essa última pergunta, Jeremy Rifkin afirma que sim. Ao escrever sobre a era do acesso, assegura que a propriedade exclusiva se restringirá a quem tem interesse negocial, ou seja, sou dono de algo para gerar dinheiro. Na minha vida privada prefiro não ser titular exclusivo de bens, me apoiando nos serviços gerados pelo direito de acesso.
Mas a primeira pergunta parecia também ser afirmativa, pois a partir do bens digitais, tudo parece solto, sem proprietários ostensivos. Os bens se mostram voláteis, de fácil uso, cancelamento e transferência. Não há burocracias, órgãos públicos intermediadores de negócios. E por fim, nada tem registro.
Mas o registro, marca suprema da titularidade exclusiva de bens, tal qual conhecemos no direito civil, é algo a ser superado ?
Precisamos falar sobre isso.
Proposta de discussão para o registro dos bens digitais
Em artigo recente1, tive a honra de publicar um artigo ao lado do Prof. Dr. Marcos Ehrhardt, onde lançamos as primeiras reflexões sobre a necessidade de registro dos bens digitais. Ali perguntamos se esse novo modelo de pertencimento dispensa os instrumentos clássicos de segurança jurídica. Será que a natureza obrigacional trará mais soluções que a de direito real? Esta coluna procura trazer as primeiras possibilidades de resposta, abrindo o debate para a doutrina.
O fato é que o surgimento de bens digitais e seu amplo uso nos mais variados setores da vida privada parecia desafiar as fundações da propriedade, como a exclusividade, o não acesso aos não proprietários e o registro.
A linguagem que mais identifica a internet é o compartilhamento e o acesso livre. “Curte e compartilha” traz uma mensagem de que o mundo é fluido, somos todos iguais e temos acesso às coisas mais importantes da vida, as quais estão ali, a um clique de distância.
Mas para a surpresa de todos começa a surgir um movimento inusitado no meio do virtual, o registro em NFT (non-fungible token). E ele está se multiplicando com a velocidade que se espera para esse ambiente.
O NFT é um registro virtual, uma espécie de selo em um bem digital que o torna único no mundo, garantindo todos os direitos de propriedade ao seu titular, tal qual o fazemos com os bens corpóreos. E mesmo diante da fluidez do mundo virtual e da facilidade de se produzir cópias, o registro permite ao proprietário identificar essas réplicas e requisitar os lucros e indenizações pelo uso não autorizado do seu bem virtual.
Os mais variados setores da economia estão experimentando esse novo tipo de registro.
O museu russo Hermitage, um dos mais conhecidos e importantes do mundo, criou uma série de NFTs replicando alguns dos mais de 3 milhões de ítens do seu acervo.2 A coleção inclui obras de Leonardo da Vinci, Van Gogh, Kandinsky e Monet, entre muitos outros. Cada obra tokenizada se transformou em dois NFTs: um ficará com o próprio museu, e outro será leiloado na plataforma de tokens não fungíveis da corretora de criptoativos Binance.
Além de uma versão digital da obra original, os NFTs do Hermitage também possuem uma certificação do museu com assinatura, data, hora e local – o próprio museu – que ficarão salvos nos metadados do token, imutáveis no blockchain.
No mercado da moda, é possível comprar vestidos e sapatos que só existem virtualmente, com titularidade garantida por NFT. A chamada “cripto fashion” é encontrada na plataforma de realidade virtual Decentraland, mas também tem atraído iniciativas de empresa como Louis Vuitton, Burberry e Gucci. “Seu avatar representa você”, afirma o modelo Imani McEwan, que vive em Miami e é entusiasta do NFT. “Basicamente, o que você está vestindo é o que o torna quem você é.”3
Um ponto curioso com o NFT é que ele permite algo inédito, que mexe com nossas estruturas mentais em relação à exclusividade de um bem. É o que acontece quando se tem um bem físico, como uma pintura de Salvador Dalí e seu proprietário produz uma versão digital, única e exclusiva, registrada com NFT. Essa versão é uma cópia ou um bem tão único quanto o original?
