Para uma cartografia dos desafios do Direito Civil após a covid-19: hic sunt dracones

Texto de autoria de João Pedro Kostin Felipe de Natividade e André Luiz Arnt Ramos

A Pandemia de COVID-19 trouxe consigo desafios notáveis para a Teoria e para a Prática do Direito Civil. Em especial, do Direito Contratual. Sinal disso é a pop up ativada quando se acessa o Portal do Processo Eletrônico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Tratando-se de ação/petição envolvendo Coronavírus, (…), ASSINALE o assunto COVID – 19 na opção Demais Assuntos na classificação processual (Portaria 57/2020 do CNJ)”. Há, aqui, um sintoma de que a crise do Sistema de Saúde contamina (ou contaminará) também o de Justiça.

Não é difícil entender o porquê do assoberbamento do Poder Judiciário com demandas oriundas de dificuldades suscitadas pela Pandemia. Ela, afinal, trouxe consigo uma sucessão de tragédias humanas, sociais e econômicas. Particularmente na ambiência dos contratos, afeta diretamente os próprios contratos, as relações contratuais e os contratantes. Daí não serem raros exemplos como (i) o do restaurante italiano que perde 90% do faturamento e consegue decisão judicial que redimensiona o aluguel1; (ii) a do lojista que loca espaço em Shopping Center que consegue análogo abrandamento do custo do contrato necessário para a retomada de sua atividade econômica2; e o do estudante que, em Santa Catarina, obteve decisão que suspende o pagamento de parcelas do FIES3. Em desempenho quase que da função de marinheiro, o Judiciário age rápido para consertar o navio em meio à tempestade, mantendo em segurança as relações privadas4.

Só que, quando a poeira baixar, essa Justiça da emergência será sucedida pela Justiça da imputação. E então tudo aquilo que fizemos ou deixamos de fazer nesse período poderá ser avaliado sob o prisma da responsabilidade. Por isso, convém perguntar: se sofrer algum dano durante a pandemia, como a vítima deve agir? E quais as consequências de sua conduta? As indagações (e suas respostas) relacionam o agora e o depois da Pandemia no diapasão da incumbência da mitigação de prejuízos, conhecida também como duty to mitigate the loss – normativa que repercute a resposta da vítima sobre a reparação de danos patrimoniais5.

Já de início, é importante corrigir um erro comum. A vítima não necessariamente deve agir. Isso porque não existe no Direito brasileiro norma que proíba a autolesão patrimonial. Mas isso não significa que sua conduta proativa ou desidiosa seja ausente de consequências jurídicas. É o que se visualiza com um simples exercício: imagine que um motorista descuidado bate em um táxi. Nada obriga o taxista a consertar o táxi; ele pode deixar seu veículo na garagem por um, dois, três… meses. Mas se fizer isso, não deverá ser indenizado pelos lucros cessantes relativos ao tempo em que o carro ficar parado por sua escolha.

Quer dizer: a vítima pode agir como bem entender após o evento lesivo, mas, quando se discutir a reparação, o quantum deverá ser fixado como se ela tivesse escolhido a resposta esperada. Mas o que seria isso?

Mesmo sem impor à vítima uma conduta, o Direito espera que o prejudicado aja para se reaproximar da situação em que estaria sem o evento lesivo. Rectius: para a recomposição do estado anterior ao prejuízo. A função reparatória da responsabilidade, neste prisma, serve de critério normativo e orientador6. Na eventualidade de haver dois ou mais caminhos de recomposição, o Direito idealizará a resposta normal, em detrimento de soluções custosas ou anômalas.

Assim, por exemplo, o descumprimento do contrato de transporte individual de passageiro pelo não comparecimento do transportador na data e local ajustados é uma situação patológica à luz do processo obrigacional. Também é, todavia, remediável: o passageiro prejudicado pelo inadimplemento ainda pode chegar ao local de destino mediante, por exemplo, a chamada de um Táxi ou o uso de algum aplicativo de transporte. Poderia, também, chamar uma limusine ou um helicóptero. Ou, ainda, simplesmente desistir do propósito que tinha ao contratar. A resposta normal e esperada, evidentemente, seria o táxi ou o aplicativo de transporte7.

Mas nada impede ao credor a opção por meio menos módico (limusine ou helicóptero) ou inesperado (abandonar a viagem). Nessa hipótese de divergência em relação à resposta normal e esperada, haverá repercussão no plano obrigacional. É dizer: a reparação deverá ser fixada de modo contrafactual, como se a vítima tivesse adotado a resposta esperada, mesmo que não o tenha feito. O desvio da resposta esperada interrompe o nexo entre o dano e o ofensor originário, transferindo à vítima as consequências – positivas e negativas – de sua escolha.

Esse entendimento foi aplicado pelo STJ ao julgar o REsp 256.274/SP. Na ocasião, a Corte decidiu que os lucros cessantes devidos a título de seguro deveriam ser fixados como se o segurado tivesse reaberto o restaurante incendiado em noventa dias a contar do pagamento dos danos emergentes, tempo que o Tribunal considerou suficiente para o reparo. Em miúdos: o STJ definiu a resposta esperada – consertar o restaurante em 90 dias – e fixou a indenização com base nela.

