É possível afirmar que na atualidade vivemos sob o domínio das inovações tecnológicas que, como sabemos, afetaram muitas das relações econômicas e sociais. A sociedade 4.0 ou sociedade digital, ou ainda, sociedade tecnológica ou qualquer outra denominação que se queira dar a esse momento peculiar do século XXI, exige reflexões e nos convida a estudar os contratos em sua versão smart, ou, supostamente inteligentes.
Este trabalho tem por objetivo definir os contornos do que seja a sociedade 4.0, como os smart contracts se tornaram relevantes nessa sociedade e, propor algumas reflexões sobre a inserção desses contratos no campo do direito brasileiro, sempre de forma preliminar e dialógica porque são estudos que ao longo do tempo terão que receber necessário aprimoramento e atualização.
Sociedade 4.0 – Aspectos Essenciais
A designação 4.0 para se referir a uma nova Revolução Industrial passou a ser utilizada a partir de 2011 durante uma feira de tecnologia industrial tradicionalmente realizada na cidade de Hannover, na Alemanha. A Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial, se refere aos diferentes modos de produção econômica vivenciados na trajetória da humanidade, tradicionalmente chamados de revoluções.
A primeira Revolução Industrial ou Revolução 1.0 foi marcada pela utilização da máquina a vapor e das ferrovias, ocorreu no período de 1760 a 1840 e teve a Inglaterra como principal centro de desenvolvimento e difusão. A segunda Revolução Industrial ou 2.0, ocorreu entre o final do século XIX e o início do século XX e teve na eletricidade seu ponto principal, o que permitiu a inserção da produção em massa com o uso de linhas de montagem. A terceira Revolução Industrial, ou 3.0, é também chamada de Revolução Digital e sua principal característica foi a utilização maciça de computadores e o acesso à rede de alcance mundial, a internet ou World Wide Web, rede mundial de computadores. E, finalmente, a Revolução Industrial 4.0, ou apenas, Revolução 4.0, ocorreu a partir da passagem do século XX para o século XXI e tem como principal característica o surgimento e utilização de tecnologias disruptivas, viabilizadas pelos avanços da Revolução 3.0, mas que têm marcado e marcarão a sociedade de forma única, aparentemente sem precedentes na história da humanidade.
Todos os meios de produção econômicos e os relacionamentos interpessoais parecem estar afetados ou modificados no todo ou em parte, pelo uso de novas tecnologias e da rapidez com que elas são criadas e disseminadas. Não é à toa que o atual momento tem sido chamado de Sociedade 4.0 e não apenas de Revolução Industrial 4.0, porque todas as formas de relacionamento, econômicos ou não, estão impactados pelo uso de novas tecnologias.
Klaus Schawb1 identifica aspectos que caracterizariam esse novo momento e aponta que ele é marcado por velocidade, amplitude, profundidade e impacto sistêmico.
Uma rápida análise da sociedade em que vivemos nos levará a concluir que ela está muito modificada e não apenas em relação a um ou dois séculos atrás. Ela está bastante modificada em relação a vinte anos atrás, ou seja, do início do século XXI para cá temos vivido mudanças extraordinárias em todos os campos do conhecimento e, nas relações sociais. Não há uma única área do conhecimento que não esteja estudando ou pesquisando, neste momento, o impacto das novas tecnologias e das mudanças sociais que elas propiciaram.
A pandemia provocada pela Sars-Covid 19, a partir de março de 2020, contribuiu para aumentar exponencialmente e não de forma linear, as mudanças na utilização de novas tecnologias e de novas formas de relações sociais. Há um vasto campo de pesquisa a ser investigado por todos nós, em especial na área do Direito.
Smart Contracts – Inteligentes ou Obedientes?
Uma das tecnologias disruptivas de grande impacto na Revolução Industrial 4.0, e na própria sociedade 4.0, é chamada de blockchain, em tradução literal, cadeia de blocos.
A criação dessa tecnologia foi uma resposta para a grande crise financeira mundial de 2008, iniciada nos Estados Unidos a partir da quebra de instituições financeiras tradicionais e muito confiáveis. Inconformados com a forma como os bancos haviam emprestado recursos de seus clientes para credores que não puderam honrar suas obrigações, alguns usuários de bancos imaginaram ser possível criar um sistema sem intermediários, em que partes pudessem livremente negociar inclusive com a criação de suas próprias moedas.