A versão digital das pinturas pelo museu de Berlim é a prova disso. Como posso eu me sentir titular de um obra rara se existe outra igual, pertencente a outrem? Posso considerar que existe um bem único em duas versões da vida? Uma corpórea e outra incorpórea?
É o que nos propõe o NFT. É como a sua fotografia. Ao mesmo tempo é você, e não é.
Acompanhamos uma tendência das pessoas em produzirem suas versões digitais, criando seus avatares para interagir em outra dimensão, a virtual. Isso faz com que queiram fazer o mesmo com os bens. Tudo que existe no corpóreo pode ter uma versão digital, única em relação à primeira.
E até o exagero é possível, como destruir a coisa corpórea para que ela só exista na sua versão digital. Foi o que fez um coletivo de artistas nos Estados Unidos, que queimaram um quadro de Pablo Picasso para que sua versão digital fosse única, registrada por NFT. Segundo eles “O Picasso Queimado vive para sempre no blockchain”.4
E para garantir que o quadro foi realmente foi queimado, foi tudo feito com transmissão ao vivo pela internet.
Não deixa de ser curioso notar que o conceito mais rejeitado no início destas relações do mundo virtual, o da propriedade exclusiva e egoísta, agora renasce. O compartilhamento agora tem um custo. Se no mundo corpóreo o acesso é mais importante que a titularidade, no mundo virtual há uma tendência de retorno à propriedade exclusiva.
A propriedade clássica sempre nos fortaleceu a certeza de que só existe um bem para cada titular. E se os bens móveis permitem a cópia, esses sempre terão sua existência conectada à titularidade original, que a permite pelo direito de uso ou fruição, por exemplo, mas que nunca lhe dará a chancela de original. No entanto, sempre se considera o bem original como único, em termos de titularidade. Mesmo o condomínio civil deixa clara a ideia de que cada titular é dono da inteireza do seu percentual no bem, nascendo daí a exclusividade sobre o que é comum.
É por isso que o registro por NFT é tão disruptivo. Ele atualiza nossas concepções de exclusividade e originalidade, ao mesmo tempo que faz renascer a segurança jurídica trazida pelo registro da exclusividade.
O mais importante é perceber que esse registro é concedido por entidades privadas, ao contrário dos clássicos registros estatais, como temos no Brasil o registro imobiliário em cartório, o registro do Detran, ANAC, Capitania dos Portos.
À medida que o Estado impôs o controle das titularidades, através de entidades específicas, estabeleceu a base de negócios sobre os bens, oferecendo a certeza da existência de bens e sua penhorabilidade.
O Código Civil, que permanece com sua inércia imperial em relação a tudo que é múltiplo, compartilhado e digital, está abrindo mão do controle estatal sobre o registro de bens.
Historicamente o registro sempre trouxe a segurança jurídica de titularidade para o particular, e a possibilidade de rastreio pelo Estado quando da necessidade de identificação destes bens. Com o NFT não há um órgão central para buscas de informações. Se o interessado em um processo de execução, por exemplo, não souber que o executado tem esse tipo de bens, não conseguirá usá-los para satisfação do seu crédito. E estamos falando de bens que costumam ter um alto valor. O NFT está retirando do Estado o poder da informação, o que já foi feito pelas criptomoedas, como o bitcoin.
Parte considerável dos bens digitais ainda não se enquadra na clássica propriedade regulada pelos direitos reais e não encontraram nenhuma forma segura de registro. E por não possui-lo, ainda não resguardam a segurança jurídica trazida por ele. Um perfil digital, por exemplo, não é do usuário. A titularidade é da plataforma e quando esta decide cancelar a conta, já conhecemos os transtornos causados para sua retomada.
NFT e segurança contratual para negócios que envolvem bens digitais
As relações contratuais se encontram em um momento delicado desde que os bens digitais começaram a se multiplicar, a ponto de alguns deles serem muito mais valiosos que os bens corpóreos rotineiramente objeto dos contratos.
Onde está a propriedade está um potencial de negócio. E é o contrato a ponte entre eles. É por isso que o registro sempre foi uma garantia de segurança jurídica para os contratantes. Nos bens corpóreos, de um lado sabe-se quem é o legítimo titular de um bem, e de outro, tem-se uma garantia legal que pode ser utilizada para dar maior segurança ao negócio.