Definidas essas premissas, cabe perguntar: em que medida a COVID-19 afeta a mitigação? A Pandemia pode limitar – como não raro limita – a escolha do agente; pode privá-lo de liberdade em múltiplos perfis: negativo, pela coerção exercida pelos gestores de saúde ao decretar proibições e suspensões de atividade; positivo, pela carência de possibilidade de escolher e agir; e substantivo, pela privação de capacidades, que são condições para o exercício e a vivência de liberdades.

No primeiro caso aventado, do taxista que teve seu carro danificado por acidente de trânsito, medidas sanitárias que suspendam atividades de oficinas ou de fábricas de peças importam demora no reparo que não pode ser atribuída ao profissional. Eventual reparação, então, deverá ser fixada incluindo os lucros cessantes do período em que o reparo não pode ser realizado. Assim que decretos executivos determinarem a reabertura das oficinas, o Direito espera que o taxista volte a trabalhar após o conserto. Se escolher outro curso de ação, o ofensor deixará de responder por essa parte do prejuízo, face à indicada interrupção do nexo causal.

No segundo caso, do passageiro frustrado pelo não comparecimento do transportador, a vítima pode não ter a liberdade de escolher a resposta esperada por falta de meios. Imagine que um morador de uma cidade pequena agendou um exame não reembolsável num município vizinho e contratou os serviços de uma van para realizar o trajeto. Se o transportador não comparecer no horário acordado, o direito espera que o passageiro encontre alguma forma de realizar o exame. Mas se, naquele dia, não houver outros meios de transporte disponíveis ou o passageiro não tiver condições econômicas de contratar outro serviço, o liame causal segue hígido, fazendo do ofensor o responsável pelo prejuízo sofrido.

Agora, suponha que o transportador se proponha a prestar o serviço em outro dia e que o exame possa ser reagendado mediante o pagamento de uma taxa. Neste caso, o direito espera que o passageiro altere a data do exame e concorde com o adiamento do serviço, salvo se alguma situação particular justificar outro curso de ação (ex. cirurgia marcada para o dia seguinte). Se o passageiro recusar o transporte e não reagendar o exame, a indenização patrimonial deverá ser fixada como se o exame tivesse sido adiado, contemplando apenas a taxa de reagendamento.

A Pandemia, que hoje nos assola com crises sanitária, econômica e de gestão, irradiará desafios e efeitos deletérios para além de sua superação. Há, então, um desafio para o presente de, em correspondência a Neurath8, reconstruir a embarcação do Direito Civil em meio à tempestade e às águas revoltas do Direito e da Economia em tempos de COVID-19. Também é certa a urgência de esboçar uma cartografia do que se projeta para além do horizonte da Pandemia. A embarcação, afinal, precisa continuar a navegar e seguir seu curso.

*João Pedro Kostin Felipe de Natividade é mestre em Direito pela UFPR. Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Advogado.

**André Luiz Arnt Ramos é doutor e mestre em Direito pela UFPR. Pesquisador visitante junto ao Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo, Alemanha). Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Professor da Universidade Positivo. Advogado.


1 Justiça do DF concede redução de 50% no aluguel de restaurante italiano.

2 Justiça do RJ autoriza redução no aluguel de lojista de shopping na Zona Oeste durante a pandemia.

3 Justiça suspende parcelas do Fies para estudantes de universidade de SC.

4 Isso quando as partes não refletem e renegociam suas relações, evitando o recurso ao Judiciário.

5 Embora o STJ e a doutrina majoritária entendam que a mitigação se fundamenta na boa-fé objetiva, melhor sorte assiste à causalidade. Ver: NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Mitigação de prejuízos & Responsabilidade civil: a resposta do lesado e seus efeitos sobre a reparação patrimonial. Curitiba: Juruá, 2020.

6 Mitigação de prejuízos & Responsabilidade civil: a resposta do lesado e seus efeitos sobre a reparação patrimonial. Curitiba: Juruá, 2020.p. 94-95.

7 LETSAS, George; SAPRAI, Prince. Mitigation, Fairness and Contract Law. In: KLASS, Gregory; et.al. Philosophical foundations of contract law. Oxford: Oxford University Press, 2014. Disponível em . Acesso em 31/05/2020.

8 Otto Neurath, ao discutir os problemas da linguagem científica, anotou que: “Nós somos como marinheiros que precisam reconstruir seus navios no mar aberto, sem jamais poder desmontá-los em uma doca seca e nela reconstruí-los a partir dos melhores materiais” (NEURATH, O. Protocol sentences. Tradução de George Schick. In: AYER, A. J. (Org.). Logical Positivism. Nova York: The Free Press, 1959, p. 201). Tradução livre. No original: “We are like sailors who must rebuild their ship on the open sea, never able to dismantle it in dry-dock and to reconstruct it there out of the best materials”.

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