Inacreditável? Aparentemente sim! Mas o fato é que essas ideias aparecem expostas claramente em artigo assinado por Satoshi Nakamoto, em 2008, que foi denominado de Bitcoin: Um Sistema Financeiro Peer-to-Peer.2 Para tornar o tema ainda mais emocionante, consta que Satoshi Nakamoto é o pseudônimo do criador das moedas bitcoin e que sua verdadeira identidade até hoje é desconhecida.
E qual o meio a ser utilizado para viabilizar que as partes se relacionassem entre elas próprias sem a necessidade de um intermediário centralizador das relações? A tecnologia blockchain foi a resposta.
Paulo Alcarva3 define blockchain como a tecnologia que:
(…) permite que duas partes que não se conhecem chegarem a um acordo (consenso) através de uma história digital comum. Essa história digital comum é importante porque os ativos e as transações digitais são teoricamente fáceis de falsificar e/ou duplicar. A tecnologia blockchain resolve esse problema sem usar um intermediário financeiro que as duas partes conheçam.
A tecnologia blockchain é, então, uma base de dados compartilhada entre diferentes pessoas que não se conhecem, que guardam todos os registros das transações realizadas. Esses registros são ordenados por blocos que contém as informações e protegidos por chaves denominadas hash, que são uma assinatura criptografada. Qualquer alteração na base de dados vai gerar um novo hash, e todos os participantes da rede saberão disso e poderão certificar a autenticidade da transação realizada.
Não há possibilidade de mudanças retroativas porque cada transação é certificada com um carimbo digital que contém a data e o horário, o que contribui para garantir a segurança da transação. Além disso, cada transação realizada na rede é caracterizada como um bloco que é enviado a todos os nós de rede (participantes da rede entre pares) e agregado a outros blocos, de forma que todos conhecem todas as transações realizadas e podem validá-las.
Em outras palavras, uma rede blockchain é uma rede descentralizada em que cada um dos participantes é possuidor de um livro-razão (ledger) que contém todas as informações sobre as transações realizadas na rede. É uma rede de dados em que todos são responsáveis pela validade das transações realizadas, sem que essa validação precise ser prestada por um terceiro, autoridade ou qualquer outra parte externa à rede.
Essa tecnologia viabilizou a emissão de ativos digitais como as criptomoedas, sem regulação ou autorização de entidades estatais como os bancos centrais. E também tornou possível a prática de smart contracts, ou, contratos inteligentes em tradução literal.
Nick Szabo4, jurista e criptógrafo norte-americano, parece ter sido o primeiro a utilizar a expressão smart contracts em 1994. Para explicar o conceito dessa modalidade de contrato ele utilizou a simplicidade do funcionamento das máquinas de refrigerantes que podemos encontrar facilmente em lojas, postos de combustível, centros de compra e até nas ruas. Elas funcionam exatamente a partir do princípio que rege os smart contracts, ou seja, if-them (se-então). Se um comando é dado para que um determinado refrigerante seja servido, a máquina deve viabilizar exatamente aquele que foi selecionado. Se o pagamento for feito pelo consumidor a máquina deve permitir o acesso ao refrigerante. Se o pagamento for a maior, a máquina deve fornecer o troco. Se o pagamento não for feito, a máquina não deve permitir o acesso ao refrigerante.
A contratação é totalmente automatizada e a vontade do ser humano só pode se manifestar nos estritos limites do que foi previamente configurado no sistema computacional que rege a máquina. Se o humano desejar alguma coisa que não esteja à venda, ou se quiser que a máquina interprete alguma de suas intenções, isso não será possível porque não há programação para essas variáveis.
Essa é a ideia central dos smart contracts, as partes contratantes devem fixar previamente todas as condições que desejam que seja transporta para a linguagem computacional e, depois que isso for feito, não existe mais espação para modificações para os termos fixados no contrato. Se as condições previstas forem ocorrendo as consequências desejadas igualmente ocorrerão sem intervenção humana, sem subjetividade na interpretação e, principalmente, sem viabilizar a intervenção de terceiros estatais ou privados.