Negociar com quem é titular de bens é mais seguro. Uma garantia real é sempre uma segurança para um dos contratantes. E se ela não estiver presente, e o inadimplemento for o fato, há bens a penhorar. O registro dirá onde buscar bens.
Com os bens digitais tal segurança é infinitamente menor. Se um perfil digital ou um canal em uma plataforma é objeto de compra e venda, na verdade não há uma troca de titularidade, pois os “termos e condições de uso” estão lá para dizer que somos meros usuários e uma empresa é a verdadeira titular do bem.
Além disso, nos perfis e canais onde não há uma identificação pessoal de um titular, como os perfis comerciais e acadêmicos, por exemplo, o que haverá a troca de uma senha de acesso, mas sem segurança de que aquele que cedeu é o verdadeiro titular.
Se uma pessoa só possui bens digitais como a parte significativa de seu patrimônio, mas não há registro sobre eles, o risco do contrato é maior.
O fato é que, uma vez desprovidos de um registro oficial, legitimado pelo Estado, existe uma fragilidade nas operações contratuais que envolvem bens digitais. Por isso o NFT é uma novidade que traz mais segurança aos contratantes. Sendo de valor importante para o titular, certamente cuidará ele de declarar no imposto de renda, o que facilitá o acesso do contratante que busca a satisfação de seu crédito em ações de execução.
Sabendo que existe um registro do bem, que embora não venha do Estado, é reconhecido pelo mercado, o contratante tem maior segurança em conseguir um domínio legítimo sobre ele. E o mais importante, há um lugar para procurar a informação, o que não acontece com as criptomoedas.
Tome-se por exemplo os “domínios de sites”. Embora não possuam um registro oficial do Estado, são objeto de compra e venda sem maiores riscos, pois há uma empresa que controla as titularidades.
As expressões de ordem dos contratos sempre foram segurança e menor risco. Com o NFT os bens digitais passam a ter um registro e um valor de mercado mais transparente, o que traz muito mais segurança aos contratos onde sejam objeto.
Já vivemos na era digital, e o modelo de apropriação de bens precisa ser repensado. Ele é um pilar importante para a segurança dos contratos. O NFT ainda está em seu início, e já mostra sua força. O futuro dirá como será o modelo mais adequado. E como tudo é acelerado nesse meio virtual, essa resposta pode já estar pairando na rede nesse momento, sem que possamos nos dar conta.
Referências
Guilhermino, Everilda Brandão; Ehrhardt Jr, Marcos Augusto. Breves Notas sobre a (In)Suficiência da Teoria Clássica da Propriedade para Disciplinar a Titularidade dos Bens Digitais. O Caos no Dicurso Jurídico: uma homenagem a Ricardo Aronne. Thoth Editora, Londrina, 2001.
Fonte: NFTs invadem um dos maiores museus do mundo e famosa feira de arte dos EUA.
Fonte: Moda Em Nft: Por que as Pessoas Pagam Dinheiro Real por Roupas Virtuais.
Fonte: Grupo queima obra de Picasso e faz NFT: ‘Vivo para sempre no blockchain’.
*Everilda Brandão Guilhermino é advogada, mestre e doutora em Direito Civil (UFPE). Professora de Dirieito Civil. Membro fundadora do IBDCont.
1 Guilhermino, Everilda Brandão; Ehrhardt Jr, Marcos Augusto. Breves Notas sobre a (In)Suficiência da Teoria Clássica da Propriedade para Disciplinar a Titularidade dos Bens Digitais. O Caos no Dicurso Jurídico: uma homenagem a Ricardo Aronne. Thoth Editora, Londrina, 2001.
2 Fonte: NFTs invadem um dos maiores museus do mundo e famosa feira de arte dos EUA.
3 Fonte: Moda Em Nft: Por que as Pessoas Pagam Dinheiro Real por Roupas Virtuais.
4 Fonte: Grupo queima obra de Picasso e faz NFT: ‘Vivo para sempre no blockchain’.