A rigor, a expressão contratos inteligentes não parece ser a mais adequada. São, na verdade, contratos obedientes mas não inteligentes porque não tomam decisões sozinhos, são orientados a agir a partir de cláusulas ou condições previamente determinadas por humanos e que devem ser rigorosamente obedecidas, sem qualquer interferência externa.
Nesse aspecto é que Primavera De Filippi e Aaron Wright5 afirmam que para executar contratos inteligentes as partes devem primeiro negociar os termos do acordo até alcançarem um consenso. Uma vez que tenham chegado a esse acordo de vontade as partes deverão transformar seu entendimento em sinais digitais em base blockchain, que se incumbirá de realizar todos os comandos e condições previamente discutidos pelas partes.
Uma vez iniciada a execução eles não podem ser interrompidos e nem modificados, salvo se as partes tiverem previstos mecanismos para que isso ocorra. Ainda segundo De Filippi e Wright, em caso de disputa, as partes poderão renegociar as tratativas dos contratos, organizar acordos subjacentes e mesmo buscar reparação em cortes judiciais ou em painéis de arbitragem. Para isso basta que os contratos prevejam essas hipóteses e que isso esteja incluído na linguagem computacional utilizada.
Os contratos inteligentes ou obedientes como tenho preferido chama-los, podem ainda utilizar recursos de consulta a terceiros, sempre que estes tenham informações relevantes para a continuidade da execução do contrato. Imaginemos que um navio transporta mercadorias de um fabricante A para o porto de Rotterdam para ser recebida por um comprador B, que deverá pagar as mercadorias no momento exato em que as desembaraçar no porto. O valor a ser pago depende da variação da moeda no dia do pagamento e essa informação será disponibilizada pelo oracle (oráculo) X, que o contrato inteligente consultará automaticamente no momento exato em que o navio atracar com a mercadoria. Em razão das condições climáticas na rota de navegação há possibilidade de a mercadoria ser entregue entre os dias 10 e 15 do mês, razão pela qual será necessário consultar o terceiro (oráculo) escolhido pelas partes contratantes para saber corretamente o valor de câmbio da moeda no dia da chegada e liberação da mercadoria.
Nada impede que os oráculos sejam escolhidos pelas partes contratantes para modificar direitos codificados no contrato inteligente, de forma a adequar as condições contratadas à realidade ou, ainda, a condições que garantam a equidade do negócio firmado. Assim, por exemplo, contratos inteligentes poderão prever que em caso de pandemias, epidemias ou endemias, o oráculo deverá ser consultado sobre como adiar o cumprimento das condições contratuais até que a situação se estabilize ou volte a ser exatamente igual àquela do momento da assinatura do contrato. Nesta quadra histórica em que vive a humanidade a incidência de pandemias, epidemias e endemias já é um fato conhecido e perfeitamente previsível, embora não se possa ter certeza do momento em que isso ocorrerá.
Nesse caso de possibilidade de atuação dos oráculos para solução de problemas ocorridos na execução dos contratos inteligentes, poderemos classifica-los como contratos híbridos que em parte estão submetidos a execução da tecnologia blockchain e, em parte estão sujeitos à interferência humana, seja dos próprios contratantes ou de parte terceira escolhida para essa finalidade.
A experiência indica que nem todas as transações poderão ser realizadas por meio de contratos inteligentes. Nos contratos de consumo, por exemplo, apenas aqueles mais corriqueiros como pagar um valor para baixar uma música ou um filme em um aplicativo parecem ser adequados para esse sistema. Os contratos que envolvem compra de produtos ou serviços com maior variação de possibilidades de escolha não devem ser integralmente automatizados, porque podem ocorrer muitas variáveis difíceis de prever no momento da contratação, inclusive a possibilidade de desistência do consumidor, o exercício do direito de arrependimento.
Também os contratos com aspectos de notória função social como a locação residencial não parecem adequados para serem tratados em linguagem exclusivamente computacional e, submetidos à lógica “se-então”. Para essas situações poderão ser utilizados contratos eletrônicos firmados até por aplicativos, porém sujeitos a adequações necessárias ao longo do período de vigência exatamente para atender os princípios mais amplos protegidos pela legislação civil contratual como a boa-fé, a proteção da confiança, a já mencionada função social e outros.
Para contratos paritários e empresariais, no entanto, os smart contracts podem e devem ser utilizados com frequência, sobretudo em razão do caráter mais objetivo que propiciam na execução, na segurança e rapidez que são características dessa modalidade que a tecnologia blockchain viabiliza.
Conclusão
É recomendável nos colocarmos diante das novas tecnologias de forma cautelosa e, por vezes, até um pouco cética. Não convém nos portarmos como os primeiros humanos que viram o fogo e apavorados correram para em seguida se colocarem encantados diante da descoberta e convictos de que boa parte de seus problemas estariam resolvidos por aquelas chamas. Os incêndios mostraram àqueles humanos que o fogo era solução para alguns problemas e fonte de outros. Da mesma forma os primeiros humanos que viram funcionar a eletricidade e julgaram que dali para frente suas vidas estariam marcadas por infinitas alegrias. O primeiro curto-circuito colocou aqueles nossos ancestrais diante da difícil realidade de que não existem meios de prevenir todos os riscos.
As tecnologias são sempre bem-vindas, já a sua utilização nem sempre!
É preciso conhecer as tecnologias em profundidade para conseguir depreender exatamente em que circunstâncias a utilização será positiva e em quais momentos deverá ser evitada. Esse equilíbrio precisa estar presente quando se trata de smart contracts e do uso da tecnologia blockchain. Não são todas as situações contratuais que poderão utilizar essa tecnologia e, somente deverão utilizá-las as partes que efetivamente tenham compreendido como ela funciona e se comprometido a aceitar essas regras.
Não são contratos a serem praticados no âmbito das relações de consumo ou, em áreas civis para as quais existam peculiaridades ou aspectos subjetivos que possam se tornar fonte de conflito ou, minimamente, de necessidade de interpretação de cláusulas. As relações que poderão utilizar contratos inteligentes ou obedientes parecem ser, por natureza, aquelas de caráter empresarial, entre partes iguais que tenham correta compreensão das especificidades desses contratos e de seu desenvolvimento automatizado.
Os contratos empresariais são, quase sempre, aqueles para os quais aspectos como rapidez, segurança e objetividade das regras e incentivos efetivos para o cumprimento são aspectos essenciais, além de serem contratos cuja experiência já se encontra historicamente consolidada como acontece, por exemplo, com os contratos de transporte, de transferência de tecnologia, de construção civil, de produção industrial, de distribuição e tantos outros.
E, principalmente, os contratos inteligentes ou obedientes deverão ser construídos em estrita conformidade com a legislação para que não sirvam como instrumento de práticas ilegais, reprováveis, antiéticas ou imorais. As tecnologias só podem ser úteis se estiverem a serviço do desenvolvimento e da autodeterminação humana e nunca em sentido contrário.
Estas são algumas reflexões preliminares sobre esse importante tema. Que os pesquisadores de muitas áreas do conhecimento se aproximem para analisar, discutir, aprender e ensinar sobre novas tecnologias e suas utilidades, porque essas reflexões iniciais já demonstram de forma clara que somente o conhecimento do Direito não será suficiente para nos permitir a ampla compreensão da Sociedade 4.0 em que vivemos.
Referências Bibliográficas
ALCARVA, Paulo. Banca 4.0. Revolução Digital: Fintechs, Blockchain, Criptomoedas, Robo-advisers e Crowfunding. Coimbra:Conjuntura Actual Editora, 2019.
De FILIPPI, Primavera. WRIGHT, Aaron. Blockchain and The Law. The Rule of Code. Cambridge: Harvard University Press, 2019.
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: Um Sistema Financeiro peer-to-peer. Disponível aqui. Acesso em 12 de janeiro de 2022.
SCHAWB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. S.Paulo: Edipro, 2016.
SZABO, Nick. Contratos Inteligentes. Disponível aqui. Acesso em 12.01.2022.
Artigo também disponível no Migalhas Contratuais: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/358010/smart-contracts-inteligentes-ou-obedientes